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PARTE 2 – CONHECENDO O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DAS LICENCIATURAS INTERDISCIPLINARES

4. LICENCIATURAS INTERDISCIPLINARES: para além de uma nova proposta de profissionalização docente, um paradigma de gestão da Educação Superior para os camp

4.3 O retorno aos “velhos” aportes em tempos de “inovação”: o sustentáculo na Escola Nova

e nas Licenciaturas Curtas

Vamos percebendo que a argumentação com vistas a justificação das LI pautaram- se nas críticas ao modelo tradicional de formação de professore(a)s, fundamentadas na sua obsolescência em relação às supostas demandas da “sociedade do conhecimento”, exigente mais de processos ativos e construtivos que transmissivos na aquisição de conhecimentos necessários para o enfrentamento das situações-problemas do cotidiano.

Entretanto, não há nada de novo nessas críticas às praticas escolares identificadas como tradicionais. Elas fundamentavam as análises do movimento escolanovista que teve origem no início do século passado, em um contexto marcado pelo projeto de modernização do País, tendo suas ideias se tornado predominantes entre 1947 e 1961 (SAVIANI, 2007). Difundindo um ideário de uma educação moderna, democrática e humanista, tal movimento buscava, na realidade, “[...] responder [na perspectiva do liberalismo] à necessidade de instruir os filhos dos trabalhadores formando novas gerações de proletários, porém dentro dos limites que os interesses das elites econômicas impunham” (DERISSO, 2010, p. 59).

Representando uma forte contraposição à pedagogia tradicional, a Escola Nova ressaltou seus prejuízos ao desenvolvimento do(a)s aluno(a)s sob os argumentos adversos à centralidade do(a) professor(a) na prática pedagógica, à supervalorização dos conteúdos enciclopédicos difundidos em livros didáticos e, por conseguinte, aos métodos expositivos no ensino.

Como antítese virtuosa de todos esses aspectos, propôs o protagonismo, a atividade, a iniciativa e a autonomia do(a) aluno(a) no processo de aprendizagem. Assim, na pedagogia

escolanovista o(a) aluno torna-se o centro do processo educativo; orienta-se o desenvolvimento de uma metodologia com atividades de cunho biopsíquico e que estimulem o alunado à participação em um ambiente alegre, criativo e potencialmente rico de oportunidades de atividade e iniciativa para a construção de novos conhecimentos.

A propósito desta polêmica convém lembrar as teses defendidas por Saviani (1983) nos anos 80 do século passado no livro “Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política”. Registre-se que esta produção foi retomadas recentemente (2013) tendo em vista ultrapassar o momento da antítese que predominou à época, na direção do momento da síntese – a pedagogia histórico-crítica.

Analisando as teorias educacionais, o autor vincula o surgimento da teoria tradicional com o movimento revolucionário da burguesia para consolidar-se no poder na sociabilidade capitalista nascente. Como estratégia ideológica, esse movimento propõe a universalização do ensino como medida dirigida para a ascensão dos indivíduos à condição de cidadãos, em lugar de súditos, como no Antigo Regime.

Tendo predominado no ideário educacional durante o século XIX, sob a égide dessa pedagogia a vara pende para os primeiros termos dos pares que mais caracterizam o processo educativo escolar: professor(a)-aluno(a); ensino-aprendizagem; conteúdo-metodologia. Mas ainda que seja no âmbito de uma armadilha discursiva, a construção de uma ordem democrática estava pautada; e a educação era alçada a uma das protagonistas mais importantes nesse processo. Uma vez não alcançada tal expectativa de integração/democratização e instaurada a contradição entre os interesses da classe dominante e o aumento da escolarização e participação política das massas, surge o movimento renovador da Escola Nova. Convertendo-se em senso comum no pensamento pedagógico do(a) educadore(a)s brasileiros, a pedagogia escolanovista passou a predominar na forma de conceber a educação e a vara curvou-se para os segundos termos dos pares acima mencionados.

Dentre outras ponderações acerca do ideário escolanovista, Saviani (1983; 2013) sinaliza que o próprio ambiente tido como ideal para o desenvolvimento do trabalho pedagógico reverte-se em um fator impeditivo para a implantação dessa pedagogia na maioria das escolas brasileiras, com especial destaque para as públicas, reconhecidamente carentes de infraestrutura adequada.

Além disso, partindo do pressuposto que a Escola Nova, por um lado, agravou os problemas relacionados à exclusão escolar das crianças e jovens das classes populares e, por outro, aumentou a qualidade do ensino somente às elites, esse mesmo autor, na tentativa de reverter essa tendência dominante, trazer a vara para o centro, endireitando-a (nem para a

pedagogia tradicional, tampouco para a nova), força-a a descrever uma trajetória em sentido oposto em direção à sua negatividade. Isso foi feito a partir da defesa de três teses: 1ª) do caráter revolucionário da pedagogia tradicional e do caráter reacionário da pedagogia nova; 2ª) do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos; 3ª) do efeito socialmente antidemocrático da Escola Nova; “[...] quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrática foi a escola; e, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construção de uma ordem democrática" (SAVIANI, 1983, p. 59).

A atribuição desse grau menor à democratização da escola pauta-se no critério de mediação do trabalho pedagógico para a apropriação do conhecimento elaborado historicamente – em suas formas mais desenvolvidas – no interior desta instituição. Premissa coerente com um entendimento que reconhece a importância do método no processo educativo, mas não secundariza o trabalho intencional, planejado e sistematizado do(a) professor(a); ao contrário, considera-o como essencial no processo de aprendizagem e desenvolvimento do(a)s estudantes, devido ao seu papel na socialização dos conhecimentos e dos meios para produzi- los e/ou transformá-los.

Após trazer à baila esse aporte de Saviani, e ainda com inspiração neste, julgamos interessante sublinhar que o movimento escolanovista colaborou para a configuração do quadro atual da educação brasileira, no qual o aviltamento da qualidade do ensino e das aprendizagens é uma constante. A título de ilustração, vale citar a análise do movimento Todos Pela Educação (TPE), tendo por base os dados sobre o desempenho de estudantes nos sistemas de avaliação brasileiros referentes ao ano 2013, segundo a qual o País ficou abaixo da meta intermediária62

tanto em Português como em Matemática. Somente 9,3% do(a)s aluno(a)s do 3º ano do Ensino Médio aprenderam o considerado adequado em Matemática, e 27,2% em Português. No 9º ano do EF, o percentual de estudantes que alcançou aprendizado considerado adequado pelo movimento nesta disciplina foi de 16,4% (0,5% menor que o verificado em 2011 (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2014).

Certamente tal situação é síntese de inúmeros fatores, dentre os quais se encontra o esvaziamento dos conteúdos, a secundarização do ensino e a centralidade do processo educativo em um(a) aluno(a) abstrato e ideal, muitas vezes com poucas condições para “aprender a

62No intuito de propiciar o acompanhamento periódico dos indicadores educacionais, o movimento TPS estabeleceu metas intermediárias relacionadas às cinco definidas para alcance até o ano 2022. No caso da Meta referente a “Todo aluno com aprendizado adequado ao seu ano” (Meta 3), no que tange à disciplina Matemática, elas foram definidas em 28,3% para o ano de 2013 no EM. No EF, 42,9% para 2013 e 37,1% para 2011.

aprender” e/ou de “construir” o conhecimento de forma autônoma e independente – aspectos realçados também na proposta das LI, os quais discutiremos adiante.

Destarte, essa rápida revisão torna legítima uma reflexão cuidadosa acerca dessa referida proposta, visto que, em nosso entendimento, ela se articula a um movimento que está se consolidando atualmente no ideário pedagógico brasileiro, denominado por Saviani (2007) de neoescolanovismo, o qual se constitui numa nova roupagem das concepções da Escola Nova, agora orquestradas pelo lema “aprender a aprender” e pela pedagogia das competências.

E o que é agravante, onde a formação docente, ao invés de ser concebida como um direito e um investimento social e político, é pensada como uma das estratégias para atendimento às demandas das relações sociais capitalistas contemporâneas, as quais, a despeito dos discursos, agudizam as formas de desigualdade e exploração requerendo qualificação para um mundo do trabalho cada vez mais excludente.

Corrobora tal assertiva a análise de Martins (2010) em um artigo que analisa o legado do século XX para a formação de professore(a)s, tendo como eixo de análise a relação entre formação profissional e atividade produtiva, no qual aponta para um paradoxo expresso, por um lado, na supervalorização dos processos formativos (inicial ou continuado) nos discursos oficias e, por outro, no esvaziamento de conteúdos científico-cultural dessa mesma formação, em decorrência da sobreposição do saber fazer que se apresenta travestido sob a forma de competência.

Oportuno então, um retorno às análises de Saviani (1983) ao atentar para o fato de que o momento em que a escola brasileira esteve mais articulada às demandas de uma educação popular, quando se ampliou o acesso à escolarização básica, foi também um momento em que se distanciou desse anseio. Isso porque, jamais fez parte das reivindicações populares o acesso cujo cerne das atividades não fosse o ensino das formas mais elaboradas do conhecimento produzido e sistematizado ao longo da história humana, ou no dizer do próprio autor, o conhecimento erudito.

A ampliação do acesso à escolarização teve consequências, inclusive semelhantes, na formação de professore(a)s. Para minimizar a escassez de profissionais em um cenário de aumento da demanda por seus serviços, foram pensadas e implementadas propostas emergenciais, obviamente não suficientes para o enfrentamento adequado do problema, na visão de Freitas (2007, p. 1205), crônico, porque “[...] produzido historicamente pela retirada da responsabilidade do Estado pela manutenção da educação pública de qualidade e da formação de seus educadores”.

Além de inadequados para equacionamento da questão da falta de docentes para a escolarização básica, tais soluções, na maioria das vezes, agravam os problemas relacionados aos processos formativos iniciais, como é o caso das Licenciaturas Curtas, que rebaixaram sua qualidade tanto no campo das Ciências da Educação, como no campo das áreas específicas. Conforme já sinalizamos, essas licenciaturas tiveram gênese nas reformas educacionais do período do regime militar no Brasil, o qual, como bem sabido, consagrou uma concepção produtivista da educação, baseada em princípios de racionalidade técnica, bem como de eficiência e produtividade. Assim, elas foram pensadas como proposta emergencial e experimental frente à carência de professore(a)s para ministrarem disciplinas específicas (principalmente na área das Ciências Naturais e Matemática) em um contexto de aumento dos índices de escolarização.

Com as licenciaturas curtas se concretizou a fragmentação do grau acadêmico de graduação na formação de professore(a)s, uma vez que as licenciaturas, antes com previsão de 04 a 06 anos para integralização, foram parceladas em curtas e plenas, sendo as primeiras destinadas ao magistério no 1º grau e as últimas para o 2º grau.

Ferreira (1983, p. 158), analisando a proposta dessas licenciaturas que teriam nascido como emergenciais, porém se tornaram definitivas, tendo, inclusive, se proliferado por todo o país, afirma que “[...] a fragmentação da graduação evidencia que se pretendeu manter através do grau acadêmico a hierarquização social e do trabalho”. E mais adiante, complementa seu raciocínio nos seguintes termos:

Com a fragmentação do grau acadêmico, o conhecimento e as atividades acadêmicas foram também hierarquizadas. As licenciaturas tornaram os conhecimentos fragmentados e pulverizados pelas diversas disciplinas que compõem a “área de estudo”. As abordagens são superficiais, uma vez que a redução do tempo de integralização do curso não permite nenhum aprofundamento. Assim sendo, as licenciaturas curtas vieram empobrecer a qualidade de formação do professor, limitando o conhecimento, impedindo a capacidade de pensar criticamente [...] (FERREIRA, 1983, p. 159)

No caso do curso de Ciências, um currículo mínimo foi proposto pelo CFE, tendo em vista uma formação polivalente em tempo reduzido e a baixo custo, sendo inclusive definido como modelo único e obrigatório, em substituição às licenciaturas plenas em Biologia, Física e Química (BARCELLOS, 2013).

Todavia, em decorrência da contraposição das grandes universidades, dos movimentos organizados de educadore(a)s e de instituições de pesquisa e sociedades científicas, materializada oficialmente por documento redigido pela Sociedade Brasileira de Física, como resultado desses debates e disputas, as licenciaturas plenas não foram extintas, continuando a ser oferecidas em universidades mais tradicionais. Porém, as licenciaturas curtas

foram criadas e passaram a ser opção de instituições menores. Tendo duração entre dois e três anos, deviam contemplar todos os campos dos conhecimentos do ensino fundamental (ginasial, ou 1º grau, à época), visando formar um tipo de docente polivalente, capaz de desdobrar-se para lecionar várias disciplinas, coerente com uma lógica cuja a ênfase recaía sobre o aspecto quantitativo da problemática da formação inadequada e da escassez de professore(a)s, até mesmo em detrimento da qualidade.

A proposição dessas licenciaturas revela um quadro de ausência de uma política de formação docente e ao mesmo tempo explicita a opção pela improvisação, em detrimento de uma real preocupação e da implantação de medidas adequadas para o atendimento da demanda com padrões mínimos de qualidade. Isso porque, na avaliação de Nascimento (2012, p. 341), “[...] a perspectiva era a do mínimo por menos, isto é, o mínimo de qualificação necessária ao exercício da atividade docente pelo menor custo e tempo possíveis. Nesta perspectiva mais valeria uma formação aligeirada do que formação alguma”.

Por fim, consideramos também oportuna e, em grande medida, não anacrônica, a análise de Ferreira (1983, p. 159) sobre a implantação das licenciaturas curtas como política de formação docente naquela conjuntura:

A fragmentação da graduação parece ter sido, também, uma forma encontrada pelas autoridades para conter o fluxo de estudantes no ensino superior, aliviando a pressão sobre a Universidade. Com essa medida conseguiu-se o aumento de atendimento da demanda de vagas a custos adicionais reduzidos. A redução de custos deve-se ao menor custo aluno/hora, uma vez que as carreiras de curta duração proporcionam economia de tempo, de recursos materiais, de espaço físico, de recursos humanos, de equipamentos, e de despesas salariais, ao mesmo tempo que satisfaz mais rapidamente o objetivo da demanda, qual seja, ofertar um diploma de nível superior.

As aproximações certamente ficarão mais evidentes na continuidade de nossas reflexões, mas por hora reiteramos o que discutíamos na primeira parte deste trabalho, no que se refere às convergências da proposta das LI, no âmbito do movimento de expansão/interiorização da UFMA, com o receituário neoliberal que se baseia na lógica do custo-benefício. Tal como as licenciaturas curtas, implantadas na segunda metade do século passado durante o regime militar, vamos cada vez mais fertilizando o terreno das reflexões sobre a LI como alternativa para a minimização da pressão sobre a Universidade, no sentido de ampliar as oportunidades de acesso mediante um custo baixo – pensando-se pelo viés econômico.

Como um certo retorno ao passado, a proposta em tela reitera a dualidade na formação docente sinalizada por Ferreira em 1983, agora por meio da configuração de uma licenciatura curta e interdisciplinar, para o magistério no Ensino Fundamental, e para uma

“atuação mais qualificada no Ensino Médio”, um aprofundamento com maior duração e no modelo disciplinar, conforme sugere o próprio PPC (UFMA/PROEN, 2010, p. 7).

São procedentes, então, as análises de dois dos sujeitos informantes da pesquisa acerca do termo “inovação” quando referido ao projeto original das LI. O Sujeito 3 ressaltou a inexistência de modelo semelhante a no Brasil, por isso pensa que o termo deve ser entendido “[...] unicamente” nesse sentido, ou seja, “[...] inovador porque realmente nunca foi tentado” e acrescenta: “[...] sem outro juízo de valor que possa estar agregado a essa palavra; porque quando se fala de inovador geralmente as pessoas acham que tem um sentido moral, de bom, tudo que é novo é bom; mas nem tudo que é novo é bom como essas licenciaturas tem mostrado”. Converge com essa visão a assertiva do Sujeito 2; “não há dúvida que é uma inovação; mas não uma inovação que deu certo”. A razão de análise por esse viés ficará mais claras na continuidade do texto.

Por fim, é cabível ajuntar que no âmbito da discussão acerca da necessidade de a universidade brasileira dar resposta às demandas de formação de docentes para atuar na Educação Básica, o PPC aponta dois aspectos que estariam conectados e desafiando esta instituição: os recursos – limitados para ofertar licenciaturas específicas presenciais de todas as áreas de conhecimento em todos os novos campi – e a estrutura disciplinar e departamentalizada (UFMA/PROEN, 2010, p. 9). E é no bojo dessa discussão que vamos entendendo a defesa desse modelo de licenciatura baseado no argumento de que ele seria mais coerente e apropriado para o desenvolvimento institucional da UFMA no interior do estado.

Não obstante percebermos uma carência de fundamentação para essa assertiva, uma vez que outros elementos não são, na sequencia próxima da argumentação, direta e claramente aventados, arriscamo-nos a vincular essa asserção aos debates e políticas consubstanciados nas demandas para a reconstrução do pacto social para o fortalecimento das relações capitalistas nessa fase de mundialização, na qual novas concepções de Educação Superior e de Universidade, em particular, no que diz respeito à sua estrutura organizacional e gestão, ocupam lugar de relevância. E vamos também reforçando a afirmação, já explicitada, acerca da a amplitude da proposta dessas novas licenciaturas, para além de uma reforma curricular. Na seção seguinte, nos deteremos sobre tal assunto.

4.4 Uma proposta de formação em licenciatura articulada a novas possibilidades