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Retratos da rede municipal de ensino de Santos, retratos de professores:

CAPÍTULO 2 – DOCENTES E SOCIEDADES MIDIÁTICAS: PENSANDO A FORMAÇÃO

2.1 Retratos da rede municipal de ensino de Santos, retratos de professores:

Com a intenção de contextualizar o local de realização desta pesquisa, faço um breve retrato da cidade de Santos. É uma cidade de porte médio, com aproximadamente 500 mil habitantes, localizada no litoral do Estado de São Paulo. Tem uma tradição histórica de ser, ao mesmo tempo, uma cidade conservadora, constituída pelo desenvolvimento das lavouras de café e seu escoamento pelo porto, o que a aproxima da trajetória das elites que constituíram o Brasil, ideológica e culturalmente, e também um local de resistência às imposições ou restrições impostas por governos autoritários, com participação política dos munícipes nos rumos da cidade. A economia gira em torno das atividades portuárias, do comércio e da prestação de serviços. Santos integra a região metropolitana da Baixada Santista, sendo a cidade com melhores índices educacionais da região. A cidade conta hoje com uma rede municipal de ensino com aproximadamente 70 unidades, entre escolas de ensino fundamental I, II e infantil. Tem, em média, 4000 professoras e professores trabalhando nessas escolas, em diferentes turnos: matutino, vespertino e noturno.

Trabalho nessa rede municipal de ensino há, aproximadamente, 15 anos. Boa parte desse tempo trabalhei em cursos de formação inicial, nível médio, o chamado curso de Magistério ou Escola Normal9. Para acompanhar atividades de estágio das alunas em formação inicial, visitava as várias escolas de educação infantil e ensino fundamental da rede e desenvolvia, junto às alunas, atividades nessas escolas com as crianças e adolescentes que ali estudavam. A rede municipal de Santos é uma rede que conheço de forma próxima, em seus cotidianos de trabalho, de processos de ensino aprendizagem, em suas facetas diversas de relações humanas.

9 O Curso de Magistério na rede municipal de Santos foi criado como projeto experimental de formação de professores, sendo trabalhado em período integral. Vigorou até 2010, em função da legislação vigente, que determina formação em nível superior.

Para os estudos desta pesquisa, visitei diversas escolas da rede municipal, em especial as escolas da chamada zona leste. 10 Dialoguei com professoras e professores em seus horários de reunião pedagógica, conversei com as equipes técnicas das escolas, entrei nas escolas, nas salas de professores, caminhei pelos corredores das escolas, enfim, estive presente nos cotidianos das escolas.

Diante das observações e olhares que construí nestes tempos em que estava nas escolas da rede municipal, se pudesse apresentar um retrato da professora/professor que eu vejo hoje em atuação eu diria que, na maior parte das vezes, é uma professora/professor cansado, com pouca esperança em relação às possibilidades de transformação do seu dia a dia. Uma professora/professor que está com a alma desiludida, que perdeu o brilho no olhar que caracteriza o ser humano quando estamos fazendo algo que amamos, algo pelo que vale a pena viver, algo que nos traz sentido e significado. Professores sem entusiasmo são aqueles que parecem não vislumbrar o que podem criar, que não vêem o novo, não percebem o seu próprio potencial e o de seus alunos. Um professor que vive uma crise da sua identidade profissional, do seu saber e do seu saber fazer.

Mas este retrato que faço dos professores de Santos, não é um retrato localizado somente nessa cidade ou região. É hoje um retrato possível de ser feito no país como um todo. As condições de trabalho dos docentes, as questões salariais e de carreira, o cotidiano das salas de aula são questões que perpassam os cotidianos dos docentes das mais diversas partes do Brasil. Este cansaço do professorado frente às adversidades e realidades enfrentadas todos os dias tem sido objeto dos mais diversos estudos, que apontam para a necessidade de pensarmos o fazer docente, seus processos de formação, as condições desse fazer e dessas instâncias de formação. Estes estudos sobre o desânimo dos professores, sobre sua apatia, apresentam esse quadro como uma síndrome que atinge principalmente os profissionais, como são os professores, que são encarregados em seus trabalhos cotidianos do cuidar de outras pessoas, no caso, os alunos e alunas. Para denominar esta síndrome

Burnout foi o nome escolhido; em português, algo como ‘perder o fogo’, “perder a energia” ou “queimar (para fora) completamente” (numa tradução mais direta). É uma síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido da sua relação

10A Secretaria de Educação de Santos dividiu as escolas em zoneamentos, segundo os bairros da cidade. Temos quatro zonas: leste, noroeste, morros e área continental.

com o trabalho, de forma que as coisas já não o importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil. (CODO e VASQUES- MENEZES, 2006: 238)

Esta situação dos professores, este sentimento de desencanto e desilusão, de certa apatia, é também descrito por Esteve ao falar das tentativas de reforma do ensino em países europeus nos anos de 1990:

...estas reformas surgem num momento de desencanto, sendo olhadas com grande cepticismo: a sociedade parece que deixou de acreditar na educação como promessa de um futuro melhor; os professores enfrentam a sua profissão com uma atitude de desilusão e renúncia, que se foi desenvolvendo em paralelo com a degradação da sua imagem social. (ESTEVE, 1995: 95)

Portanto, o retrato que faço da rede municipal de ensino de Santos e de certa desistência do educador frente a tantos percalços vivenciados nos cotidianos, é um retrato que se pode dizer, está generalizado em todo o Brasil e também em outros lugares do mundo, lugares conectados pelos processos de globalização, em todas suas benesses, mas também em todas suas problemáticas sociais.

Esse retrato feito em relação aos educadores é um retrato que reconhece todas as dificuldades da vida diária da maioria das professoras e professores desse país: não ganham bons salários, compatíveis com as necessidades da vida humana; tem duas ou três jornadas de trabalho e sendo a grande parte mulheres, outra jornada em casa, com serviços domésticos; são professoras e professores expropriados dos seus saberes e fazeres; trabalham em escolas, em sua maioria, com infra estrutura péssima; são professoras e professores numa sociedade que vive uma crise de valores, onde respeito, solidariedade, ética, parecem desaparecer de nossas atitudes cotidianas.

Ao pensarmos sobre a realidade e as condições de trabalho vividas pelos educadores torna-se evidente que um mundo globalizado e complexo como o nosso traz demandas de trabalho igualmente complexas.

Para dar conta delas é necessário que os profissionais da escola tenham um elevado nível de qualificação e, evidentemente, recebam uma remuneração correspondente à importância da sua atuação e contem com condições adequadas para realizar o seu trabalho (...) é necessário um processo que ressignifique a condição docente, promovendo a melhora do estatuto profissional e das condições de vida e trabalho dos professores, sem o qual fica difícil a concretização de uma mudança da

escola e da qualidade das aprendizagens aí vividas pelos estudantes. (ALMEIDA, 2004:107-108)

Com demandas mais complexas, há uma real necessidade de que todos os processos dêem conta dessas demandas, desde a formação dos docentes, até a infra-estrutura colocada a disposição para os trabalhos a serem desenvolvidos, passando pelas questões salariais. Dados citados por AGUIAR (2004) apresentam um retrato recorrente em escolas da rede pública: a falta de recursos existentes, inclusive se comparadas com as escolas da rede privada:

Estudos têm demonstrado a importância das condições materiais das escolas para o desenvolvimento de atividades que favoreçam uma aprendizagem satisfatória. Todavia, tais condições ainda apresentam sérias limitações, inclusive com significativas diferenças entre a rede pública e a rede privada, como pode ser observado no Censo Escolar de 2002: nas escolas com classes de 1 a 4 série do Ensino fundamental, em todo o Brasil, apenas 19,5% possuem bibliotecas, enquanto nas escolas privadas chega a 79%. Das escolas privadas, 56% têm laboratório de informática e na rede pública somente 4,8% delas. (AGUIAR, 2004: 132)

Ou seja, embora se exija cada vez mais do trabalho do professor, cada vez se exija maior diversificação de metodologias, cada vez se exija mais habilidades, diante das novas demandas sociais, estas exigências nem sempre são acompanhadas por uma infra-estrutura que colabore para o bom andamento dos trabalhos e nem por cursos de formação continuada que permitam um maior desenvolvimento dos professores quanto a sua profissionalidade e as exigências que lhes são feitas, tanto pelos governos como pela própria sociedade civil.

Nas palavras de Batista e Codo:

A expansão do ensino público aconteceu sem cuidado com a qualidade da infra-estrutura das escolas. Edifícios com condições ruins, carência às vezes de materiais básicos de funcionamento da escola, ausência bem mais acentuada de recursos de apoio ao ensino e de recursos que promovem melhores condições de trabalho, etc. (BATISTA e CODO, 2006: 71)

Ao fazermos um retrato do educador hoje, este retrato só pode ser feito se retratarmos também os tempos e espaços onde estão inseridos os educadores. Ou seja, a um retrato do educador, corresponde também um retrato da escola brasileira, em suas reais condições de trabalho cotidianas, em face das demandas sociais que temos hoje, nas sociedades contemporâneas, inclusive considerando as reflexões apontadas neste

trabalho, quais sejam, estarmos inseridos em sociedades midiáticas, com configurações sociais diferentes das tradicionais configurações a que estávamos todos acostumados e adaptados, inclusive professores e alunos. Pensar a formação docente, passando pelas percepções diante de como estão os professores e qual a situação das escolas e da educação, exige um pensar enraizado, refletido a partir das condições reais de trabalho e de construção da identidade profissional docente nestas condições reais.

As novas demandas sociais trazem novas demandas para a formação de docentes, para a constituição da identidade social dos professores. Os conhecimentos exigidos dos professores estão relacionados com a formação desta identidade, em como, de que formas, o professor será exigido socialmente, será considerado competente profissionalmente falando. As novas demandas sociais contemporâneas também estão relacionadas à crise que percebemos nos educadores hoje:

A crise de identidade do educador é também o resultado singelo do fato que ele, atualmente, não tem segurança a respeito do que deve saber e ensinar e de como deve ensinar. Um problema central é a formação do educador, ou seja, o processo por meio do qual ele se apropria do saber e do saber-fazer, e que significa seu ingresso na “confraria”. (BATISTA e CODO, 2006: 71)

Nesta pesquisa, que tem como objeto de estudo, as articulações entre formação de professores e aspectos educacionais de uma sociedade midiática, percebe-se esta crise de identidade do professor quanto a seus saberes e fazeres. Destaco, como já colocado antes, que este não é um retrato somente da região da Baixada Santista, mas um retrato da escola brasileira e de seus professores, um retrato relacionado a nossa atual situação sócio cultural, no Brasil e no mundo, em que estamos ressignificando também estes saberes e fazeres docentes, em função de novas realidades e exigências sociais que estamos todos experienciando.

Diante deste quadro, diante deste retrato breve de como estão os professores em seus cotidianos, penso algumas questões que se fazem importantes para refletirmos sobre a formação de docentes: como nos construímos professoras e professores? Como chegamos à situação atual dos nossos processos formativos? Como pensar novos/outros caminhos para a formação, que contribua para trazer de volta nosso entusiasmo diante do ato de ensinar e aprender? Como pensar a formação docente nessa sociedade contemporânea, com outra configuração social, inclusive a configuração criada também pelas mídias e impactos tecnológicos em desenvolvimento acelerado?

Para pensar um pouco sobre estas questões, discuto em seguida, aspectos da legislação educacional que trata da formação dos docentes e questões centrais dos processos de formação dos professores analisadas por estudiosos desse campo. Ao final, discuto como as instituições formadoras de professores apresentam seus quadros curriculares inseridos em seus projetos pedagógicos, para pensarmos sobre as propostas de formação e as novas demandas sociais, em especial as relacionadas a processos educomunicacionais.