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2 AGRICULTORES E O MERCADO

4.3 CIRCUITO DA REDE ECOVIDA: DIÁLOGO ENTRE ATORES E

4.3.2 Reunião do Circuito

A reunião do circuito recebe representantes dos diversos núcleos da Rede Ecovida, mas dentro do Circuito, eles são identificados a partir da Estação que representam. Cada estação cumpre a função de apresentar as demandas locais, dos canais de comercialização que conhecem, e detalhar as variedades e as quantidades de produtos que seus grupos têm a oferecer. A reunião serve, de um modo geral, para intercambiar a produção entre as diferentes estações e fortalecer a base da oferta para

os canais, através de um sistema de trocas próprio do Circuito, que ocorre entre as estações num sistema de compras e vendas. Duas reuniões foram acompanhadas em nossa pesquisa com o objetivo de observar as relações e visualizar o embeddedness de acordo com Granovetter (1985; 2007).

A reunião começa com os participantes se apresentando, pois sempre pode haver algum convidado, ou representante de alguma empresa interessada no circuito. Dentre as estações presentes podemos citar a Ecosserra de Santa Catarina, a Aopa de Curitiba/PR, a Ecoterra do Rio Grande do Sul, a Cooperafloresta do norte pioneiro do Paraná divisa com São Paulo, entre outras, como a própria estação de São Paulo. Podemos identificar organizações que também levam produtos para serem comercializados no Circuito como a Coopervida, Econativa, Hortibento, entre outras. E ainda empresas com o objetivo, a princípio, de comprar produtos como a Solovivo, Horta e Arte, ambas de São Paulo. Dentre as organizações participantes, há também ONGs de assistência técnicas ligadas à Rede Ecovida e ao Circuito Sul, como o Cetap de Passo Fundo (Centro de Tecnologias Alternativas Populares), o Capa de Erechim (Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia) e o Ceagro de Laranjeiras do Sul.

Na reunião os participantes trazem diversos assuntos de interesse de todo o circuito: a criação de novas rotas, que foram previamente levantadas em reuniões dos grupos e estações locais; a participação conjunta nas vendas; contato de novos canais de comercialização. Em relação ao novo contato, avalia-se a ele com base no envolvimento e conhecimento que possui.

Outros canais e cidades de uma determinada região do circuito foram visitados por um representante do circuito, anteriormente a reunião, de modo a estreitar a relação e na ocasião houve a oportunidade de se apresentar a disponibilidade de oferta de que todo o circuito dispõe, bem como puderam dialogar sobre as necessidades nesses canais. A situação envolve uma aproximação que pode abrir o canal para um maior número de variedades que o circuito pode oferecer.

São observados, também, os municípios que fazem parte da chamada pública para a compra de orgânicos e as respectivas capacidades, local e regional, que o circuito possui, e são avaliadas. A estrutura envolvida para a oferta aos diferentes canais, bem como os custos são colocados em vista de todos, durante a reunião, e

relacionados com o preço a ser obtido e, avalia-se a rentabilidade dos produtos. São convocados os diferentes parceiros, representantes de estações, dentro do circuito de modo que sejam capazes de alcançar as quantidades necessárias para o atendimento das chamadas.

Institucionalmente, o limite por agricultor para o atendimento da chamada também é observado e cada estação/núcleo, que organiza as cotas dos agricultores. Na reunião do circuito, discutiu-se também os procedimentos legais que vão desde a emissão de notas, os procedimentos de entregas e o controle dos fluxos de mercadorias dos agricultores, questões previdenciárias de interesse de cada agricultor e a rastreabilidade dos produtos, neste caso, as atualizações e novidades sobre todas as atividades que envolvem o circuito. Há também abertura para o relato sobre tendências do mercado, sob o ângulo de diversos atores, bem como a situação política- institucional no cenário nacional, pela perspectiva da continuidade da política de compras públicas. As licenças, como as da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para rotulagem, são pormenorizadas para que os representantes dos núcleos/estações observem a conformidade de sua áreas, grupos e associações. A questão da rastreabilidade dos produtos via associações e cooperativas são comparadas e avaliada quanto à adequação de cada uma.

As diversas situações enfrentadas e os diferentes momentos em que o circuito passou por rupturas e teve de se readaptar e se reorganizar, para assegurar sua própria viabilidade, são relembrados como experiências que orientam as decisões atuais ao mesmo tempo em que são pensadas novas formas de diversificar o acesso ao mercado alimentar, para que as organizações não se cristalizem ou permaneçam concentradas, ou dependentes de algum canal, como a compra institucional, por exemplo. Pensado desse modo, discute-se o objetivo de fortalecimento e consolidação do circuito, em um amplo debate entre os diversos agricultores, assim como procura-se identificar os riscos e a necessidade de mudanças.

Na reunião também participaram agricultores e representantes de cooperativas locais, os quais abordaram os temas: a avaliação dos canais e o desempenho da organização e de sua produção. A abertura para um planejamento da produção integrado ao circuito e a compra/venda de produtos também são colocados como

possibilidades para estreitar a relação dos núcleos com os grupos, tendo estes autonomia de respaldar e aderir a articulação do planejamento. Nessa situação, os representantes dos grupos avaliam as possibilidades de imergirem na organização de acordo com suas próprias razões, seja de suas disponibilidades de fatores ou as diversas condições.

O relato sobre a participação em reuniões dos grupos envolve o mapeamento das produções, as capacidades dos próprios grupos e a abertura para parcerias com novos canais. O encaixe, ou uma demonstração de reciprocidade, entre as localidades, devidamente representadas, e o circuito como um todo, é requerido a partir de um apelo alegórico dos representantes dos grupos, que a seu modo, expressam os sentimentos e se há satisfação nos próprios grupos, em suas particularidades. A confiança, o aceite das condições, a aprovação do circuito, estão sujeitos a racionalidade dos agricultores e passam pela prova quanto ao estabelecimento da virtude de justiça e solidariedade. Os diferentes termos, o andamento das rotas, as próprias estações são colocados sob os olhares dos diferentes atores e qualquer sinal de divergência pode caminhar para a retomada de alguma questão.

A ideia fundamental do circuito é o melhor aproveitamento possível das rotas, levando diversidade aos canais de comercialização, procurando otimizar o uso dos caminhões, que devem, sempre que possível, levar e trazer diferentes mercadorias.

A reciprocidade está presente na relação entre as estações que devem ao mesmo tempo vender e comprar mercadoria para assegurar a maior diversidade em seus canais de venda locais e ainda manter o custo das operações por mercadorias bem distribuídos e tão baixos, por unidade, quanto o número de mercadorias transportadas permitir. As reuniões são frequentes, uma a cada 45 dias ou 60 dias, tornando a relação entre os participantes mais próxima, pois passam a acompanhar juntos os processos.

O momento da reunião também conta com notícias do andamento das estações que, além de promoverem o abastecimento de diversos canais, estabelecem novos contatos constantemente. A procura das estações por consumidores para compras individuais e coletivas ou pessoas interessadas na oportunidade de negócio, como cestas ou novos canais, estão entre as notícias repassadas. A participação do circuito

em eventos, representado por uma de suas estações, também é algo que favorece a visualização da organização por consumidores e pessoas com diversos interesses.

A complementação das informações estrutura a tomada de diversas decisões durante as reuniões. Entre as questões levantadas e os esclarecimentos, a credibilidade de cada fala tem a capacidade de transmitir confiança e concordância entre os participantes. Os mecanismos de balanço de contas seguem a cargo das estações que em maior ou menor grau contam em alguns casos com alguma informatização, mas as ofertas de produtos ainda requerem frequentes reuniões para o firmamento de compromissos de compra, venda e produção.

Talvez o momento mais esperado das reuniões, por se tratar do assunto que justifica a criação do circuito, é a rodada de oferta e demanda. Neste momento, todos os participantes que falam em nome de algum grupo ou estação apresentam os números sobre a quantidade de alimentos que dispõem no momento da reunião, para comercialização. Também se apresentam as demandas de produtos para o atendimento de canais locais e compras institucionais, principalmente.

Este momento de oportunidade de negócios de compra e venda entre os grupos, estações e empresas convidadas a participar da reunião envolve a mística da atuação de cada indivíduo, ao procurar assegurar o escoamento de alguma parte, senão toda a produção, de seu grupo. Nesta situação a consideração dos preços e condições de transporte aparecem como informações chave. O próprio balanço dos indivíduos acerca da reciprocidade, em oposição ao oportunismo, nas negociações trás elemento que qualificam e definem a força das relações estabelecidas nessas rodadas. A consideração da sazonalidade, das diferenças regionais de produtos e variedades, as quantidades ofertadas pesando para um lado em detrimento de outro e as distinções entre os integrantes das empresas externas, estão entre os elementos que criam a atmosfera de uma negociação que se pretende ser satisfatória para os lados envolvidos, ainda que se pese a proximidade. Aqueles que representam alguma demanda, seja institucional ou de algum canal de comercialização, têm bem definidas as suas exigências e os ofertantes buscam o melhor arranjo através das rotas estabelecidas. A variedade de preços, condições, custos de frete, logística, excesso e

falta de produtos, diferentes relações e parcerias, são algumas das situações encontradas na reunião.

O grupo reunido relembra que o Circuito Sul foi criado envolvendo agricultores já organizados dentro da Rede Ecovida, e por isso assinalam a importância dos princípios criados em seus grupos de trabalhos para comercialização. Sobre esse ponto discutiam a conformidade com esses princípios e reviam se os rumos tomados estariam de acordo. O aprendizado e o questionamento fazem parte dessa construção social e quando se pensa nos casos particularizados, sobre como fazer negociação e ter reciprocidade, em meio a uma situação de riscos e responsabilidades diferentes para cada ator, uma reflexão dá o tom do diálogo: “há casos em que há sobras e há casos em que há faltas”, então pergunta-se: “como devemos fazer?”. Alguns membros são mais pragmáticos em algumas situações, evidentemente que há um repertório de individualidades como em qualquer outra organização, mas nesse espaço parecem um pouco mais horizontais, de modo que os indivíduos têm espaço para se expressarem livremente. Todavia, ainda assim, vários atores assumem posições de centralização, como o caso dos representantes das estações e de grupos, em diferentes magnitudes. E também há expectativas de que as empreitadas sejam bem-sucedidas cabendo a cada qual cumprir com seu papel, e “caso alguém dê uma bola fora poderá ser colocado para fora” ou “quem quer fazer só jogo de mercado tá excluído do processo”.

Uma situação encarada como certo oportunismo fora notada pelo grupo quando durante certo período de exclusividade sobre um produto, que assegurou algum poder de monopólio temporariamente, um parceiro definiu preços mais altos que os esperados pelo grupo como um todo. Percebido isto, fora debatido sobre como lidar com a situação. Também são vistas as regras e acordos para o recebimento de novos atores e parceiros, e, para isso, haveria uma reunião dedicada a este ponto.

A exemplo disso, a nova rota envolvendo trocas com uma associação do Nordeste, possuidora de grande potencial para o circuito pelas diferenças entre biomas, clima, estações e sazonalidades para a complementação de diversas variedades, que é vista com grandes expectativas depassar pela prova das primeiras transações. Nessas novas relações, também acenam para a cautela sobre as garantias e responsabilidades do novo parceiro, quando a confiabilidade surge como tema, e

envolve a tomada de decisão coletiva. O amparo institucional, como a certificação do novo parceiro, aparece como critério levado em consideração, além disso, a frequência do contato e dos retornos à estação envolvida na intermediação é questionada, que poderia indicar o envolvimento do novo parceiro diante da proposta. Ainda se consideram a qualidade dos produtos que devem ser garantidos, não havendo qualquer antecedente, aponta-se como um elemento que pode atender as expectativas ou ser reprovado nos canais ligados ao circuito. Nesse ponto, fala-se sobre “firmar a parceria” para que ambos os lados possam se beneficiar com a maior diversidade em função das trocas.

Fotografia 01 – Reunião de agricultores do Circuito Sul

Fonte: Fotografia pelo autor.

Por fim, os produtos/variedades são avaliados uma a uma em termos da qualidade, a razoabilidade dos preços, do benefício e da conveniência da compra pelas estações do circuito, sendo que estas devem fazê-lo em função da projeção de suas próprias vendas e repasses. A consecução do pedido realizado envolve todo o circuito, a organização da logística, a distribuição dos pedidos de cada estação e a

responsabilidade e compromisso da estação que nesse processo assume o papel de redistribuição e centralidade.

Outra situação de escassez de alguns produtos durante o ano, como foi um caso envolvendo manga, em virtude da própria sazonalidade, repercutiu por causa de uma parceria que fora mantida com exclusividade por uma estação. Sobre isso discutiram a redistribuição das mercadorias e o acesso pelas demais estações e se houve oportunismo pela estação envolvida ao manter sigilo sobre o recebimento de produtos que todos procuravam. Tal situação abala a confiança dos participantes e é especialmente delicada quando envolve atores ligados por laços mais fracos, e mesmo a situação de escassez de uma mercadoria é reconhecida como uma oportunidade para as demais estações mesmo que seja resultado de uma controvérsia.

Alguns dos atores, em diálogos exploratórios abrem seus sentimentos ao demonstrarem que carregam preocupações pelo sucesso/fracasso de seus grupos, bem como o envolvimento chega a custar horas não bem definidas de trabalho à custa até mesmo do bem-estar e saúde de alguns membros.

Ainda durante a reunião, dois outros casos também despertam o interesse. O primeiro, uma nova estação, de Laranjeiras do Sul, especialmente para nosso estudo, enfrenta o desafio de que sua principal especialidade com potencial de viabilizar a rota, o leite, enfrenta barreiras institucionais no âmbito da comercialização deste tipo de produto orgânico. Isso envolve novas normas e regulamentações que partem da Anvisa e têm modificado e até barrado o comércio de muitos produtos tradicionais e regionais, como muitos casos de queijos coloniais e outros produtos lácteos. O segundo caso, foram as presenças de agricultores com perfil menos empreendedor e que demonstram traços e características emblemáticas ou típicas de camponeses. Sua fala mais moderada também aponta a demanda dos canais que representam, como frutas de outros locais, especialidades de outras regiões e reforçam o intercâmbio de produtos, como bananas, maçãs, citrus com variedades genéticas locais, e outras variedades nativas e crioulas.

Alguns produtos são transacionados para a garantia de atendimento contínuo aos respectivos canais, com algumas variações nas demandas por estação do ano,

produtos como feijões, cenouras, tomate, etc. são foco de muitas transações em função da escassez ou abundancia de cada local.

Talvez um dos maiores desafios que circuito enfrenta seja a proporção que assumiu. Por isso, diálogos sobre a sistematização das operações, os diferentes preços para cada região em função dos fretes, a criação de novas rotas com transportes menores, a possibilidade de extensão para outros estados e regiões, o próprio amadurecimento administrativo e político entre os membros, a sustentação dos processos através dos arranjos institucionais firmados através das estações de compra e venda com equipe própria, a imersão particular de alguns envolvidos que se empenham em coordenar as estações ou então transportar sincronizadamente os produtos entre três ou até quatro estados, são alguns dos assuntos tratados como próprios da experiência em continua construção e revelam o mérito da iniciativa.

5 AGRICULTORES EM CENA: O ESTUDO SOBRE ENRAIZAMENTO SOCIAL NOS CIRCUITOS

Os tópicos a seguir foram resultado do amadurecimento da pesquisa através de entrevistas exploratórias preliminares, quando passamos a compreender melhor quais deveriam ser as perguntas trabalhadas e o modo como deveriam ser ajustadas a cada realidade. Só então conseguimos definir um roteiro de entrevistas que serviria para compreendermos nosso tema. Sobre esta etapa de entrevistas definitivas de cada caso, gostaríamos de expressar que foram se acumulando as experiências e a consciência do tema a cada ida a campo e a cada entrevista realizada. A partir disso encontramos estas diferentes expressões e interpretamos segundo a tese do enraizamento social. Este item compreende as entrevistas com agricultores combinadas com a realidade dos circuitos de proximidade estudados.

5.1 ENRAIZAMENTO DOS AGRICULTORES NA AGROECOLOGIA E NOS