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4 2 – REZADEIRAS, BENZEDEIRAS E PARTEIRAS: DESCREVENDO ALGUMAS ATIVIDADES E RESPONSABILIDADES DAS MULHERES XAKRIABÁ

4 – DINÂMICAS DO COTIDIANO: ATIVIDADES E RESPONSABILIDADES DAS MULHERES XAKRIABÁ

4 2 – REZADEIRAS, BENZEDEIRAS E PARTEIRAS: DESCREVENDO ALGUMAS ATIVIDADES E RESPONSABILIDADES DAS MULHERES XAKRIABÁ

Na busca por compreender a experiência das mulheres, observei, conforme já colocado, que elas parecem se envolver com mais intensidade que os homens na preparação das crianças para a vida adulta, observação esta que me levou à importância da função social das rezadeiras, benzedeiras e parteiras. Diante disso, ressalto a necessidade de apresentar, mesmo que sucintamente, que lugar essas figuras ocupam no contexto sociocultural dos Xakriabá.

Na Terra Indígena Xakriabá, as práticas religiosas se associam a um sincretismo que incorpora expressões simbólicas ligadas: 1 - ao toré – ‘religião indígena’ (Arruti, 2004); 2 – ao xamanismo – cuja importância cultural está no lugar ocupado pelos pajés na estrutura social do grupo; 3 – ao catolicismo, resultante do contato com Missões Católicas, ocorrido a partir do século XVIII – cujo calendário incorpora eventos como a Festa dos Santos Reis, os rituais da Semana Santa, a Festa de Santa Cruz, a Reza de São Benedito, dentre outros; além de cultos semanais nas residências e missas periódicas nas duas igrejas da Terra Indígena45.

No que diz respeito especificamente às práticas religiosas relacionadas ao catolicismo, pode-se dizer que existem, no mínimo, duas matrizes: A primeira consiste na realização dos rituais tradicionais baseados em trocas orais e gestuais, como é o caso da Festa de Santa Cruz e dos rituais da Semana Santa. Nesses rituais, os rezadores mais velhos adquirem importância singular durante a realização, em função do lugar que ocupam na hierarquia do saber e do poder, por

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É importante registrar que, mais recentemente, tem aumentado o número de pessoas convertidas a religiões pentecostais. Dentre os pertencentes a essas religiões, estão o cacique e alguns membros de sua família.

serem os guardiões da memória coletiva do grupo. A segunda matriz diz respeito às manifestações religiosas introduzidas recentemente no calendário dos Xakriabá, como é o caso dos cultos dominicais e do Lava-Pés. Nesse caso, observa-se o empenho dos sujeitos mais escolarizados em introduzir novas formas de realização ritual, nas quais o uso de material escrito torna-se fundamental e impõe novas formas de organização do poder e do saber.

Embora existam autoridades religiosas de ambos os sexos, as rezas católicas de ambas as matrizes são celebradas, na maioria das vezes, por mulheres, sendo que, em raríssimos casos, os homens deixam de ser meros expectadores. São elas também as responsáveis por levar as crianças para participar desses eventos públicos de aprendizagem da cultura. Geralmente, as rezadeiras mais velhas são socialmente valorizadas por deterem certos conhecimentos que fazem parte do universo simbólico tradicional dos Xakriabá.

No que diz respeito à atuação dos pajés, durante a realização da presente pesquisa, foi possível identificar três homens e uma mulher. Anne-Marie Colpron (2005) ressalta que na literatura etnográfica sobre os povos das terras baixas sul- americanas o xamanismo é, geralmente, associado ao masculino. As evidências etnográficas da existência de mulheres xamãs têm sido tratadas em termos de excepcionalidade. Em algumas análises (Métraux, 1967, apud Colpron, 2005), essas mulheres foram tratadas como ‘xamãs de segunda ordem’, ou seja, que alcançam legitimidade somente com idade mais avançada, quando estão livres das ‘obrigações sociais femininas’. Tendo por base a crítica a esse tipo de perspectiva, a autora, no estudo do caso dos shipibo-conibo, na região Amazônica, identifica várias mulheres que, assim como os homens, detém poderes e funções variadas, que incluem a maternidade e estágios avançados do poder xamânico.

Pensando no caso dos Xakriabá e da única mulher reconhecida como pajé, pude constatar que é respeitada tanto dentro como fora da Terra Indígena, portanto, que goza de legitimidade social tanto quanto os homens. No entanto, seus trabalhos possuem, aparentemente, algumas especificidades em relação aos trabalhos dos outros pajés (homens). Segundo informações, é comum que algumas pessoas, quando vão se casar, a procurem para saber se o casamento será feliz e se devem ou não fazer festa para celebrar a ocasião. Seus conselhos, nesse sentido, são

muito respeitados. Além disso, ela também é procurada em casos de enfermidades de diferentes naturezas, assim como os demais pajés.

Já as benzedeiras e raizeiras são requisitadas no dia-a-dia das aldeias por pessoas de idades diferenciadas e seus conhecimentos são passados de geração para geração. É possível observar a presença de homens que também desenvolvem essas atividades, no entanto, a maior proximidade das mulheres com a manutenção das famílias, de uma maneira geral, possibilita a elas assumir esses papéis com maior freqüência no dia-a-dia das aldeias.

Em conversas corriqueiras nas aldeias Xakriabá, é comum ouvir histórias contadas pelas mulheres mais velhas sobre o importante papel social das parteiras. Na verdade, a grande maioria das anciãs Xakriabá é ou já foi parteira em algum momento da vida. Quando não havia atendimento sistemático à saúde e acesso às aldeias mais distantes, elas tinham papel social central. Algumas mulheres, em seus depoimentos, não dizem “fazer parto”, mas sim “pegar menino”, o que pode remeter ao trabalho de parto como uma parceria não apenas entre a parteira e a parturiente:

Só recebe a criança a hora que Deus dá a hora. A gente só tá aqui pra receber (D. Lola, Aldeia Vargens).

O trabalho da parteira está para além do momento do parto, mas é composto por diversas etapas que o antecedem e o sucedem, o que exige conhecimento diversificado e experiência. Trata-se de uma atividade desenvolvida predominantemente por mulheres mais velhas, embora existam também homens e mulheres mais jovens que o realizem. As mulheres mais jovens são consideradas aprendizes e, até que assumam a responsabilidade de “pegar menino” sozinhas, precisam acompanhar parteiras mais experientes durante muito tempo. De acordo com depoimentos de algumas parteiras, somente a jovem que se interessa por aprender o ofício é autorizada a participar das atividades que circunscrevem o parto. No caso dos homens, fazer parto não é uma atividade valorizada socialmente, por isso, aqueles que dominam esse tipo de conhecimento não se sentem à vontade para falar sobre o ofício, nem assumem publicamente que o sabem.

Uma das parteiras da Aldeia Caatinguinha, contou que aprendeu a “pegar menino” com a sogra. Segundo ela, sempre demonstrou interesse em aprender o

ofício, por isso, sempre que ia acompanhar uma parturiente, a sogra a convidava para acompanhar. No início ela apenas olhava e ajudava. Quando a sogra morreu, ela começou a ser chamada para fazer partos, no entanto, ainda não sabia todos os passos, por isso, recebeu orientações de um homem, que aprendera a fazer parto com a mãe, também parteira. Ela contou que a primeira criança que pegou, não cortou o umbigo porque tinha medo. Mandou chamar outra mulher para cortar. Na segunda, mandou chamar um homem, liderança da aldeia, e na terceira ela cortou. Contou, com orgulho que amarra o umbigo da criança e ele cai com 3 dias, mas ressaltou também que, para ser parteira é preciso ter muita coragem.

Recentemente, com a implantação do sistema básico de saúde e com a melhoria no acesso às aldeias, as mulheres mais jovens têm optado por ter seus filhos em hospitais. Em algumas aldeias, as equipes do Programa Saúde da Família desenvolvem atividades de formação junto às parteiras e distribuem materiais básicos para serem usados durante o parto. Algumas parteiras acham que esse tipo de atividade é importante, pois permite o aprimoramento das técnicas já desenvolvidas, e se sentem valorizadas enquanto detentoras de um conhecimento reconhecido tradicionalmente pelo grupo; outras, por outro lado, se sentem desvalorizadas e não consideram que o diálogo com o sistema de saúde seja necessário.

Ainda existem aquelas mulheres que optam por ter os filhos na Terra Indígena com parteiras. Por isso, as parteiras afirmam atuar somente em casos de extrema necessidade, quando não é possível remover a parturiente até um hospital. Ao mesmo tempo, ressaltam as diferenças entre os partos realizados na atualidade e os realizados no passado. Atualmente, as parteiras são chamadas quando as mulheres já se encontram em trabalho de parto. Em outras épocas, acompanhavam a parturiente antes e depois do parto, num processo que, geralmente, durava vários meses e se iniciava com a preparação da mulher para o parto e terminava apenas com a cicatrização do umbigo da criança, conforme descreve uma das parteiras da Aldeia Caatinguinha:

De premeiro, a parteira pegava, juntava a carne de vaca, a pitomba, os fedegoso... e dava pra muié quando tava faltando três meses pra ela ter a criança. A gente pegava a vassourinha... e apanhava o mastruz (...) e dava pra ela tomar banho. Porque aquilo ali já era por causa das inchação, já faz parte... pra num ter condições, no dia que ter a criança não tá inchado. (...)

aí quando é no dia não incha. Aí a gente vai pegando aqueles remedinho e vai dando. Pra dar o banho, pra dar assim na boca da noite, né. Pra acabar com a dor que tem por dentro pra ficar só mesmo no dia, só mesmo a dor que tem da criança. (...) Aí, quando chega no dia que a muié vai ter a criança... ela amanhece aborrecida... aí a parteira passa pra segunda fase... já vem com o marido, o marido já vem atrás da gente, né. Chega lá... se ocê tiver uma galinha... ou uma carne ou...de gado ou de porco, o que for. A gente vai e faz um pirãozinho pra ela. A gente faz um pirão e o que mais que ela quiser. Aí a gente vai dá ela: isso aqui é procê ter força, pra ter a criança mais tarde a hora que precisar. Aí olha ali tem umas que come, tem umas que não come... (...) aí a gente bate o dia todo com elas, vai que não termina o dia e aí a gente não vai dormir à noite. (...) Aí a gente fica lá... quando vai de noite, quando aperta a dor... o que que a gente faz? A gente vai lá... põe o gergelim... a gente faz.... a gente pega o gergelim, cozinha, tira a agüinha, dá ela e ela bebe. Muito bom pra criança atarrancar, pra aumentar a dor, pra poder ter a criança ligeiro. Aí a gente dá esses remédio pra ela (...) se for pra ter a criança... a gente sabe que a dor vem logo, porque se não for, aí somente no outro dia outra vez. Agora pode acontecer que a criança, se for pra ter naquele dia... aí quando deu aquele remédio, que apertou a dor... a gente vai lá, põe um pouquinho de... cominho... o cominho de caroço, né!? A gente faz e dá. Aí quando passa uma hora... ela fica ali desinquieta. Aí quando a gente vê que tá na hora mesmo, que a gente vê que ela tá ruim pra ter a criança, que ela já tá sem força, a gente vai lá e pega seis folhas de pimentinha do reino, machuca, põe ela no fogo, faz o remédio e dá. Aí é só dá o remédio mesmo e... rapidinho. Não dá nem tempo do cê ir lá fora, se ocê for lá fora, a hora que ocê chega e a criança já nasceu... Aí cê pega, porque a criança já vai pra nascer, aqui cê é obrigado, ficar aqui. Aí cê pega e põe a perna dela aqui oh. Põe a perna dela aqui e segura aqui atrás. Aí segura aí e aí a criança vai e cai no colo da gente. Aí a criança cai no colo da gente e aí a gente vai, tem uma garrafa, né, que a gente faz o azeite, né, o azeite é da mamona, né!? Que a gente faz é pra curar o umbigo da criança, né. Aí, já tem lá cortadinho, o azeite doce, pra curar... aí a gente pega e faz o quê? A gente vai lá, manda o marido, outra mulher velha que tiver, né, porque nova não entra, nova não tem jeito de deixar entrar. Somente as pessoas mesmo que já sabe. Aí pede pra ir lá apanhar aquela garrafa aí, põe lá no umbigo da criança. A gente vai e põe a criança aqui no colo e corta assim, com essa linha, né, o umbiguinho. Aí já vai, põe assim... põe três dedo, põe três dedo assim no rumo da criança e aí corta. Corta aí.. a gente tem dois trabalho depois que cortar, depois que cortar o umbigo... pode colocar sal na ponta do umbiguinho da criança ou senão põe um garfo no fogo e lá, depois que ele esquenta... põe assim em riba, assim na... bem próximo do umbigo (...). Aí depois que a gente acaba, de curar o umbigo, a gente vai, pega a bacia e põe uma água morninha e banha a criança... banha ele, enrola e põe no pano, enxuga ele, acaba de enxugar (...) veste a roupinha dele e aí enrola e põe lá pertinho da mãe. Aí põe lá perto da mãe e fica lá. Aí quando ocê quiser dá uma banhada... aí vai fazer o quê? Porque aqui as muié... é trinta dias sem banhar o corpo. Com dez dias ela lava as perna e os braço (...) Não pode ter ninguém em casa, mas as parteira sabe como é que faz. Ela pega uma arruda, artimilho, a folha do algodão, põe o mastruz, põe o alho, põe a cebola e aí machuca tudo, faz um molhadinho, coloca o azeite doce e esquenta lá bem morninho. Aí cê vai aqui, põe nela, passa aqui no pé, né, porque aqui tem que ajuntar tudo, porque o trabalho daqui é assim passa aqui, daqui volta pra cá, e deixa aqui (...) Aí vai fazer o quê? Ela vai na cozinha, chega lá ela pega o chifre do gado, o chifre, rala o chifre... pega uns dez dente de alho e torra com o alho e aí pega e põe o chifre com o coentro. Machuca tudo e põe um pouquinho de sal... se for uma muié que bebe pinga, coloca pinga, se for uma muié que não bebe pinga, põe água. Aí põe água, dá ela ai, ai, ai... Quando for no outro dia a muié tá... tá boa! Sentindo nada! E aí no outro dia faz o quê? Levanta cedinho, se não tiver outras pessoa procê cuidar (...)

levanta cedinho, mata uma galinha, faz um pirão bem no jeito e dá ela. E aí a gente tem que ficar mais ela três dia, ou senão cinco dia. Se ela tiver, não tiver sentindo nada... a gente fica mais ela até firmar cinco dia e aí se ela... às veiz... ou cinco dia ou dez dia, né!? Se tiver precisando... Agora a criancinha... a criancinha até no dia apronta o azeite, o azeite de mamona mais o gergelim e põe assim... faz um... e molha... todo dia, com três dia... .... da criança, é três dia,ele cai. Tem muié que é cinco dia pra cair, agora o meu é três dia! (A., Aldeia Caatinguinha, 24 de setembro de 2007).

No depoimento acima, impressiona a riqueza de detalhes com que A. descreve o trabalho de uma parteira, o que aponta para a complexidade do conhecimento que está em questão. Mais do que uma profissional do parto, a parteira é uma tradicional figura de autoridade do conhecimento entre os Xakriabá, incorporando um misto de funções, sendo, ao mesmo tempo, rezadeira, benzedeira e raizeira. As práticas tradicionais Xakriabá tratam o parto como um processo que desencadeia determinadas relações sociais e não, um momento específico, como é o caso do parto realizado em hospitais. Os conflitos que atualmente vêm se desencadeando entre o saber das parteiras e os profissionais do sistema de saúde decorrem das diferenças de concepção no que diz respeito ao parto e ao trabalho da parteira. Ao reduzir o parto a um momento específico e a parteira a mera profissional do parto, o sistema de saúde acaba por desqualificar o saber de uma tradicional autoridade do conhecimento.

Conforme enfatizado anteriormente, as descrições apresentadas neste segmento do texto objetivam apenas descrever sucintamente a importância da mulher Xakriabá – no papel de benzedeira, raizeira, parteira e rezadeira – na reprodução e manutenção da vida e da cultura local. Nos próximos segmentos do texto, descreverei como a mulher atua na reprodução e manutenção da vida e da cultura local através da participação nas instâncias produtivas, mais especificamente, no trabalho na roça, nos trabalhos temporários dentro e fora da Terra Indígena e nos trabalhos fixos assalariados.