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CAPÍTULO 2 – SAÚDE, COMPORTAMENTO E RISCO

4. Risco e Resiliência

“O tempo presente e o tempo passado Estão ambos talvez presentes no tempo futuro E o tempo futuro contido no tempo passado. Se todo o tempo é eternamente presente Todo o tempo é irredimível”.

“Aos que dizem «perturbações precoces, efeitos duradouros», podemos responder que as perturbações precoces provocam efeitos precoces, que podem durar, se o meio familiar e social fizer delas narrativas permanentes”

B. Cyrulnik (2001).

Anthony Giddens define “risco”, distinguindo-o do conceito de perigo, como algo que constitui uma estimativa acerca do “perigo”, sendo este último algo que diz respeito a ameaças que rondam a busca de resultados desejados (Giddens, 1994). Também Ulrich Beck se refere aos “riscos” como dependendo de decisões que, em princípio, podem ser controladas, enquanto que os “perigos” terão escapado ou neutralizado os mecanismos de controlo da situação (Beck, 2002).

Esta tomada de decisão pode, no processo de exploração do adolescente, apresentar características semelhantes à situação de jogo, no sentido que Caillois (1958/1990, p. 11) lhe confere, em que a possibilidade de risco, dificulta a “avaliação dos recursos disponíveis e o cálculo das eventualidades previstas”, dando origem a “uma espécie de aposta que supõe uma comparação entre o risco aceite e o resultado previsto”. Daí o uso de expressões como, “por em jogo”, “jogar forte”, “jogar a sua vida”. Este autor refere ainda um outro aspecto que introduz complexidade ao jogo, a constatação do acaso, que pode transformar uma decisão num acto “favorável”, ou “deplorável”. No domínio do humano, todos os esforços que se desenvolvem, são precisamente no sentido de evitar o acaso, de modo a prever e controlar os efeitos do comportamento; tarefa hercúlea, que demasiadas vezes ultrapassa a espécie humana, e que a ciência se esforça por compreender e melhorar.

Podemos então considerar que o risco se compõe de estimativas acerca da realidade, que podem ser controladas através de decisões, enquanto o perigo se reveste de ameaças que escapam ou inibem os mecanismos de controlo das situações. As situações de risco estarão assim mais sobre o controlo da decisão humana, do que as situações de perigo. E é neste contexto que faz sentido um discurso e uma acção de prevenção, sobre a ocorrência de algo que é prejudicial, neste caso à saúde dos indivíduos e comunidades.

Na área da saúde o risco é um conceito que envolve conhecimento e experiência acumulada sobre o perigo de alguém ou comunidade ser acometida por doenças e agravos. Definidas a partir de análises colectivas, os alertas trazidos à população pela epidemiologia, aplicam-se a cuidados de evitação. A expressão consagrada “factores de risco”, designa condições ou variáveis associadas à possibilidade de ocorrência de resultados negativos para a saúde, o bem-estar e o desempenho social (Jessor et al, 1991; Jessor et al, 1995).

Para Ramos (2004), a noção de risco compreende a possibilidade de sofrer uma perda ou dano, a possibilidade de ser submetido a um perigo ou a um traumatismo com consequências na adaptação e em doenças futuras.

Marcelli & Bracconnier (2005) referem que factores de risco gerais são todas as situações realçadas pelos inquéritos epidemiológicos que levam a um aumento das taxas de morbilidade, como sejam, o nível socioeconómico, a estrutura familiar (presença dos dois progenitores, morte de um deles, situação de divórcio, doença física ou mental de um dos pais, entre outros; muitos adolescentes encontram-se expostos a estes factores de risco. Os autores referem ainda a existência de factores de risco particulares, como sejam, factores psicopatológicos que, serão consequência das primeiras relações objectais na organização psíquica dos indivíduos, e que poderão estar relacionados com determinadas configurações comportamentais na adolescência, como o uso de substâncias, a conduta antissocial ou suicida.

Para Ribeiro (1998), o conceito de factor de risco, decorre do resultado matemático de relações entre variáveis consideradas num ou em vários estudos, e que fornecem alguma informação da probabilidade de se adquirir alguma doença; este autor realça que a noção de factor de risco não contribui para explicar a saúde, uma vez que, normalmente o que é identificado, são os indivíduos doentes. Segundo Antonovsky (1984) in Ribeiro (1998), seria preferível adoptar uma perspectiva salutogénica (ao invés da patogénica) e, em vez de colocar a questão “o que é que os indivíduos fazem para adoecer?”, se respondesse em alternativa a “o que é que os indivíduos fazem para não adoecer?”, resultados, com certeza diferentes, surgiriam.

Progressivamente, de uma abordagem essencialmente centrada nas insuficiências, na vulnerabilidade e nos factores de risco assistimos a uma transição progressiva para a tomada em consideração dos recursos e dos factores de protecção individuais ou familiares. Os estudos e as práticas clínicas e educativas começaram a desenvolver-se

em torno do conceito de resiliência. Entra-se assim num campo teórico de exploração da variabilidade das vulnerabilidades. Anthony (in Anaut, 2002) deu início nos anos 70 a pesquisas sobre crianças em risco e observou que as crianças não eram iguais perante o risco e apresentavam um estado de vulnerabilidade variável. A avaliação da vulnerabilidade apela à complementaridade da apreciação dos factores de risco, mas também dos factores de protecção, o que remete para um modelo a três dimensões: «risco-resistência-adaptação».

O termo resiliência está associado à mecânica e tem étimo no latim resilientia, isto é, à propriedade de um material resistir a efeitos de choque. A resiliência manifesta-se, na capacidade do individuo de resistir a efeitos adversos, mantendo um funcionamento positivo ou competência face a riscos e ameaças, externas ou internas, ou mesmo a capacidade de reconstrução após a ocorrência de situação traumática (Ramos, 2004). Os primeiros estudos realizados sobre os resultados positivos em situações de adversidade, tornaram visíveis a presença de um comportamento adaptativo. Particularmente as investigações realizadas em torno de temáticas como a esquizofrenia, a pobreza extrema ou situações traumáticas podem ser considerados os antecessores dos estudos sobre resiliência, embora esta palavra não fosse ainda utilizada. Mas foram os estudos realizados com crianças filhas de mães diagnosticadas com esquizofrenia, que promoveram a emergência do conceito de resiliência infantil (Pessanha, 2008).

Na consolidação do conceito de resiliência, são considerados pioneiros os estudos de Emmy Werner em 1982 sobre crianças da ilha Kauai do arquipélago do Hawai, estudo longitudinal incidindo num grupo multiétnico de 545 crianças seguidas durante um período de 32 anos desde o nascimento até à idade adulta, vivendo em condições de grande precariedade ambiental, do ponto de vista das condições sócio-afectivas (pobreza, violência, discórdia e psicopatologias paternas) dão início à observação de que algumas destas crianças se acomodavam a este ambiente precário, revelando uma adaptação social e uma capacidade de se erguerem psicologicamente após terem sofrido situações nefastas, característica de um funcionamento resiliente (Ramos, 2004).

Outras investigações, paralelamente aos trabalhos de Werner, foram desenvolvidas sobre as respostas adaptativas perante o stress acumulado, abrangendo a identificação dos factores de resiliência e dos factores de protecção. Relativamente aos factores de protecção, Garmezy (in Anaut, 2002) sugere que a tríade da força psicológica da resiliência é composta por: factores individuais (temperamento, reflexão e capacidades

cognitivas), factores familiares (o calor humano, a coesão e a atenção por parte dos pais ou do principal prestador de cuidados) e factores de suporte (o professor atento, o técnico de serviço social ou o organismo de serviços sociais).

Importantes contributos para o estudo da resiliência têm sido desenvolvidos por Cyrulnik (2001), que propõe a metáfora da pérola para ilustrar o oximoro (figura de estilo que combina palavras de sentido oposto) do “maravilhoso infortúnio” que a resiliência opera. Para o autor, o resiliente constrói um oximoro, cujo modelo seria o da pérola fabricada pela ostra, em resposta a uma agressão. Do ponto de vista psicológico e comportamental, o individuo resiliente, exposto a uma situação traumática, elabora um “trabalho” semelhante ao da ostra que, para se proteger do grão de areia que a invade, segrega nácar que o vai cobrindo e tornando cada vez menos áspero, dando assim origem a algo de precioso. A resiliência resultaria então de um processo paradoxal, em que do confronto com o traumatismo pode surgir criatividade. Contudo, refere Cyrulnik (2001, p. 21) apesar de oximoro descrever “o universo íntimo desses vencedores feridos - o triunfo de um ferido nunca desculpou o agressor”.

Neste processo, o tempo é um elemento importante, para que o sentido possa emergir, “é a representação do tempo, o modo como evoco o meu passado para organizar as minhas lembranças e deleitar-me com os meus devaneios que impregnam de sentido aquilo que percebo” (Cyrulnik, 2006, p. 15).

Apresentando-se a qualidade resiliente como um processo facilitador do desenvolvimento, na presença de situações adversas, esta desempenha para para os indivíduos a função de um factor de protecção. Este tipo de factores pode incluir dimensões individuais, relacionais ou ambientais. Rutter in Ramos (2004) identificou quatro tipologias de processos que podem actuar como protectores em situação de risco: 1) processos promotores da auto-estima, da auto-confiança e da auto-eficácia, desenvolvidos na sequência de vinculações seguras e estáveis ou sucesso na realização de tarefas, 2) processos que reduzem o impacto do risco, quer por alterações na sua percepção, quer por diminuição da exposição ao risco, 3) processos que de algum modo reduzam a probabilidade de aumento de reacções negativas aquando da exposição ao risco e 4) processos promotores de novas situações e oportunidades de desenvolvimento pessoal. Aquele autor, destaca ainda a importância dos recursos internos dos indivíduos que reenviam para modalidades de comportamento associadas às qualidades de resiliência, como sejam: 1) a consciência da sua auto-estima e autoconfiança, 2) a

consciência da sua auto-eficácia e 3) a qualidade das abordagens de resolução de problemas sociais.

Também Garmezy in Ramos (2004) organizou três categorias de factores de protecção, a partir de estudos com famílias desorganizadas e carenciadas: 1) factores individuais, como o temperamento ou habilidades cognitivas, 2) factores familiares, relacionados com a afectividade e a coerência educativa e 3) factores de suporte social, como sejam profissionais ou organismos, que apresentem funções de acolhimento e disponibilidade. Como podemos verificar, as situações de risco envolvem circunstâncias sobre as quais os indivíduos podem tomar decisões. Estas decisões, consoante o curso tomado, podem ser promotoras de desenvolvimento ou gerar prejuízo para saúde física ou psicológica dos indivíduos. A resiliência assume uma posição importante como elemento protector em situações adversas, e pode ser um revelador de capacidades internas. Na sua globalidade, os factores protectores envolvem invariavelmente, dimensões internas, interrelacionais e ambientais que, no seu conjunto e em articulação, podem auxiliar na predição do comportamento saudável.