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Esquema temático da literatura

VULNERABILIDADES E O PAPEL DO ESTADO ACERCA DOS DESASTRES

5.1 ABORDAGENS ACERCA DOS RISCOS, VULNERABILIDADES E TEMÁTICAS AFINS: CONTRIBUIÇÕES OU ENTRAVES PARA SE PENSAR AS PROBLEMÁTICAS

5.1.3 Riscos e classes sociais: uma reflexão necessária

Souza (2015), atentando para o viés de classe, afirma que existem aqueles que apresentam o risco, a exemplo do Estado e da mídia e os que representam os riscos, as pessoas (SOUZA, 2015, p. 30). A mídia e o Estado têm, frequentemente, apontado os espaços ou sujeitos que, para eles, representam os riscos, valorizando a visão mais “naturalizante” dos processos nesses apontamentos (Box 1). Por outro lado, sabe-se que aqueles que representam os riscos são os espaços e sujeitos historicamente estigmatizados que, frequentemente, mais sofrem com os riscos e, sobretudo, com as vulnerabilidades.

Box 1: O posicionamento da mídia acerca das áreas de risco e dos desastres.

Cabe fazer uma pequena reflexão relativa ao papel da mídia no que concerne à abordagem sobre as áreas de riscos, levando em conta o papel que “[...] juegan los medios de comunicación en la consolidación de imágenes estereotipadas o en la transmisión de información desviante sobre el medioambiente y los desastres (potenciales o reales)” (THOMAS, 1994, p. 122).

Desta feita, a importância dessa reflexão se dá porque, frequentemente, é através da mídia que as pessoas “comuns” (não acadêmicas) têm acesso às informações sobre esses espaços. Assim, a “naturalização” da discussão por parte da mídia se torna muito preocupante, tendo em vista seu papel como formadora de opinião. Afirma-se isso em virtude da ausência de uma discussão mais aprofundada sobre essas realidades.

Com a intenção de analisar materiais midiáticos sobre os espaços que são o foco do estudo, recorreu-se às matérias jornalísticas locais a respeito desses espaços. A primeira parte da metodologia foi a busca de palavras e expressões chave na internet, através do site Google, tais como: desastres em Campina Grande; áreas de risco em Campina Grande, riscos e vulnerabilidades em Campina Grande; Enchentes, alagamentos e inundações em Campina Grande; com vistas ao levantamento das principais reportagens sobre esses temas na cidade (Anexo A).

Como um dos objetivos dessa pesquisa é analisar o papel do Estado e dos promotores imobiliários na conformação dos contextos de riscos e desastres, a segunda

parte da metodologia foi buscar em cada uma das matérias encontradas, expressões como Estado, governo e mercado imobiliário ou afins, intencionando verificar o posicionamento das matérias acerca dos principais responsáveis pelas problemáticas relativas aos riscos e desastres.

O resultado da pesquisa foi o seguinte: de 20 matérias lidas e analisadas, 3 apresentaram o termo governo, porém a terminologia fazia referência ao ente federado do qual se falava (exemplo: governo federal, governo estadual), mas não no sentido de trazer a discussão para a responsabilização de um desses entes; nenhuma matéria apresentou o termo Estado (com E maiúsculo) e nenhuma das matérias também apresentou a expressão ou as terminologias mercado e imobiliário (Anexo A).

Embora a mídia não seja especializada nessa discussão, o resultado é muito preocupante, pois de vinte matérias analisadas, nenhuma discorria, ao menos pontualmente, sobre as causas que estão para além do que está posto, constatando-se a simplificação ou omissão acerca das causas fundantes das problemáticas abordadas nas matérias.

Seguem dois exemplos nesse sentido: 1. “Chuva e ventos causam estragos e alagamentos em Campina Grande”191; 2.“ As chuvas registradas neste mês de dezembro em Campina Grande, no Agreste paraibano, estão prejudicando cerca de 1,3 mil pessoas que moram em áreas de risco no município”192. Na verdade, manchetes e afirmações como essas servem mais para reforçar o processo de “naturalização” do problema do que para bem informar as pessoas acerca das reais causas e consequências dessas problemáticas que envolvem diversos agentes e interesses.

Ao relacionar os riscos à produção e distribuição das riquezas, Beck ressalta: “Tanto los riesgos como las riquezas son objeto de repartos, y tanto éstas como aquéllos constituyen situaciones: situaciones de peligro o situaciones de classe” (BECK, 1998, p. 32, grifos do autor). Logo, a distribuição dos riscos, em grande parte dos casos, tem a ver com a sociedade de classes. Ulrich Beck (1998, p. 25) acredita ainda que, “En la modernidad avanzada, la producción social de riqueza va acompañada sistemáticamente por la producción social de

riesgos”.

191 Matéria do G1 PB, em 30 de março de 2017. (Disponível em:

http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2017/03/chuva-e-ventos-fortes-causam-estragos-em-campina- grande.html. Acesso em: 07 out. 2018).

192 Matéria do G1 PB, em 30 de abril de 2016. (Disponível em:

http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/12/campina-grande-tem-13-mil-pessoas-em-areas-de-risco-alerta- defesa-civil.html. Acesso em: 07 out. 2018).

Essa abordagem é bastante interessante, uma vez que dá margem para se apreender não somente os riscos pelos riscos, mas as suas relações com outros contextos. Convém, portanto, pensar quem são aqueles que se encarregam de se apropriar das riquezas e quem são os que “herdam” os riscos. Nesse sentido,

La historia del reparto de los riesgos muestra que éstos siguen, al igual que las riquezas, el esquema de clases, pero al revés: las riquezas se acumulan arriba, los riesgos abajo. Por tanto, los riesgos parecen fortalecer y no suprimir la sociedad de clases (BECK, 1998, p. 40-41, grifos do autor).

A citação é clara ao afirmar que, em uma sociedade de classes, a riqueza tende a se concentrar em cima, ou seja, nos grupos mais poderosos econômica e politicamente, enquanto os riscos se estabelecem abaixo, nas camadas sociais mais precarizadas. De acordo com Beck (1998, p. 41):

[...] este efecto social de filtro o de fortalecimiento no es lo único que genera consecuencias específicas de clase. También las posibilidades y las capacidades de enfrentarse a las situaciones de riesgo, de evitarlas, de compensarlas, parecen estar repartidas de manera desigual para capas de ingresos y de educación diversas: quien dispone del almohadón financiero necessário a largo plazo puede intentar evitar los riesgos mediante la elección del lugar de residencia y la configuración de la vivienda (o mediante una segunda vivienda, las vacaciones, etc.).

De acordo com a capacidade financeira das famílias em alguma situação de risco, pode-se inferir que algumas delas terão maiores possibilidades de resolver certos problemas e/ou até de sair da situação de insalubridade. Por seu turno, famílias que não dispõem de capacidade financeira alguma tendem a permanecer nessas situações.

Ademais, conforme assevera Beck (1998, p. 42) “La potenciación de los riesgos, la imposibilidad de evitarlos, la abstinencia política y la proclamación y la venta de possibilidades privadas de evitación se condicionan”. Esses aspectos, além de se condicionarem, também “definem” quem vai ter possibilidades reais de se livrar dos riscos e quem, em função da ausência de alguns desses aspectos, não terá como evitá-los, tendo em vista também que o Estado não tem atuado nesses últimos casos.

Beck (2017) traz uma importante contribuição a partir de um conceito/expressão que dá conta das discussões realizadas até aqui e das que seguem, o conceito “clase de riesgo”. Segundo Beck (2017, p. 99): “La clase de riesgo arroja luz sobre la intercección de las situaciones de riesgos y las situaciones de classe”. São dinâmicas inter-relacionadas e demasiadamente preocupantes, visto que, se já é complicado para as famílias conviverem com a pobreza, imagine-se lidar também com os riscos.

À luz das problemáticas socioambientais urbanas, os autores Torres e Marques (2001) lançam mão da discussão acerca das hiperperiferias que converge com essa perspectiva

apontada por Beck (2017). Para Torres e Marques (2001), nesses espaços haveria a “sobreposição cumulativa dos riscos ambientais a diversas formas de desigualdades sociais e residenciais” (TORRES e MARQUES, 2001, p. 52).

Essas contribuições são interessantes, uma vez que relacionam os riscos aos contextos de classe, tornando mais fácil a apreensão das problemáticas relacionadas aos riscos de vários matizes. Nesse sentido, faz-se míster relembrar que “Hay una «fuerza de atracción» sistemática entre la pobreza extrema y los riesgos extremos (BECK, 1998, p. 47). Porém, mesmo havendo essa força de atração entre pobreza e riscos, essa aproximação nem sempre se faz óbvia, muito menos se trata de algo natural.

Para Beck (2017, p. 102), “[...] la combinación de riesgo y clase no resulta evidente al contemplar un desastre natural”. Assim, não é sempre que essas relações se expõem, às vezes é necessário que haja uma análise mais acurada visando entender as raízes das mesmas. De acordo com Veyret (2007, p. 26):

O risco e a percepção que se tem dele não podem ser enfocados sem que se considere o contexto histórico que os produziu, especialmente, as relações com o espaço geográfico, os modos de ocupação dos territórios e as relações sociais características da época.

É nesse sentido que a presente pesquisa busca contribuir, analisando as principais motivações dos riscos estudados, buscando ir além de uma explicação puramente “naturalizante” ou antrópica. Lembrando que, dentre as causas fundantes, frequentemente, estão os elementos sociais, como a pobreza que aumenta “el riesgo de desastre” (THOMAS, 1994). Thouret (2007) auxilia na reflexão dessas dinâmicas:

A pobreza constitui um triplo fator de risco: ela força as pessoas a viverem em zonas menos caras, mas mais perigosas; ela domina as preocupações cotidianas das pessoas que não têm nem os recursos econômicos nem tempo de preservar o meio ambiente; ela força o desbravamento e os desflorestamento para a tender as necessidades fundamentais de aquecimento e alimentação (THOURET, 2007, p. 88-89).

É possível pensar como o elemento pobreza está ligado aos riscos, não no sentido de culpabilizar os pobres pelos riscos socioambientais, mas de perceber como esse grupo “herda” toda essa problemática e pouco ou nada pode fazer. Faz-se míster refletir que, além da pobreza, as fortes desigualdades também são responsáveis pelas vulnerabilidades presentes em partes do espaço urbano. Para Vieillard-Baron (2007):

A intensidade da vulnerabilidade social ante os riscos frequentemente varia em função dessas desigualdades. Em geral, quando a catástrofe sobrevém, as populações mais frágeis, as de menor mobilidade e cujo nível de vida está mais debilitado são as mais afetadas (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 279).

As desigualdades originadas e mantidas nos espaços urbanos constituem elemento de peso na configuração dos riscos que se apresentam de maneira heterogênea, de acordo com a maior ou menor “fragilidade” dos grupos, sendo que os mais desfavorecidos são também os mais afetados (ALMEIDA, 2011; TOMINAGA, 2012; SANTOS, 2015), conforme pode ser constatado nesse estudo.

5.2 OS DESASTRES NO BRASIL EM SUAS DIFERENTES ESCALAS, COM DESTAQUE