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Romaria: uma instalação de fé emoldurando a paisagem A romaria é a mística do espaço

D EVOÇÃO FÉ ESPERANÇA: atribuições simbólicas religiosas e fé católica

CAPÍTULO

1.8 Romarias: o movimento do corpo em oração

1.8.1 Romaria: uma instalação de fé emoldurando a paisagem A romaria é a mística do espaço

transformado em paisagem.

(Rubens César Fernandes )

Pode-se dizer que as romarias apresentam-se em muitos quadros, tendo a paisagem como moldura. (fig. 56).

FIGURA 56 - Romeiros de Nossa Senhora Aparecida/ SP. Via

Dutra.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2009.

107 Tais como, Bom Jesus da lapa (BA), Bomfim (BA), Trindade (GO), Monjolinho (MG) Cidade de

Elas transmutam a paisagem cotidiana, povoando-a de novos sentidos. De forma analógica pode-se comparar o espaço sensibilizado por uma romaria, com uma instalação de Arte.108 Elas são verdadeiras instalações a céu aberto, uma obra de arte em movimento: cores, formas, cheiros, sons, gestos, inebriam a natureza dando outra dinâmica ao espaço.

Estradas, rodovias, caminhos paralelos, ganham uma beleza diferenciada de seu ritmo diário. Carros, caminhões, motos, bicicletas e os romeiros, em alegorias de fé emolduram e povoam uma nova e colorida paisagem. A teatralidade, a dramaticidade, o movimento dos caminheiros da fé, a mistura do sagrado e do profano, podem remeter ainda à gestualidade, à atmosfera e às antíteses das pinturas barrocas.

FIGURA 57, 58 - Romeiros de Nossa Senhora

Aparecida/SP, na Via Dutra.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte

2009.

Romeiros e romeiras marcham em grupos ou solitários, com vestimentas usuais ou formando “blocos” (fig. 57, 58) uniformizados com camisetas iguais, chapéus timbrados com os nomes dos grupos, número da caminhada, a imagem da entidade

intercessora homenageada naquela romaria, homens carregando cruzes (fig. 59) - “os imitadores de cristo”, cajados, bandeiras, homens, mulheres, idosos, jovens, seguem cada um ao seu modo, tendo em vista conseguir cumprir o percurso prometido. Seguem desfilando suas alegorias de fé.

FIGURA 59 - Romeiros de Nossa Senhora Aparecida -

Na Via Dutra. FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2009.

108 Instalação - é uma categoria dentro das artes visuais, que marcou o século XX e que tem como

alvo contar em alguns casos com a participação direta dos espectadores. Tem como alvo a sensibilização do espaço (interno ou externo). Pode ser executada por meio de vídeos, pinturas, desenhos, fotografias, objetos e esculturas.

Em seu livro ‘Romarias da Paixão’, Rubem César Fernandes assim define:

A romaria é mistica do espaço, transformado em paisagem. Leva-nos do profano ao sagrado por caminhos rotinieiros que mudam de figura à medida do percurso. É com os pés, ao que se diz, que se ora nas melhores romarias”109.

Nessa mesma linha de pensamento em sua outra obra “Os Cavaleiros do Bom Jesus” Fernandes acrescenta:

Em outros termos, a romaria faz no espaço o que a mística faz no tempo, ultrapassando ambos os limites do profano e aproximando o devoto do domínio do sagrado. Enquanto a viagem mística se manifesta por uma série de transformações psicológicas, a romaria expressa o mistério de uma forma objetiva, conduzindo as pessoas por uma viagem no sentido literal, onde a paisagem se transforma. Tem por isso as atrações de uma aventura, cujo fim, no entanto, é predefinido, fechado ao viajante da estrada e impondo-lhe o reconhecimento de um destino que tem para ele uma significação interior.110

Para o romeiro devoto, a romaria, a modificação da paisagem, a festa, tudo isso é apenas parte de um cenário literalmente energizado de diferentes potencialidades e desejos. O que mais importa para o romeiro pagador de promessa é pagar o compromisso e depois se auto-avaliar, rememorar essas experiências. Muitos afirmam que a maior transformação ocorreu mesmo foi em sua paisagem interior, “a gente nunca é o mesmo” depois de fazer um percurso desses, rezando, agradecendo e vendo também que muitas pessoas foram agraciadas por suas promessas. Nesse sentido é importante citar a romaria (Tambaú/SP-Aparecida/SP) feita a pé pelo chamando “caminho da fé”111 que possui como meta, além do pagamento de uma promessa, trabalhar a auto reflexão.

109 FERNANDES, Rubens César. Romarias da Paixão. Rio de janeiro: Rocco, 1994. p. 14.

110 ______. Os cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução às religiões populares. São Paulo:

Brasiliense, 1982. O autor faz uma minuciosa descrição sobre uma romaria masculina feita a cavalo.

111 O Caminho da Fé é um trajeto de peregrinação brasileiro inspirado no Caminho de Santiago de

Compostela (Espanha). Inicialmente feito por alguns peregrinos em direção ao Santuário de Aparecida, em uma rota alternativa a outras, predominantemente, pavimentadas, a rota foi oficializada, em 2005. O Caminho da Fé é uma rota sinalizada por setas amarelas e composto por trechos de estradas de terra, asfalto, trilhas dentro de fazendas e trilhos de trem compondo um percurso de cerca de 400 km, incluindo municípios do estado de São Paulo (onde termina na cidade Aparecida, na Basílica, que constitui o templo de maior visitação pelos católicos brasileiros) e também do Estado de Minas Gerais.Os principais objetivos do caminho são possibilitar, simultaneamente, momentos de reflexão e de fé, saúde física e psicológica através do exercício da caminhada, ou seja, a integração do homem com a natureza e com a religião. A infraestrutura é composta por pousadas e hotéis de categorias diversas (em regiões urbanas ou rurais). Demora-se, em média, de 12 a 15 dias para finalizá-lo a pé. Alternativamente, há pessoas que o fazem com bicicletas. No trajeto também há pessoas simples, que se dispõem, além de dar o conforto para o peregrino descansar, a contar suas

No espaço público das rodovias112, caminhos paralelos e trilhas feitas para esse fim, pode-se dizer que as romarias estão entre os eventos que dão maior visibilidade à fé católica. Podem ser consideradas ainda uma das mais importantes manifestações de devoções coletivas. Os romeiros vão reformatando os espaços, criando performances e novos sentidos de caminhar, com o apoio ou à revelia da religião católica oficial.

FIGURA 60 - roupas dos romeiros secando

nas cercas de arame às margens da via Dutra

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha

Duarte, 2010.

Essa forma de devoção que ocorre fora dos espaço das igrejas, leva o devoto a criar outra forma de contato com a natureza com a paisagem externa, e também exige outra postura e compreensão do seu próprio corpo e do corpo do outro.

Durante esse citado percurso, pôde-se fazer muitas entrevistas, fotografar e registrar em vídeos as experiências desses romeiros, que durante esses dias fizeram da Dutra sua moradia (fig. 60, 61). Nesse sentido, em pontos específicos, os romeiros paravam para descanso, para fazer suas alimentações e até mesmo lavar algumas vestimentas que eram colocadas para secar nas cercas de arame na beira da rodovia. As sombras das árvores tornavam-se espaços de descanso ou mesmo “salas de fisioterapias”, onde os romeiros paravam para passar pomadas nas pernas, fazer massagens e alongamentos.

FIGURA 61 - Romeiros preparando refeições às margens da via

Dutra (percurso entre Taubaté e Aparecida).

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2010.

experiências de vida e estórias características do povo do interior do Brasil. Conferir mais no site: <www.caminhodafe.com.br > Acesso em: 12 mai. 2009.

112 No espaço público das rodovias (que pode ser entendido também como “não lugares”), as

romarias são alvo de grande visibilidade e comunicação da fé católica. Os trafegantes geralmente são informados por faixas, para tomar cuidados, pois existem romeiros nas pistas.

À noite os romeiros dormiam, normalmente em baixo das marquises dos postos de gasolinas (fig. 62, 63). Ali uns armavam algumas barraquinhas, outros estendiam camas no chão. Além desse grupo específico, iam chegando também grupos de romeiros de diversas outras cidades113, para também passar a noite ali. Havia também alguns ônibus que estavam conduzindo grupos de romeiros.

FIGURA 62 - Romeiros dormindo sob as marquises de

um posto de gasolina nas margens da Via Dutra.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2010.

Era uma prática diária do grupo ora estudado, fazer uma oração coletiva antes de dormir, pedindo calma e paciência para os romeiros (eventualmente surgiam alguns pequenos conflitos, com alguns começando a reclamar dos outros). O Sr. Vicente conduzia muito bem esses desacertos, conclamando aos romeiros sempre a fé em Nossa Senhora Aparecida, dizendo bem alto “viemos unidos e permaneceremos unidos”. Para finalizar essas reuniões, bradava em alto som: “viva nossa senhora”, “viva”, “viva os romeiros”. Em seguida o grupo replicava: “viva o Vicente”. Dessa maneira o grupo seguia unido.

FIGURA 63 - Romeira dormindo ao lado do

andor de Nossa Senhora Aparecida

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha

Duarte, 2009.

Esse grupo era formado por adultos e adolescentes, perfazendo um todo aproximado de mais de 80 pessoas, sendo que a maioria já havia participado da peregrinação em outras vezes. Conforme as entrevistas, pôde-se constatar que a quase totalidade das pessoas era composta por grupos de amigos e familiares.

113 Conforme os registros das romarias cadastradas no Santuário, chegam grupos de romeiros de todos

os estados do Brasil. As romarias feitas a pé em sua grande maioria são compostas de romeiros de Minas Gerais e estado de São Paulo.

É importante salientar que os romeiros enfrentam perigos reais nas rodovias. Geralmente eles são orientados pela polícia rodoviária para caminharem em grupos de 10 em 10, nos acostamentos, em direção oposta ao fluxo dos veículos, em filas “indianas”. No caso da via Dutra, algumas sinalizações eletrônicas vão anunciando “romeiros na pista” (fig. 64), bem como orientando os romeiros sobre os cuidados a serem tomados e algumas rotas que eles devem seguir. Em outras romarias, em determinadas estradas de menor movimento, às vezes, por iniciativa das cidades próximas aos santuários, são colocadas faixas de tecido avisando sobre a presença dos romeiros na rodovia. Mesmo com os cuidados tomados, ainda ocorrem acidentes, como por exemplo o da matéria transcrita abaixo:

FIGURA 64 - Alerta sobre romeiros na pista - Via

Dutra.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte,

2009.

Um romeiro morreu na Rodovia Presidente Dutra, em Guarulhos, na Grande São Paulo, na madrugada de domingo (7). Ele estava com um grupo de Barueri, que seguia para Aparecida. O homem de 65 anos tentou atravessar a rodovia e foi atingido por um carro. O motorista fugiu. O romeiro morreu na hora. 08/10/07 - 06h28 - Atualizado em 08/10/07 - 06h28”114

Para solucionar esse tipo de problema, de Goiânia a Trindade foi criada um espaço paralelo à rodovia GO-060, para os romeiros do Divino Pai Eterno cumprirem suas promessas com segurança. Geralmente essa é uma demanda que os romeiros de vários centros de romarias, seguem lutando para conquistar também (fig. 65, 66).

FIGURA 66 - Romaria de Goiânia a Trindade

– Banheiros móveis colocados durante o percurso para dar apoio aos romeiros.

FIGURA 65 - Romaria de Goiânia a Trindade - GO.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte,

2010.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2010.

114 Do G1, com informações da TV Globo. Romeiro morre atropelado na pista. Disponível em:

<g1.globo.com/.../SaoPaulo/0,MUL146347-5605,00-ROMEIRO+MORRE+ATROPELADO+NA+ DUTRA.html> Acesso em 30 de jan. 2009.

Com o intuito de driblar os perigos da rodovia, pode-se acompanhar uma atitude que muito chamou a atenção pela

iniciativa. Esse fato há dois anos vem acontecendo durante a romaria feita da cidade de Uberlândia/MG com destino ao Santuário de Nossa Senhora de Abadia, situado na cidade de Romaria/MG, considerado o maior centro de romarias do Triangulo Mineiro. Os romeiros cumprem um percurso de cerca de 92 quilômetros, feito caminhando pela rodovia BR-365, que na maior parte do percurso não tem acostamento e possui um trânsito intenso, principalmente de caminhões. A senhora Marilene Duarte da Silva115 (fig. 67) conta que, há 33 anos, sua filha de apenas oito meses de idade estava com a saúde comprometida. Foi quando ela fez a promessa de ir a pé até o Santuário de Nossa Senhora de Abadia. Sua filha foi curada por meio do tratamento médico que lhe foi

subitamente encaminhado. A filha hoje é médica especialista em cirurgia geral do aparelho digestivo. Ao saber dessa promessa feita por sua mãe, perguntou-lhe se foi muito difícil pagar tal promessa. Sua mãe relatou-lhe o seguinte:

FIGURA 67 - Sra. Marlene Duarte (à direita) sua filha idealizadora dos cintos luminosos e uma amiga que estava ajudando na distribuição dos cintos .

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2010.

FIGURA 68 – Romeiros usando os cintos

florescentes – 2010.

FONTE: Acervo Fotográfico de Aninha Duarte.

Ao cumprir a promessa de ir à pé, senti muita insegurança, haja vista que o transito é muito intenso e o cansaço nos leva a ficar ainda mais vulneráveis ao brilho dos faróis e à velocidade dos veículos que trafegam muito próximos e às vezes até junto com os romeiros, em alguns pontos que não existem acostamento.

Diante desse relato de sua mãe, sua filha teve a ideia de fazer “cintos de segurança” (fig. 68) luminosos e ir para essa rodovia (ficar na barraca de apoio ao romeiro, local conhecido como Olho D’àgua, nos dias principais da romaria que

115 Marilene de Fátima Duarte e Silva é Consultora Educacional, residente à rua Fernando Vilela n.

378, bairro Martins, Uberlândia /MG. Entrevista concedida a autora. Realizada na BR 365, próximo da cidade de Romaria/MG, em: 12 ago. 2009. Registro em Vídeo e texto escrito por e-mail. Acervo da pesquisa.

acontece durante a primeira metade do mês de agosto, emprestando aos romeiros os cintos fluorescentes, fig. 69).

Segue abaixo parte da entrevista feita com dona Marilene Duarte:

P - O apoio com os cintos tornou-se também uma promessa?

R: O apoio com os cintos não é uma promessa, é apenas um desejo de dar aos romeiros a segurança que me faltou na época das primeiras romarias.

P - Os romeiros perdem os cintos? R: A perda é muito pequena.

FIGURA 69 - Romeiros usando os cintos fluorescentes.

Na escuridão da noite, com os cintos iluminados o romeiros vão formando uma linha de luz no acostamento da rodovia. Realmente há modificação da paisagem, fica de uma beleza sem igual.

P - Quantos cintos vocês possuem?

R: trabalhamos com 200 cintos em 2009 e com 400 em 2010. Esse número torna-se maior, considerando que distribuímos e buscamos os cintos várias vezes. Neste ano, um mesmo cinto fez o percurso 03 vezes.

Vale também mencionar que nessa romaria, os romeiros em sua maioria, são pessoas que possuem idade entre 15 a 50 anos. Blocos de jovens são muitos comuns nessa romaria.

FONTE: acervo Fotográfico de Aninha Duarte. 2009.

O trabalho da senhora Marilene, além de dar segurança aos romeiros na estrada, foi logo absorvido pelo romeiros, que paravam para colocar os cintos e, na escuridão da noite, seguiam “iluminados”, tornando o percurso de uma beleza ainda não vista, com formação de “filas” de luzes serpenteando pelo caminho.

Outros perigos a que estão sujeitos os romeiros são os casos de assaltos. Conforme relatos do policial Roberto Pinheiro116 (fig. 70), no caso das romarias à Aparecida, por ser feriado em 12 de outubro, alguns presídios liberam os detentos para passarem o feriado em casa. Alguns deles infelizmente aproveitam a movimentação e assaltam tanto os romeiros quanto os carros que param para

dar apoio aos romeiros e também outros que estão só assistindo a romaria passar.

FIGURA 70 - Aninha Duarte e o policial Roberto

Pinheiro, responsável pela segurança da Dutra de Taubaté à Aparecida.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte –

2010.

116 Policial Roberto Pinheiro - É residente em Taubaté. Trabalha no posto policial km 78 da rodovia

Presidente Dutra - (Roseira-município). Segundo as normas, só esses dados podem ser fornecidos pelo policial ao conceder entrevistas. Entrevista concedida a autora. Realizada nesse citado posto em: 10 out. 2009. Acervo da pesquisa.

Dessa maneira, vários quadros compõem a romaria, e a rodovia vai se tornando sacralizada pelo som das cantorias, pelo jogral de terços tirados por grupos de romeiros orantes. Através do cheiro de comidas feitas nos acostamentos, pelas

performances de pagadores de promessa com cruzes, vestidos de Cristo, vestidos de padres e outras alegorias. Com outros propósitos, são encontrados também jovens em seus veículos com o “som alto” e consumindo algum tipo de bebida. Também não raro podem ser observados carros parados com pessoas jogando baralho enquanto esperam algum romeiro para o qual se está dando guarida. O inchaço da rodovia é

uma mistura eclética sacro-profana de sobreposição de desejos, dores e alegrias que se mesclam, colorem e emolduram uma nova paisagem.

1.8.2 Romeiros de Nossa Senhora de