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Romeiros de Nossa Senhora de Aparecida Performers da Fé: uma antologia

D EVOÇÃO FÉ ESPERANÇA: atribuições simbólicas religiosas e fé católica

CAPÍTULO

1.8 Romarias: o movimento do corpo em oração

1.8.2 Romeiros de Nossa Senhora de Aparecida Performers da Fé: uma antologia

ao sofrimento

Os romeiros pedem com os olhos, pedem com a boca, pedem com as mãos. Jesus, já cansado de tanto pedido dorme sonhando com outra humanidade

(Carlos Drumonnd de Andrade)

Fé, esperança e gratidão são as experiências que levam milhares de romeiros de várias localidades do Brasil até aos pés de Nossa Senhora Aparecida (fig. 71, 72, 73).

Pés - Calçados, descalços, cansados, machucados, inchados, calejados, com bolhas d’água, comemoram a vitória da chegada aos pés da imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Joelhos - Arrastam, sangram, dobram em sinal de respeito, humildade, adoração e agradecimento.

FIGURA 71, 72, 73 - Romeiros de

Nossa Senhora de Aparecida - SP. pagando promessa na passarela da fé.

FONTE: Acervo fotográfico de

Olhos - Brilhantes, abertos, fechados em orações, pedem, imploram, agradecem com veemência as graças alcançadas.

Lágrimas - Olhos marejados, rasos, cheios de lágrimas, gotejam, lavam as faces dos devotos. Entre silêncios, choros e prantos agradecem o privilégio da graça e por tê-la cumprido.

Mãos - Trêmulas, abertas, entrecruzadas, pedem, agradecem, oferecem objetos votivos, debulham o rosário, seguram velas, oferecem ex-votos.

Lábios - Que agradecem, oram e cantam hinos de louvores.

Com os pés enfaixados, cheios de calos, unhas caindo, calcanhar sangrando, dores nas costas, nos ombros, febre, cansaço, calor, chuva, tudo isso faz parte dos sacrifícios que ficam impressos no corpo dos romeiros e romeiras. Tudo leva a crer que, quanto maior o sacrifício, o romeiro parece querer sofrer mais ainda.

O corpo amiúde vai à exaustão, os joelhos ficam “em bolas”, as pernas pesam de inchaço. Ocorrem também, muitas vezes, desarranjos intestinais, e mesmo assim eles seguem suportando esses verdadeiros flagelos. Alguns romeiros ou as pessoas que dão suporte aos romeiros possuem soluções – às vezes caseiras ou à base de ervas - para a maioria desses males que ocorrem durante as caminhadas. Assim ensina o Sr. Luiz Renero: “Para o pé, batata da perna, coxa, tornozelo, o melhor é passar essa mistura que tá na garrafa. Pomada não adianta, isso é o que arrasta a turma”. Sr. Luiz dá ainda a seguinte receita:

Colocar na garrafa rubinho, álcool, vinagre, sal grosso, fumo (rolo ou folha), erva de Santa Maria, bálsamo, picão, arnica. Daí vai se reformando com vinagre, mas com o cuidado de não se por muito álcool, para não irritar a pele.117

Com relação a dores de barriga, ensina: “no tempo quente dá dor de barriga. Então é bom tomar água com vinagre. Põe meio de vinagre e meio de água e toma”.

Outra forma dessa prática de ‘primeiros socorros’ que os romeiros utilizam é o chamado “passar linhar”. O Sr. Luiz Renero, alerta:

117 O romeiro Sr. Luis Renero, já apresentado anteriormente, durante aos momentos de descanso nas

sombras das árvores, veio com algumas garrafas cheias de raízes e espontaneamente começou a me ensinar essas praticas em relação aos desgastes do corpo. (Diálogo ocorrido em: 11 out. 2009).

“Quando os pés formam muitas bolhas, o melhor não é furar as bolhas e sim “passar linha”. Eles passam, com uma agulha, uma linha de costura por dentro da bolha de água, cortando em seguida a linha para a ir purgando. Dessa maneira, é comum ver pés de romeiros todos cheios de linhas. Vários deles geralmente carregam uma caixinha com linha, agulha, tesoura e alguns remédios. (fig. 74, 75)

Dessa maneira, enfrentando tantos sacrifícios, a promessa estaria de fato bem paga. Presume-se que se criam relações de compensações. Quanto maior o sofrimento, ilude-se que o pagamento foi bem efetivado. É como se estivesse pagando e deixando ainda um crédito ao seu protetor, como forma de recompensa e garantia. Caso ele venha precisar de outros favores, teria nova credibilidade. A impressão que se tem, em alguns casos, é que os pagadores de promessas ficam envaidecidos em exibir seus sacrifícios. Com isso, vai se ganhando visibilidade entre os outros romeiros, bem como chamando a atenção das pessoas que ficam assistindo a romaria passar, da mídia televisiva e jornalística, que obviamente optam por registrarem os casos mais chamativos para divulgação do evento. Pode-se afirmar também, que existe uma sofisticação do sofrimento, certa dose de exibicionismo, um teste de resistência física (ver até onde o corpo vai aguentar). Em muitos casos, é nessa fusão de sacrifício e visibilidade que os pagadores de promessas vitalizam suas forças. Por outro ponto de vista, nota-se também que existe uma espécie de competição de sofrimentos entre eles. Nesse aspecto, fala o Sr. Lourival Leonette Bressan118 “Tem um grupo que está vindo aí a pé também, mas

118 Lourival Leonette Bressan, brasileiro, 55, torneiro mecânico, residente em Porto Alegre, av.

Estados Unidos 1267, centro. Entrevista concedida a autora. Realizada na Via Dutra em: 09 0ut. 2009. Acervo da Pesquisa.

FIGURAS 74, 75 - romeiros de Nossa Senhora de Aparecida. Pés com bolhas, com linhas passadas para

“purgar a água”.

durante a noite eles param e uns, dizem, até dormem em hotel. Aí não tem graça, aí é mole, né?

O sr. Lourival ( fig. 76) é um romeiro que sai de Porto Alegre, de bicicleta, levando três meses para chegar em Aparecida (chega no dia 12 de outubro, para o dia festa). Ele fez essa promessa pelo seguinte motivo (ele traz escrito em texto, escrito por um amigo, colado no oratório de Nossa Senhora Aparecida, que carrega em sua bicicleta, fig. 77, 78). Transcrição parcial do texto:

FIGURA 76 - Sr. Lourival com a bicicleta, com o

oratório de Nossa Senhora Aparecida.

FONTE: acervo fotográfico deAninha Duarte - 2009

(...) No dia 28 de fevereiro de 2000 às 19h00, na cidade de Porto Alegre- RS, começou o martírio de nosso amigo, onde seu maior tesouro foi tirado de suas mãos, tirando de suas asas uma criança de 11 meses de idade. Após isso, ele deu início a procura de sua filha. Percorreu milhares de quilômetros com uma bicicleta, onde a única forma que o fazia viver era a lembrança de sua filha querida. Mas as suas buscas acabaram em 13 de março de 2006, onde tristemente descobriu-se por exame de DNA, solicitado pela policia Federal através dos restos mortais da filha que foi assassinada para retirar seus órgãos. O que restou foi os restos mortais encontrados na Colômbia a 400km da fronteira com o Brasil. (....) sua esposa teve uma forte depressão e veio a falecer.”

FIGURA 77 - Carta

relatando o fato.

Segundo o Sr. Lourival ele fez essa promessa para Nossa Senhora para ter forças para continuar vivendo. Ao chegar a Aparecida, ele anda de joelhos na passarela da fé e depois leva sua bicicleta e a entrega como ex-voto na sala das promessas. Depois volta para Porto Alegre de avião. Em 2009 foi o segundo ano em que ele fez esse mesmo tipo de promessa, ano que também foi feita essa entrevista. Em 2010, em contato com Sr. Vicente, coordenador da romaria de Barueri, ele confirmou que o Sr. Lourival estava novamente com sua bicicleta, com o andor com Nossa Senhora, pagando sua promessa, no mesmo perfil relatado acima.

FIGURA 78 - Oratório e cofre.

Sr. Lourival durante sua viagem ia solicitando ajuda principalmente para comprar alimentação e pneus para sua bicicleta. Durante essa viagem ele gastou nove pneus.

Várias são as formas de cumprir promessas. Os romeiros vão repetindo experiências transmitidas e inventado outras formas inusitadas de caminhar. Existem aqueles que caminham no silêncio de suas orações. Outros rezando em voz alta, “puxando terços”, cantando canções religiosas. Outros marcham carregando ex-votos, tais como roupas, mantimentos, réplicas de

partes do corpo humano feitos de cera, madeira, cruzes, entre outros. Nesse exercício religioso, cada um, ao seu modo, vai criando a lógica de estar ali, descobrindo as várias maneiras de orar, acreditar e continuar vivendo. O que mais chama a atenção nas romarias são os votos das cruzes. Os romeiros, seguidores, “imitadores de cristo” (fig. 79, 80) vão se arrastando para levar as pesadas cruzes, como se quisessem repetir os passos da paixão. Vão criando equivalências aos sofrimentos de Cristo. Acreditam que o sofrimento é uma forma de triunfo, purificação, glorificação e, mais ainda, seria o passaporte para a salvação. Nessas experiências, a dor e o sofrimento alimentam a fé.

FIGURA 79 - Puxador de cruz, ex-voto oferecido a Nossa

Senhora Abadia - (pagamento de promessa na Br 365)

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2010.

Em (Mateus 16:24) nos escritos bíblicos, Jesus disse aos seus discípulos: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me”.119 A cruz geralmente pode ter como significado simbólico “uma vida difícil”. É o preço que se paga ao seguir aquele que morreu na cruz! É também a certeza de que, ao segui-lo, o peso

FIGURA 80 - Nelson Martins, 55 anos, cidade de Santa

Branca. Promessa de agradecimento a Nossa Senhora de Aparecida “apenas para agradecer a mãe, sem ela eu não sou ninguém”. É a terceira cruz que ele está oferecendo. local/ Via Dutra.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2010.

119 BIBLIA, 1985. p. 1177.

Os ex-votos “cruzes” são feitos normalmente de madeira e quase todas possuem a forma latina120. Em muitas os romeiros escrevem vários signos de identificações, tais como o nome da entidade protetora, datas,

relatos da história que gerou a promessa. Há também frequentemente colagens de fotos e outros objetos. As escritas são feitas habitualmente com canetas, ou pintadas com tintas ou ainda pela justaposição de pregos. Muitas vezes assemblam-se nas cruzes uma diversidade de ex-votos e mensagens votivas (fig. 81).

FIGURA 81 - romeiros de Nossa Senhora do Rosário

Rodovia que liga Prata a Campina Verde-MG.

FONTE: Acervo fotográfico de Aninha Duarte, 2001.

Nesse contexto, é valioso o fragmento de uma entrevista gravada por Rubens César Fernandes em seu Livro Romarias da Paixão. Trata-se de um romeiro carregador de cruz, que conta a história sobre o maior carregador de cruz121 que ele conheceu e que possivelmente o influenciou nessa forma de devoção:

(...) a cruz era pesada mesmo, e carregava de tudo, relógio, corrente, cabelo, a cruz inteira, tinha até muleta amarrada, perna de gesso. O que você não via de plástico, óculos ray-ban de gente que não enxergava, tudo quanto era porcaria via ali pendurada! Fitaiada. Ele até falou comigo, bota um bilhetinho para Aparecida que eu levo! Tinha jornais de prova que saiu de Ponta Porâ e dos lugares que já passou.122

Geralmente os votos da cruzes são feitos por homens. Elas possuem grandes dimensões e são muito pesadas. Existe também as de pequenos formatos, que são leves e outras em estilo “Caixote”123. A maioria delas é de caibro maciço. Devido

120 Cruz Latina. São as que os braços cortam para cima do meio. É a cruz que representa a tradição

cristã.

121 Esse romeiro carregador de cruz, passava por Jundiaí, a caminho de Pirapora. Vinha de Ponta

Porã, no Mato Grosso, cumprindo promessa de chegar até Aparecida - São Paulo. FERNANDES, 1994, p. 141.

122 - Ibid.

ao seu tamanho e peso exagerado, alguns romeiros colocam rodinhas124 escondidas no pé da cruz para, ao invés de arrastá-las, puxa-las, método esse que não é muito bem visto por romeiros mais “puristas”, que geralmente prezam mais o carregar ao arrastar das cruzes.

As cruzes geralmente não são um tipo de ex-voto oferecido por mulheres. Comumente elas seguem ao lado dos arrastadores de cruzes, servindo de amparo durante o percurso, imitando, talvez, os sofrimentos de Maria. Suas performances são de outra natureza. Levam objetos leves, roupas, tranças de cabelos. Acompanham os filhos vestidos de anjos e outros.

A cruz é um símbolo que traz em sua aura, a memória do sacrifício e da morte e, ao mesmo tempo, simboliza também a vitória da vida sobre a morte. O cristianismo elegeu a cruz como seu principal símbolo. Desde então, a cruz tornou-se habitada da presença e ausência da imagem viva do “pai”.

O carregador de cruz e promesseiro Sr. Ibrahim Alfaiad125, diz que faz 14 anos

que ele vem à Aparecida puxando uma cruz e a deixa na sala de promessas (fig. 82). Foi-lhe dirigida a seguinte pergunta: foi um voto por motivo de doença? Ele respondeu:

Não, essa forma de penitencia foi por nunca ter acontecido nada, mas este ano estou agradecendo também por ter conseguido criar uma instituição para recuperação de drogados e pessoas que estão com depressão. Lá nós não trabalhamos com a ideia de milagre, trabalhamos com física quântica.”

FIGURA 82 - Ibraim Alfaiad – Pagador de promessa

na Via Dutra. Com destino ao Santuário de Aparecida / SP.

Vê-se que o depoimento do Sr. Ibrahim é bem positivo, caminhando

FONTE: Acervo fotográfico de Anainha Duarte, 2009.

124 “A maioria tira as rodinhas nas etapas da partida e chegada. (...) há um tipo de malandro que, em

vez de prender as rodinhas num pino, usam uma presilha que se abraça na madeira sem deixar vestígios. Na chegada tira tudo, e pretendem ter feito a viagem inteira no arrasto. São uns idiotas, comenta Chico. A Deus ninguém engana”. (comentário de um romeiro indignado com essas simulações de por rodas nas cruzes). FERNANDES, Rubens César,1994, p. 143.

125 Ibrahim Alfaiad, 36 anos, é policial militar na cidade de São Paulo/SP. Entrevista concedida a

com a “sua cruz” de modo altivo, agradecendo por antecipação por nunca ter lhe acontecido nada, e ainda não acreditando na vingança das divindades, e sim no sentir-se em falta consigo mesmo, diferentemente do que se viu anteriormente.

Para além das cruzes, os pagadores de promessas se manifestam de acordo com as graças que receberam. Uns carregam réplicas de casas na cabeça, sacas de mantimentos nas costas, andores com a imagem da entidade intercessora, velas com a medida de sua altura e vários outros diferentes objetos.

O sacrifício do corpo alude ser uma prova de fidelidade, de semelhança e de igualdade ao sofrimento de Cristo e também dos santos mártires e às dores de Maria. Nesse sentido, nas romarias vê-se o corpo sacrificado, flagelado, martirizado, analgesiado de tantas dores. Ao final da romaria, corpo e alma se aliviam, por depositar nos pés da imagem o pagamento da dívida, seja com ex-voto, ou simplesmente com sua presença. Essa é a grande prova: a entrega da precatória, quitada e carimbada aos olhos de seus benfeitores.

De corpo e alma os romeiros reverenciam a padroeira do Brasil, agradecem o poder dessa “mãe negra” e abastecem ainda, sua fé mariana.