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Fonte: elaborado por Jofre Teófilo Vieira.

Fora da rota planejada, já que o destino era o Rio de Janeiro, e, em segundo lugar, a Bahia ou Pernambuco, o bergantim Nossa Senhora do Socorro, Santo Antonio e Almas ancorou no porto do Mucuripe, da vila de Fortaleza, em junho de 1742. Longe do seu destino, o navio com toda a carga fora apreendido pelas autoridades colonias locais.

Nas próprias ordens de Antonio Veríssimo ao capitão Florêncio de Freitas, percebe-se a hierarquia e a importância das praças comerciais na colônia.

Para o historiador Douglas Cole Libby,

[...] as chegadas de navios negreiros eram extremamente concentradas em apenas três portos. Por isso mesmo, se constituíam nas principais praças de comércio de escravos: Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Com exceção parcial e de relativamente curta duração de São Luís, nenhum outro centro portuário recebia, a não ser muito eventualmente, embarcações procedentes da África e carregadas com a mercadoria mancípia. Foi realizada, a partir destes três portos, a distribuição de recém-chegados africanos por todo o “território” da Colônia/Império.147

Nas ordens, é possível perceber que esse era um fato de conhecimento de todos, principalmente, dos negociantes de grosso trato e fugir dessa regra seria amargar sérios

147 LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (organizadores). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 459.

prejuízos, como comprovou o caso estudado. Ora, a exploração das minas de ouro aumentou a procura pela mão de obra escrava e, em consequencia disso, a elevação do seu preço. Como porta de acesso dessa região, o Rio de Janeiro se configurou como a principal praça comercial para venda de escravos. Ainda como capital da colônia e principal cidade do Nordeste açucareiro, Salvador vinha logo depois em importância, deixando Recife em terceiro lugar.

Uma petição escrita pelo “Padre Superior Manoel de Matos, da Villa Real Hospício da Companhia de Jezus do Ceará”, em 27 de agosto de 1742, e apresentada por Antonio Carvalho, contramestre do bergantim, na vila Santo Antonio do Recife na capitania de Pernambuco, em 27 de abril de 1743, permite conhecer uma das versões da história que visava explicar como o navio foi parar no porto do Mucuripe, em Fortaleza, na capitania do Ceará.

Diz Florencio de Freitas Correa cappitão do Bergantim invocação Nossa Senhora do Socorro, Santo Antonio e Almas do qual hé senhorio Antonio Verissimo e Companhia, morador na Ilha da Madeira, que sahindo do porto della para o de Bissau com negoçio e carregação do dito senhorio ahy fez varios escravos com os quaes sahindo do dito porto buscando a indireitura do Rio de Janeiro honde se reputão e vendem por bons preços veyo aRibada com o dito Bergantim aberto em agoa a costa do Searâ aonde chegou com houtenta e dous escravos de carregação do dito senhorio e trinta e hu de partes entre o Suppliquante e mais pessoas da obrigação do mesmo Bergantim que tiverão praças e com que os fazer, e pondo a escravatura em terra, e tendo o Bergantim sobre as Amarras foi Vossa Mercê servido de mandar seqüestrar os ditos bens e incalhar o Bergantim com o fundamento de pertencer a este Juízo a sua aRecadação, e com effeito tem mandado trazer tudo em praça para se vender não atendendo aos livros de açentos do dito Bergantim e hordens de seu dono que tem o Supliquante aprezentado a Vossa Mercê no que falando com o devido respeito e ao que parece se procede e tem procedido contra a forma do Regimento porque atendido com a devida atenção o capitullo vinte e seis per formallia 6º “Os Provedores das fazendas dos deffunctos poram em aRecadação toda a fazenda das Naos e Navios que derem â costa nas ditas partes, e de qualquer outras pessoas que forem auzentes e não tiverem procuradores em terra, e assim todas hás fazendas que os mestres das Naos e Navios levarem sem terem lembranças de cujos são” [...].148

A petição escrita pelo religioso superior da Companhia de Jesus no Ceará mostra a atuação da ordem religiosa junto às companhias de comércio, servindo como um suporte nas áreas onde não havia representantes legais dessas empresas.

Os laços que ligavam os Jesuítas às firmas comerciais pareciam ser bem vantajosos, já que o padre aquiesceu em defender os interesses econômicos da empresa comercial onde nenhum negociante local ousou se indispor com o ouvidor do Ceará. A história da Companhia de Jesus no Brasil, no século XVII e XVIII, foi marcada por inúmeros

148 Autos do sequestro do bergantim Nossa Senhora do Socorro, Santo Antonio e Almas (1742), fls. 16-16.v. Apud NOBRE, Geraldo. Op. Cit., p. 145-6.

conflitos, não somente com os colonos, em virtude da utilização da mão de obra indígena, mas também com a administração portuguesa. Em 1759, acusados de comércio ilegal, entre outras razões, pelo Marquês de Pombal, foram expulsos do império português.

Ao se verificar as instruções de Antonio Veríssimo ao capitão Florêncio de Freitas, encontra-se que este deveria entregar aos “Reverendos Padres Capuxos huã quartolla de vinho, e assim mais aos ditos hum cunhete de conçerva de meya aRoba”.149 O negociante

citou os capuchinhos, uma ordem religiosa da família franciscana e não a Companhia de Jesus. Ora, são grupos religiosos, mas que tinham importantes divergências de interesses e na maneira de atuar, como, por exemplo, a prática da mendicância realizada pelos franciscanos. As mercadorias seriam presentes com o objetivo de reforçar os laços de amizade e pelos relevantes serviços prestados. Na ausência dos primeiros, o capitão e o contramestre não tiveram dúvidas em procurar os Jesuítas. É possível pensar que pouco importava para eles que ordem religiosa fosse, afinal, a necessidade era maior. O importante é que a ordem tomou para si a tarefa de interceder pelos interesses da companhia onde ninguém quis. O que deixa explícito a atuação não somente deles, mas dos grupos religiosos na defesa dos interesses das firmas comerciais.

A petição foi apresentada em Recife, na capitania de Pernambuco, porque, segundo o jesuíta, o provedor real abusava de seu poder, já que se recusava a receber a petição e muito menos permitia a defesa por parte dos procuradores da companhia proprietária da embarcação; pelo contrário, ameaçava a todos aqueles que ousassem ir contra suas ordens. Vale lembrar que, em 1742, o Ceará ainda era uma capitania anexa à de Pernambuco.

Para o religioso, o provedor incorria num erro gravíssimo, ao apreender o navio e sua carga alegando que os bens eram de propriedade de ausentes. Para provar que este cometeu um equívoco, fez menção ao livro de protocolo do navio onde estavam registradas as informações sobre as mercadorias transportadas e seus respectivos donos e apresentou as ordens de Antonio Veríssimo, onde estava expresso que o capitão Florêncio de Freitas era seu procurador, em sua ausência o contramestre Antonio Carvalho, depois Manoel Gonçalves do Rozario e, por último, a Pedro Carvalho, irmão do contramestre. Além disso, chamou atenção para a legislação, transcrevendo o capítulo vinte e seis do 9º Regimento, que regulamentava o modo de proceder dos oficiais das fazendas dos defuntos e ausentes, de 10 de dezembro de

149 Autos do sequestro do bergantim Nossa Senhora do Socorro, Santo Antonio e Almas (1742), fl. 12.v-13. Idem. Ibidem, p. 142.

1613,150 onde estava expresso que somente seriam arrecadadas as fazendas encontradas nos

navios se elas se constituíssem em bens de ausentes e que não tivessem procuradores em terras.

Antonio Veríssimo, ao tecer uma larga teia de procuradores, onde, tamanha a amplitude da cadeia apresentada, permitia a qualquer negociante se tornar seu representante legal. Buscava, assim, fugir de um possível sequestro de suas mercadorias pelas autoridades portuguesas, em especial, nas colônias; estratégia que foi percebida pelo provedor real do Ceará.

Na petição redigida pelo padre Manoel de Matos, diz-se que a embarcação ancorou no porto do Mucuripe em Fortaleza por estar “aberta em água” e incapaz de seguir viagem para o Rio de Janeiro. Mas, conforme o andar do processo, outras informações vão sendo incorporadas a esse fato. Infelizmente, para o capitão e a tripulação, o provedor real não aceitou a argumentação apresentada. É possível até levantar a hipótese de que o mesmo poderia já conhecer essa estratégia utilizada pelos capitães a fim de se livrarem dos problemas alfandegários.

Em 1744, na cidade de Lisboa, quando Antonio Veríssimo justificou em juízo o direito ao produto das arrematações que ocorreram no Ceará no ano de 1742, fruto da apreensão de seu navio, das mercadorias e dos escravos, disse que o “Bergantim carregado de escravos e outros generos foy levado de hum temporal ao Seará grande donde o houvidor o mandou encalhar, e tomar toda a fazenda, fazendo-a vender e ao dito navio”.151

A versão de Antonio Veríssimo, do capitão e da tripulação do navio buscava enfatizar que a chegada ao porto do Mucuripe ocorreu de forma acidental. Se, num primeiro momento, a justificativa da embarcação aportar no litoral cearense era porque estava “aberta em água” e que não poderia alcançar o local desejado por correr o risco de naufragar, a

150 9ª Regimento de 10 de Dezembro de 1613, “Dom João por Graça de Deos Rei de Portugal, e dos Algarves, d’aquem, e d’além Mar, África Senhor da Guiné, &c. Faço Saber aos que esta minha Provizão virem, que eu fui servido mandar passar o Regimento, e Provisões do theor seguinte. El Rei, Faço aos que este Alvará virem, que sendo informado do muito que convinha a meu serviço, e bem das partes mandar dar Regimento aos Officiaes das fasendas dos defunctos, e ausentes, mandei reformar algumas cousas, que não estavão bastantemente providas nos Regimentos antigos, e houve por bem mandar fazer o presente Regimento, de que usarão os Provedores, Thesoureiros, Escrivães, e mais Officiaes das fazendas dos defunctos, e ausentes de Guiné, Mina, Brasil, Ilha dos Açores, e mais partes Ultramarinas”. In: Appendix a Colecção Chronologico Systematica da

Legislação de Fazenda no Imperio Brazileiro: Contendo Chronologicamente a Legislação, quase toda

manuscrita para o Juizo dos Defuntos, Ausentes, Capellas e Residuos, e entr’ella os respectivos regimentos, vol. 1, 1831, p. 75-6.

151 Autos do sequestro do bergantim Nossa Senhora do Socorro, Santo Antonio e Almas (1742), fl. 06 Apud NOBRE, Geraldo.Op. Cit., p. 135.

demora ocasionada pelos embates judiciais permitiu aos requisitantes reforçarem seus argumentos, incluindo a falta de piloto e até mesmo o fator natural, no caso, um temporal.