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Capítulo 2. As rotinas de produção – Enquadramento teórico

2.2. Rotinas de produção jornalística

2.2.2. Rotinas no ciberjornalismo

A introdução da Internet nas redações foi uma das maiores alterações do ambiente jornalístico do último século. Para Bastos, Lima, Moutinho e Reis (2013), “como inovação tecnológica [a Internet] influenciou a profissão a diversos níveis, provocando transformações no fluxo das notícias, no quotidiano dos jornalistas e na responsabilidade profissional” (p.12). Já para Zamith (2011), com a chegada da Internet à imprensa, a rádio e a televisão perceberam que tinham em mãos “uma forma adicional de chegar às suas audiências e de, eventualmente, conquistar novos públicos e novas receitas” (p.19). A par das primeiras descobertas, previsões e dúvidas, surgiu também a necessidade de se criar uma nomenclatura que desse significado a este “novo” jornalismo (Jerónimo, 2015, p.22). Ainda que o conceito base do “novo” fosse o mesmo que o do “velho”, foi necessária a criação de uma nova definição que distinguisse o jornalismo tradicional do jornalismo

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produzido na e para a Internet. De entre os muitos termos utilizados pelos teóricos para definir este conceito – jornalismo eletrónico, jornalismo multimédia, webjornalismo, jornalismo online – adotaremos o termo utilizado na maioria da literatura produzida sobre o assunto: ciberjornalismo que para Salaverría (2005) é a “especialidade do jornalismo que emprega o ciberespaço para investigar, produzir e, sobretudo, difundir conteúdos jornalísticos” (cit. Zamith, 2011, p. 23).

Fácil foi afirmar, desde o primeiro momento, que as novas tecnologias iriam transformar o jornalismo como até então era conhecido. Contudo, só mais recentemente começaram a surgir estudos sobre as implicações da Internet nas notícias, nos processos e rotinas de produção e nos produtores. Assim, tentaremos perceber neste ponto, de que forma é que as rotinas de produção e o trabalho jornalístico foram transformados pela Internet e as novas ferramentas por ela proporcionadas para, posteriormente, podermos responder à segunda pergunta de investigação que neste relatório foi proposto. Para Ayerdi (2003), uma das principais marcas de transformação dão-se na forma como a informação se distribui. A Internet acaba “con la comunicación lineal y unidireccional de un emisor a un receptor e implica una serie de cambios fundamentales respecto a las rutinas del periodismo tradicional”, transformando os jornalistas em transmissores e recetores das informações que circulam na rede (p. 5).

Uma das alterações mais evidentes nestes processos de transformações deu-se, na nossa perspetiva, no papel do jornalista como gatekeeper e, consequentemente, nas suas práticas diárias. Na obra Os elementos do jornalismo: o que os profissionais do jornalismo devem saber e o público deve exigir (2004), Kovach sublinha que a noção de gatekeeper deixou de definir “com rigor o papel do jornalismo” reiterando que a ascensão da Internet e o advento da banda larga não significam (…) que o conceito de juízo crítico aplicado às notícias (…) esteja obsoleto. Muito pelo contrário, tornou-se ainda mais necessário.” (p.23). Ao invés de decidir quais as informações que o público deve conhecer ou não, “o novo jornalista ajuda-o a ordenar as informações. A primeira tarefa do novo jornalista/explicador é verificar quais as informações que são fiáveis e ordená-las para que as pessoas possam apreendê-las de modo eficaz” (p. 23).

De acordo com José Afonso Furtado (cit. Rodrigues, 2015, p.16), a Internet trouxe novas formas de escrita, edição de textos e distribuição. Na mesma ótica, Helder Bastos (2012) reforça que o “aparecimento da Internet (…) proporcionou ao jornalismo a exploração de novos territórios e diferentes linguagens. Surgiram narrativas inovadoras e práticas inéditas” (p.1). Os presságios sobre esta nova tecnologia começavam a emergir e

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daqueles que achavam a Internet uma das maiores invenções de sempre, àqueles que acreditavam que esta seria a morte do jornalismo, as teorias foram-se assomando. Na obra “New Media Technologies and the Information Highway” de 1996, John Pavlik defende que o futuro da sociedade iria existir sem médias noticiosos, pois um software capaz de elaborar artigos automaticamente iria surgir. No entanto, de uma visão pessimista, Pavlik (2001) passou, uns anos mais tarde, para uma visão mais moderada acreditando que:

Although the easy answer is to point to the Internet, the reasons for the transformation of journalism are neither simple nor one-dimensional. Rather, a set of economic, regulatory, and cultural forces, driven by technological change, are converging to bring about a massive shift in the nature of journalism at the millennium (p. xi).

Desde as práticas jornalísticas ao jornalista, desde o espaço de redação aos modelos económicos que até então sustentavam os média, tudo no jornalismo estava a mudar. Como afirma Zamith: “(…) [a Internet] lançava justificados receios de perda de viabilidade económica da atividade, a braços com uma grande dificuldade em encontrar modelos de negócio sólidos que a sustentem” (Zamith, 2011, p.11). Contudo, citando Ribeiro & Resende (2017), “nesta fase de adaptação dos jornais ao ambiente digital e aos desafios por este colocado, as alterações não se restringem apenas aos novos hábitos de consumo e aos modelos de negócio” (p.140), deu-se igualmente uma transformação cultural das redações. E é este ponto que nos interessa explorar neste projeto.

Na nossa ótica, a Internet proporcionou ao jornalismo diversos benefícios. Muniu os jornalistas de novas e melhores ferramentas de trabalho e permitiu que os profissionais estendessem as suas práticas rotineiras a um nível sem limites. A passagem para o digital trouxe a possibilidade de ultrapassar barreiras espaciais, a possibilidade de difundir informação de forma mais abrangente e a possibilidade de um acesso às fontes de informação mais rápido e mais fácil. “Os novos média tornaram mais eficiente a recolha e a produção de notícias, aumentaram a criatividade dos produtores e incentivaram novas maneiras de concretizar antigas tarefas” (Bastos et al. 2013, p. 12). As novas ferramentas digitais de auxílio à recolha de material noticioso, de comunicação, edição e produção tornaram-se cada vez mais portáteis, baratas e poderosas. “Combined, these tools give journalists increasingly effective techniques for finding diverse and reliable sources, checking facts, and meeting deadlines” (Pavlik, 2001, p.47).

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A questão coloca-se quando tentamos desvendar a forma como os profissionais lidaram com todas estas alterações. De que forma é que afetaram as suas rotinas e os seus métodos de produção? Mantiveram-se as rotinas do jornalismo tradicional nesta transição do jornalismo para o ciberjornalismo? Liesbeth Hermans, Maurice Vergeer e Leen D'Haenens (2009) defendem que “a Internet não só altera as rotinas de produção dos jornalistas, como leva a uma redefinição destes enquanto profissionais” (cit. Jerónimo, 2015, p.29). Em boa verdade, a passagem para o digital não criou apenas um novo tipo de jornalismo e, concomitantemente, um novo jornalista – o ciberjornalista. Apesar de se perspetivar diversas potencialidades para a Internet no jornalismo, constata-se em muitos estudos sobre o ciberjornalismo (Bastos, 2012; Bastos, Lima, Moutinho & Reis, 2013; Ribeiro & Resende (2017)), a resistência demonstrada pelos jornalistas e pelas próprias redações a este novo método de trabalho e às novidades proporcionadas pelo advento e que, apesar de todas as vantagens, há também que se considerar as transformações negativas que tiveram impacto nos ciberjornalistas e em toda a redação. De acordo com McNair (1998) “new communications technology has brought with it both “major benefits for journalistic organisations”, and “unsettling changes in working practices and routines”, challenging “existing lines of demarcation in the journalistic workplace” (cit. Saltzis e Dickinson, 2008, p.218).

De todos os estudos analisados até agora, poucos são os que destacam mudanças evidentes no exercício da profissão durante a transição do jornalismo para o ciberjornalismo. Adghini (2002) afirma que as “rotinas produtivas do jornalismo online são semelhantes no que se refere à coleta de informações. O que muda fundamentalmente é a “distribuição das notícias” assumindo que a “diferença essencial entre jornalistas da mídia tradicional e os mídia digital reside no ritmo das rotinas produtivas” (p.145). Ainda que a autora supracitada reduza a diferença ao ritmo das rotinas, em diversos estudos o destaque tem sido dado ao acrescento de funções. Todos os autores citados até ao momento têm apontado as potencialidades da Internet como novas ferramentas de trabalho para o jornalista sem nunca descartarem que essas mesmas novas ferramentas trouxeram, agregadas a elas, novas funções para serem executadas pelos jornalistas, ou melhor, pelos ciberjornalistas. Como anteriormente referimos, o jornalista tradicional tem como rotina produtiva a recolha, seleção e apresentação da informação em forma de notícia. Para o ciberjornalista as rotinas produtivas são, não só constituídas por esses três passos já enraizados do jornalismo, como também pela obrigação de cumprir outras tarefas. “The introduction of computers into newspaper newsrooms in the 1980s added more tasks for

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editors and journalists, and made some traditional roles redundant” (Stepp, 1989; Garrison, 1999 cit. Saltzis e Dickinson, 2008, p.218).

Das diversas mudanças que poderíamos destacar no que às novas rotinas de produção do ciberjornalismo concerne, consideramos que o multitastsking é a característica merecedora de maior destaque por ser aquela que, não só, tem vindo a alterar o papel do profissional como, acima de tudo, o seu método de trabalho. Se, por um lado, as inovações tecnológicas ajudam a simplificar algumas das tarefas enraizadas nos profissionais e a transformar e editar conteúdos em qualquer formato, por outro, “também contribuiu nos últimos anos para estimular a polivalência dos seus jornalistas. As empresas procuram poupar custos mediante a implementação de um perfil de profissionais capazes de desempenhar tarefas que outrora eram realizadas por várias pessoas” (Salaverría, 2014, p.27). Ainda que o autor definisse o conceito de polivalência, e não de multitasking, o mesmo assume que a sua perspetiva de polivalência funcional “(…) relaciona-se especificamente com o conceito de multitarefa e alude àquele tipo de polivalência na qual um jornalista desempenha várias funções dentro da mesma redação” (Salaverría, 2014, p.28). Na mesma perspetiva, Fernandes e de Mendonça Jorge (2017) asseveram que:

Working directly with technology means web journalists combine audio, video and photo production with several other tasks (selecting facts, organizing reports, rewriting, taking photographs, designing layouts for news stories to be published, publishing the final content on the site and social networks, etc.) (pp. 24-25).

Os ciberjornalistas passam assim a dominar uma série de ferramentas das quais anteriormente não faziam uso, passam a dominar diferentes temáticas, sendo capazes de trabalhar em peças com temas díspares em simultâneo e, por fim, a executar diferentes tipos de funções, como editar, organizar reportagens, reescrever notícias, sejam estas de agência ou produzidas por outros colegas, etc. De acordo com Salaverría (2003), “[en] el primer caso, el de los periodistas multitarea, los profesionales, generalmente jóvenes, se ven obligados a asumir múltiples labores de redacción, fotografía, edición, etc., que antes eran realizadas por distintas personas” (p.34).

Esta característica guia-nos para uma problemática apontada por Bastos (2012): a carência de produção própria. De acordo com o autor, desde a inserção da Internet nas redações, esta é uma das práticas mais diluídas. As redações digitais afastam o jornalista “da possibilidade de recolher informação pelos seus próprios meios, de selecioná-la, de redigi-la, de colocá-la em contexto, de preparar os seus textos ou montar as suas peças”

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(p.2). Ainda que nas redações tradicionais se verificasse uma dependência de fontes e canais de informação (ver subcapítulo 2.2.1), nas rotinas de produção dos ciberjornalistas passou a verificar-se não só essa mesma característica, bem como uma maior dificuldade em poder fugir dessa dependência. Isto é, o ciberjornalista, em comparação com o jornalista, tem uma margem temporal menor para poder mediar e cultivar as suas próprias fontes de informação de forma a criar conteúdo próprio e original. “Com deadlines apertados, tendem a concentrar o trabalho em tarefas de copiar e colar em vez de escreverem artigos próprios” (Bastos, 2012, p.2).

A ter em consideração será o facto dos ciberjornalistas ficarem presos à secretária. Se no jornalismo tradicional, os profissionais saem para o exterior, procuram informação, fazem reportagens, já os ciberjornalistas fazem da secretária o seu local de trabalho e nela executam todas as suas funções. Num estudo realizado em 2017, onde se procurou traçar o perfil sociodemográfico dos ciberjornalistas, Bastos deu conta de que, em relação ao grupo observado, o ciberjornalismo é uma atividade sedentária, “de secretária”, em que as deslocações ao exterior são mínimas, destacando que, “a par dos baixos níveis de interatividade com os leitores/utilizadores, [o sedentarismo] mantém-se como uma das caraterísticas mais vincadas deste grupo profissional” (p.22). Da mesma forma, Gomes (2012) argumenta que a Internet é já uma ferramenta enraizada no trabalho dos jornalistas proporcionando mudanças significativas no exercício da prática jornalística e potenciando o sedentarismo na profissão.

A adaptação ao meio, à nova realidade, às novas práticas de trabalho tem vindo a ser desenvolvida. As redações inundam-se de jornalistas jovens que dominam os meios digitais e os que já estão na profissão há anos correm para acompanhar as transformações, contudo nenhuma das inovações parece combater a prática sedentária que se tem instalado nas redações. Segundo o autor supracitado, a troca de informação através de emails, redes socias, telefonemas, entre outras, é uma constante na elaboração de peças jornalísticas ao invés de ser usada como ponto de partida ou complemento na construção de notícias.

“Estes, os jornalistas, também viram a sua acção simplificada e o acesso a informações à distância de um par de toques no rato, dissuadindo, por um lado, o contacto com fontes de informação e, por outro, a procura de profundidade e fundamentação da notícia” (Gomes, 2012, p.4).

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Apesar dos esforços para combater esta lacuna, a pressão para alimentar o espaço mediático juntamente com a abundância de conteúdos, reduz os jornalistas a meros “reprodutores de conteúdos”, fixando o seu lugar nas secretárias das redações prejudicando não só o jornalista enquanto profissional, mas também o produto final – as notícias. “A Internet não elimina apenas as noções de espaço/tempo. Ela confunde as fronteiras entre jornalistas profissionais (diplomados pelas faculdades e reconhecidos pelos sindicatos) e «produtores de conteúdos»” (Adghini, p. 138). Esta confusão afeta primordialmente o conteúdo das notícias pois, se tivermos em consideração o escaço tempo que é dedicado à sua elaboração, “[…] nem sempre reflecte a especificidade do meio em que será reproduzida, transmitindo a ideia de que o essencial é a divulgação da informação, ainda que a mesma seja desprovida de detalhes, quando não são falhas de palmatória, linguísticos e expressivos, característicos de outros meios” (Gomes, 2012, p.193).

A par desta alteração na execução das rotinas de produção, a mudança evidenciou- se num outro aspeto – o tempo. A Internet revolucionou a noção de tempo ampliando, ao mesmo tempo, um constrangimento já vivido pelos jornalistas da imprensa tradicional. Se anteriormente trabalhavam numa corrida contra o tempo para que todas as peças estivessem terminadas antes da hora de fecho, os ciberjornalistas, passaram a lidar com a pressão do tempo constante. Isto é, uma das características da Internet é a instantaneidade – poder publicar a qualquer hora, sem depender do fecho da edição, ou, nas palavras de Zamith (2011), “a capacidade de publicar instantaneamente qualquer conteúdo jornalístico (mesmo o menos relevante e/ou urgente) sem ter de esperar pela hora do noticiário radiofónico ou televisivo ou pelo momento em que o jornal impresso começa a ser distribuído” (p. 34). Por essa razão, os jornalistas deixaram de estar sob a pressão de ter o trabalho pronto antes do deadline para passarem a suportar a pressão de terem de publicar a toda e a qualquer hora. “Working against the clock, dedicated to what is new, and obsessed about being up-to-date, journalists are in a constant struggle (apparently a losing one) to react to the latest events”. (Traquina cit. Fernandes & de Mendonça, 2017, p.21).

Na visão de Borges (2009): ““real time” is strongly expressed in the production routines of web journalism because it assumes a “mandatory maximum reduction of time between the event and the publication” (cit. Fernandes, S. G. & de Mendonça Jorge, T. 2017, p.22). Escrever em tempo real, relatar os acontecimentos e atualizar as notícias a todos os minutos tornou-se numa das principais tarefas do dia a dia do ciberjornalista. Para as autoras supracitadas, a pressão do tempo é uma parte constante do ciberjornalismo e do seu processo de produção havendo, agregada a ela, uma necessidade de ficar à frente da

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concorrência “in terms of time, originality and quantity of material produced, and to inform online readers across multiple platforms” (p.22).

Incontornável será dizer que as transformações provocadas, quer pela Internet quer por todos os novos dispositivos tecnológicos inseridos no exercício da profissão, ainda estão a gerar o seu impacto nas redações. O processo de transição ainda não está completo e o jornalismo tradicional ainda tem muito peso na forma em como se produz as notícias. Porém, é possível adiantar que estas transformações tiveram um severo impacto nas rotinas de produção dos ciberjornalistas, fazendo-se sentir a mudança, mais profundamente, no desempenho das práticas jornalísticas. O profissional vê-se numa luta constante entre a pressão de produzir e corresponder à instantaneidade dos meios digitais, e a necessidade de manter as notícias com qualidade, gerando frustrações e inquietações quer no que diz respeito ao jornalista quer no que diz respeito ao produto que chega às audiências.

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