• Nenhum resultado encontrado

69 para os roubar Isso pode querer dizer que, aos olhos da justiça, a prática de sedução

podia ser entendida também como a ação de sujeitos livres negociarem com escravos para que eles cometessem algum tipo de delito – como brigas ou roubo. Tal como aconteceu no caso supracitado, em que o réu Jacilho foi acusado de aconselhar os cativos a roubar de seus senhores e vender os objetos a ele.

Como foi apontado no primeiro capítulo, os diversos termos utilizados pela justiça para classificar os crimes de roubo de escravos – sedução, furto e indução a fuga – embora pudessem representar fatos sociais diversos, eram utilizados nos processos criminais como sinônimos. Quando libertadores, ladrões comuns, senhores de escravos e membros de quadrilhas especializadas eram julgados como meros ladrões de escravos, as formas de resistências que circundavam essa ação ficavam subentendidas, mascarando assim o protagonismo dos agentes envolvidos e suas lutas cotidianas contra o sistema escravista e por melhores condições de vida. Torna-se necessário, portanto, ler as entrelinhas dos processos, na tentativa de descobrir quais os diferentes significados dos furtos de escravos para os diferentes sujeitos envolvidos e a relação que esses crimes tinham com o contexto histórico, social e econômico de cada região.

Por fim, chegamos ao julgamento. Como foi dito acima, assim como o réu Jacilho Ferreira da Silva, do processo anterior160, Antonio de Paiva Bueno foi absolvido pelo júri de acusação. O promotor público sustentou sua pronúncia classificando o caso como incurso no artigo 297 – uso de armar proibidas - 161 e no artigo 269 – versa sobre crime de roubo – do código criminal tendo em vista a resolução de 15 de outubro de 1837, além de condenar o réu a pagar pelas custas do processo. O libelo acusatório, feito pelo promotor aparece incompleto visto que há algumas páginas faltando no processo162. Mas ainda assim, tivemos acesso a uma parte dos argumentos utilizados no pedido de condenação do réu:

1. Porque em dias de outubro de 1855, na freguesia do campo formoso deste termo, apareceu o réu Antonio de Paiva Bueno, mendigando esmolas em razão de ser aleijado e #.

2. Porque o réu foi a roça de Domingos Rodrigues Pereira e aí seduziu a Domingos Africano escravo do mesmo para sair da casa de seu senhor como contou o escravo a 3º testemunha.

160 APU. Processo-crime de Roubo de Escravo, 20/06/1854, caixa 019, nº031.

161 Art. 297. Usar de armas ofensiva, que forem proibidas. Penas - de prisão por quinze a sessenta dias, e

de multa correspondente a metade do tempo, atém da perda das armas. BRASIL. Lei de 16 de dezembro 1830. Manda executar o Código Criminal. Rio de Janeiro, 7 janeiro 1831. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 26/09/2019.

70

3. Porque o réu tentou furtar o dito escravo e vende-lo e o mesmo fazer a Rosa escrava de Maria Rita do Amaral, por # que foi oferecê- los163.

Diferente do processo anterior, em que Jacilho Ferreira da Silva era réu, a defesa apresentou argumentos e provas em defesa de Antonio de Paiva Bueno. Após o promotor ter apresentado seus argumentos de acusação, a defesa apresentou suas provas, que foram replicadas pelo promotor e novamente contra-argumentadas pela defesa. Infelizmente essa argumentação não consta na transcrição do processo. O escrivão citou a apresentação das provas no julgamento, mas elas não estavam no processo que encontrei no arquivo. O réu foi então julgado pelo júri e absolvido. Nos deparamos então, mais uma vez, com indícios de que a pronúncia somente por “roubo de escravos” não era suficiente para que o júri de acusação condenasse os réus.

Por fim, nota-se que a maioria dos processos que analisamos até aqui estão concentrados na década de 1850164, o que nos dá indícios da relação dos roubos de escravos com o fim do tráfico transatlântico decorrente da promulgação da lei Eusébio de Queiroz em 1850. Talvez, os roubos já acontecessem em grandes proporções em décadas anteriores, porém, com o fim do tráfico atlântico, a polícia e as autoridades tenham ficado mais atentas, prendendo mais pessoas por esse crime, já que o preço do escravo ficou mais elevado depois do fim do tráfico. Apesar dos indícios, essa hipótese ainda precisa ser confirmada por meio da análise conjunta de um número maior de processos e com o cruzamento dos dados obtidos com outras fontes.

Portanto, a partir da análise desses processos, nota-se como os crimes de “roubo de escravos” em Uberaba eram, na verdade, casos em que os escravizados “se deixavam roubar”. Isso significa que o que era interpretado pela justiça como furto era, na maioria das vezes, situações em que escravos fugiam com a ajuda de alguém da sua rede de solidariedade para ir em busca de condições melhores de vida e de cativeiro. Essa ação podia ser envolta de um longo processo de negociação, ou “sedução”. Os “ladrões” podiam oferecer diversos tipos de acordos aos escravos – sua venda em outras províncias, prestação de serviços remunerados, prestação de serviço em troca de proteção, ajuda na fuga, entre outros – e estes podiam escolher aquilo que julgassem 163 APU. Libelo acusatório contra Antonio de Paiva Bueno no processo-crime de tentativa de roubo de

Escravos, 22/10/1855, caixa 019, nº036.

164 Dos 18 processos criminais sobre roubo de escravos encontrados no APU, três são datados na década

de 1830, três em 1840, dez em 1850 e dois na década de 1860. Isso reforça a hipótese da ligação desses crimes com o aumento do tráfico interno que acorreu após a aprovação de lei Eusébio de Queiroz em 1850. Entretanto, essa hipótese só poderá ser confirmada com a continuidade da pesquisa e a análise do restante da documentação disponível no arquivo.

71