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3. Histórias Naturais

3.1. O Século XVI: Um Novo Mundo Natural

No andamento das relações entre o Velho e o Novo Mundo, a necessidade do reconhecimento engendra operações simbólicas e significações culturais que permitiram um alargamento do universo, no sentido de recuperar a unidade perdida. A constatação de que estamos diante de alguma coisa distinta, sugere indagações, que certamente nos levam a uma metodologia, nascida de questionamentos simples, como por exemplo, “esta espécie é diferente?” As diferenças não serão possíveis de serem assinaladas sem o método comparativo. São deste teor as narrativas dos cronistas e conquistadores primeiros. Não há como negar que, ao chegar nos trópicos, deparam-se com algo inusitado, tratam-se de seres e circunstâncias improváveis dentro do contexto geográfico. Os conceitos com os quais se pensava o mundo, gradativamente foram modificados e, conquanto um hercúleo esforço fosse feito no sentido de salvaguardá-los, para a integridade do pensamento clássico europeu, a ampliação da espacialidade foi decisiva para a continuidade do pensamento moderno. A unidade geohistórica e social da Europa a partir do século XVI não poderá ser pensada sem a América; um amadurecimento que teve sua origem na percepção da imagem americana.

Na segunda metade do século XVI, depois das expedições de Orellana e Irala24, a América do Sul foi atravessada várias vezes pela zona equatorial e, na

diagonal, desde Buenos Aires até Lima, nas zonas temperada e tropical. Os cruzamentos latitudinais tornaram-se freqüentes a partir do século XVII, e nas regiões Andinas já conquistadas, velhos caminhos construídos pelos Incas e Chibchas, foram trocados por outros menos perigosos pelos espanhóis. Não seriam, contudo, as referidas rotas traçadas pelos conquistadores, que enriqueceriam os conhecimentos geográficos. Nos séculos XIX e XX, se concluiria que durante mais de trezentos anos do período colonial, realizaram-se inúmeras explorações importantes, pelos caminhos transitados e vias fluviais, que na sua maioria não chegaram a ser patrimônio comum.

De qualquer forma, ao nos debruçarmos em busca de um entendimento da América portuguesa quinhentista, o espaço ocupado pela descrição das maravilhas e mistérios é restrito. Para Sergio Buarque de Holanda, talvez “porque a longa prática das navegações do Mar Oceano e o assíduo trato das terras e gentes estranhas já tivessem amortecido neles a sensibilidade para o exótico” (1994; p.1). Lembremos que o conquistador português já tivera contato com as Índias Orientais – fascinante o bastante para nós, ocidentais, até hoje. Em assim sendo, as terras no Novo Mundo, de imediato não lhes trouxeram maiores inquietações, que fosse ocupar para garanti-las. Mas, vivendo continuamente apartado do seu mundo, o conquistador tornara-se como que distanciado e mesmo alheio ao seu viver

24 Domingo Martínez de Irala, governou o Paraguay (então Asunción) até 1555, em detrimento da

cotidiano e por isso mesmo, quase sempre afeito às fantasias dos outros, desconhecendo ou esquecido da sua, sem, contudo, ultrapassar em demasia a linha do imaginário.

A carta do escrivão Pero Vaz de Caminha com as primeiras notícias da terra de Vera Cruz, não faz qualquer referência a uma geografia fantástica; mantida em sigilo por longo tempo, somente no século XVIII foi publicada numa obra européia, mesmo assim com censuras. No Brasil esperaria até 1817 para ser publicada através de Aires de Casal – também não sem a censura. A carta não menciona o ouro e a prata como o maior achado. Considera, isto sim, a impressão de grandeza que lhe deu a terra; um achado de exuberante natureza.

(...)“ Nela, até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem cousa alguma de metal ou ferro; nem lhe vimos. Porém a terra em si é de muitos bons ares, assim frios e temperados como os de Entre-douro-e- Minho, porque neste tempo o achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa, que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que esta pousada para a navegação de Calecute, isso bastaria.(...)” (Carta de Caminha apud HOLANDA;1960, p.51)

Ao longo da carta, transparece o perfil do futuro colonizador, na análise da terra, em proveito de uma empreitada que estava por vir. Entre um receio e outro, o nativo é apresentado à Coroa como cordial, embora

desconfiado. De resto, as notícias de Caminha por um período de quase quarenta anos foram suficientes para Portugal, pelo menos até que as riquezas reais do Oriente deixassem de prover suas necessidades reais ou imaginárias. Enquanto isto a terra de Vera Cruz, não passou de porto seguro para os navegadores a caminho da Índia.

Contudo, o impacto que a descoberta do Novo Mundo representou para a cultura e conhecimento da natureza do Velho Continente é algo que até hoje ainda estamos tentando computar. A total perplexidade diante do inusitado e as analogias estabelecidas num primeiro momento provêem a restauração do etnocentrismo europeu. Permaneceram, contudo, as lacunas, esperando por reflexões científicas, para serem solucionadas. Isto posto, o grande compromisso da investigação era superarem-se – os naturalistas – uns aos outros, nas discussões do território americano e seus habitantes, o que resultou em novos métodos para as narrativas geográficas, conquanto não fosse esse o propósito: criar uma sistemática da geografia. Pois para Capel,

“De certo modo, poder-se-ia afirmar que a geografia moderna nasceu durante o século XVI, na América, no esforço por reconhecer, descrever, estudar, e organizar as informações das terras descobertas.” (1999; p.47).

Senão vejamos: o século XVI encerrou-se com os estudos de Ambroise Paré comparando os esqueletos do homem, de outros mamíferos e das aves. Edward Tyson, no século XVII, desbravou os caminhos da anatomia comparada e desalojou o homem do seu papel único acima e à parte de todo o resto da Criação, ao efetuar

uma dissecação do orangotango. A fomentação dada pela ciência moderna inaugurou um período de muitas invenções cujo alvo era a precisão. Tratava-se de instrumentos que possibilitavam transformar experiências únicas em repetíveis; assim, entre outras conquistas, o século XVII oferece o fabrico do relógio, do microscópio de Leeuwenhoek – cuja aplicação inicial era medir e ver. Uma azáfama percorreu a Europa nestes três séculos. Uma Europa ávida de conhecimentos. Mas se a filosofia e a dúvida científica haviam apagado as fogueiras inquisitoriais, restavam os calabouços, isto posto, tomassem cuidado os filósofos naturalistas com alguma afirmação menos feliz, que poderia atirá-los na prisão25. Restava-lhes então, as cartas com óbvias vantagens sobre as publicações, onde cruzavam notícias das experiências com transfusão de sangue, sobre os astros ou sobre um inseto exótico (BOORSTIN; 1989).

Os conquistadores ou colonizadores estavam então, comprometidos com os governos das metrópoles, de forma a enviarem periodicamente informes secretos, detalhados de suas divisões administrativas – no Brasil, as capitanias hereditárias26.

Com as informações, eram enviados traçados cartográficos, que, uma vez mantidos por uma política de sigilo, geralmente não eram estudados. Enquanto os originais

25 Um bom exemplo de intolerância do ranço Ancien Regimen –defendido pelos jesuítas, Assembléia

Geral do Clero, Parlamento de Paris, Conselho Real e o Papa -, fica por conta das publicações da Enciclopédia Iluminista que tem início em 1715, com o primeiro volume. Foram várias as tentativas de fazê-la abortar. Diderot à frente do ousado projeto foi encarcerado por quatro meses, respondendo por um verbete. Buffon conquanto apontado como colaborador, manteve-se à distância, uma vez que já respondia processo por sua Histoire Naturelle, cuja publicação iniciou-se em 1749. Em 1770 após denúncia da Assembléia Geral do Clero Francês, a polícia parisiense apreendeu seis mil cópias dos três primeiros tomos da Enciclopédia, trancafiando-as na Bastilha. Com isso seus editores transferiram suas impressões para Genebra.

26 Os documentos mais antigos da doação das capitanias datam de 1534. Deve-se a demora entre o

projeto e a execução, talvez pela dificuldade de redigir as complicadas cartas de doação e os forais que as acompanhavam e/ou a falta de voluntários. Os donatários saíram em geral da pequena nobreza. Dados às aventuras e conquistas possuíam larga experiência praticadas por contínuas viagens às Índias Orientais. Contudo, muitos deles nunca vieram ao Brasil.

seguiam para serem guardados nas metrópoles, em algumas circunstâncias especiais, cópias aqui permaneciam para serem sepultadas nos arquivos secretos coloniais. Ali por longo tempo sepultadas, à mercê das intempéries ou acidentes, boa parte destes valiosos documentos pereceu durante incêndios ou perderam-se devido à má conservação; a maioria das informações missionárias e suas hierarquias religiosas sofreram este tipo de desdita ou encontram-se encerradas em mosteiros (HOLANDA; 1960).

Mas, a época que se seguiu ao descobrimento do Brasil, como já abordamos anteriormente, grandes mudanças ocorreram na Europa, ou seja, um renascimento completo das ciências físicas e naturais. Nas artes, nas letras e na filosofia, o humanismo, o culto à liberdade do espírito. De Francis Bacon herdaríamos o método indutivo experimental; de Descartes, a consagração à dúvida metódica; de Copérnico, de Kepler, de Galileu, de Newton, uma nova concepção do universo em movimento; da navegação, a influência que propiciaram os descobrimentos no contato com outras terras, outras gentes da América, da Ásia, da África e das ilhas do Oceano Pacífico. Da soma de todas estas informações, um sopro renovador pairou sobre as ciências. Beneficiaram-se a fisiologia, a zoologia, a botânica, a mineralogia, a física e a química, a geografia, a etnografia e a própria medicina.