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3. Histórias Naturais

3.5. Um sistema ‘sueco’ de classificação

Nossos sábios, até o século XVI, estavam longe de conceber uma sistemática fundada sobre a distinção e definição rigorosa do gênero e espécie, atestada pelo inventário botânico num primeiro momento, e zoológico num segundo (um substantivo genérico e um adjetivo específico), formulado por um valor universal, na língua latina. Esquemas classificatórios continuamente apresentavam-se como forma de organização intelectual do mundo da natureza, algumas vezes apenas como ordenação alfabética, em outras ocasiões bem próximos da sistemática lineana, como John Ray, ao final do século XVII. Tratava-se de classificações concorrentes que de perto estavam atreladas às analogias humanas em relação à natureza.

Mesmo no século XVIII, a resistência e as facções das escolas científicas se opunham em muitos momentos ao trabalho de Linnaeus. Num período de divulgação de pesquisas, ao propor métodos de classificação que consideram a sexualidade das plantas, tal sistemática – lineana – se choca com um grande preconceito social: o escrutínio das “partes íntimas” das flores tornava pouco recomendável o estudo da botânica para as damas. Em outro momento, entendiam os mestres, muitos dos quais sacerdotes ou teólogos, que ao afirmar que as flores eram órgãos sexuais das plantas – intencionalmente, numa linguagem bastante ousada –, o sistemata estava desrespeitando os altares das igrejas ornamentados

de flores. Mas, como quer que a sociedade o julgasse, a nova voga de sistemática desencadeara por toda Europa um paradigma para o qual não haveria retrocesso.

Em 1735, Linnaeus chega à Universidade de Hardewijk, na Holanda, e no mesmo ano obtém o grau de doutor com a tese De hypothesis nova de febrium intermitentium causa, publicando o Systema Naturae, uma elaboração classificatória que intencionava categorizar todas as formas vegetais do planeta, fossem elas conhecidas ou não dos europeus. A partir deste momento, as viagens e os relatos de naturalistas não mais seriam os mesmos, o trabalho dos herborizadores teria um novo exercício, munidos de frascos, sacolas para coletas e cadernetas de anotações; seus sentidos estariam atentos para as novas espécies; um novo campo de visão que objetiva descrever o visível. Para Michel Foucault (1991), uma aproximação da linguagem com a representação, uma redução da distância na medida em que as coisas e as palavras estão separadas.

A descoberta de algo já existente, como por exemplo, o novo campo de visão da natureza, trouxe à contemporaneidade um novo desafio, o desafio por crescente tecnologia, senão vejamos: a busca por meios de transportes cada vez mais eficientes, melhores meios de preservação e conservação dos espécimes, bem como das exposições através dos registros documentais, onde podemos ver a busca de especializações artísticas ao desenhar a botânica e/ou ao captar a paisagem. Em vários aspectos da vida social e material pode ser vista uma incrementação das relações, seja no aperfeiçoamento da tipografia para a reprodução gráfica, seja na criação de novos instrumentais a partir dos relógios. As viagens se tornaram cada vez mais um empreendimento financiado, gerando uma nova rede de empregos para

os cientistas e outros, que eram contratados para os trabalhos de reconhecimentos de novas regiões em expedições coloniais. De mera curiosidade, a história natural ganhou prestígio comercial, um salto das descrições dos compêndios às organizações de jardins botânicos que se tornaram espetáculo obrigatório aberto ao público. Enquanto Linnaeus elaborou seu próprio jardim botânico, Buffon foi mantenedor do Jardin des Plantes em Paris. Diante do azáfama que a sistematização da natureza estabeleceu como projeto europeu, com pertinência Mary Louise Pratt, afirma que:

“Não se pode encontrar exemplo mais vívido a comprovar que o conhecimento existe não como acúmulo estático de fatos e informações isoladas, mas como atividade humana entrelaçada a prática verbais e não verbais” (1999, p.63).

O sistema de Linnaeus criado em princípios para a classificação das plantas – posteriormente para os animais e minerais –, classificava-as de acordo com as características de suas partes reprodutivas, tratava-se da configuração básica de vinte e seis estames, pistilos, etc., que foram distribuídos em ordem alfabética após serem identificados. Os minerais seriam divididos em pedras e fósseis e os animais em seis classes e mais o homem como a sétima, estando Deus no topo do sistema. O critério para a divisão das classes animais eram as diferenças entre certos caracteres como os dentes, as mamas, os estômagos, etc. Já os vegetais dividiam- se em 24 classes. Também em relação às doenças, Lineu incursionou na sua classificação, escrevendo o Genera morborum, em 1763, onde as ordena em 11 classes e 325 gêneros. O seu método, como já afirmado, tem origem na botânica, onde ele alcança o seu melhor resultado, utilizando como critério do sistema

classificatório as diferenças no aparelho reprodutivo das plantas. Da botânica a classificação estende-se pelo resto do universo. "Les symptomes sont à l'égard des maladies, ce que les feuilles et les supports (fulcra) sont à l'égard des plantes", escreve Lineu, afirmando que é preciso aplicar o método botânico ao estudo das doenças que devem ser divididas em classes, gêneros e espécies (CARNEIRO: 1999, pág 51).

Com quatro parâmetros visuais adicionais se completava sua taxonomia das plantas por número, forma, posição e tamanho relativo. Para Linnaeus, todas as plantas podiam ser classificadas mediante o sistema de distinção acima criado, mesmo aquelas por descobrir. Outrossim, para sedimentar sua nomenclatura restaurou o latim, por não ser língua nacional de ninguém. E embora outros botânicos naturalistas trouxessem suas propostas de paradigmas – ao que se faz necessário esclarecer que o sistema lineano é apenas uma vertente dos inúmeros sistemas classificatórios que eclodiam em meados do século XVIII, na disciplina de História Natural –, e todos tivessem como objetivo um projeto totalizante e comum para a história natural, tratava-se de propostas continentais, sem a amplitude lineana.

Uma planta é completamente nomeada quando se lhe fornece um nome genérico e um nome específico. O nome específico deve distinguir a planta de todas as outras do mesmo gênero. O nome específico identificará a planta que o leva à primeira vista, pois ele expressa a ‘differentia’ que esta impressa na própria planta” (Linnaeus, 1738. Critica botanica apud

PAPAVERO & PUJOL-LUZ; 1999, p.174)

O Systema, de forma magistral, efetivou com originalidade o que seria um compêndio de toda ‘História Natural do tempo’. Com a implantação de um sistema extremamente prático da nomenclatura binominal, temos um modo de recensear a quantidade de organismos até então estudados e aqueles em vias de o serem. Através da classificação lineana, abria-se um leque de possibilidades e, à primeira vista, conduziam-se os organismos denominando-os de forma descritiva. Assim, temos, por exemplo, o Morcego ferradura-maior, cujo nome científico é dado pela sistemática: “Rhinolophus ferrumequinum” - Rhinos (do grego: Nariz), Lophos (do grego: brasão, decoração), ferrum (do latim: ferro) e equinum (do latim: cavalo) (DURRELL:1996, p.26). Com tal denominação, a sistemática de Linnaeus está descrevendo um Morcego-de-nariz-em-folha, que possui protuberâncias carnudas que lembram uma ferradura. Popularmente pode ser conhecido por diversos nomes, porém, cientificamente, para o naturalista seu nome latinizado dirá aquilo que ele é. Um novo patamar para a progressão da ciência: bem delimitadas as fronteiras do conhecido, tornar-se-ia fácil cruzá-las pela simples exploração geográfica de um mundo em boa parte por descobrir.

No período das Luzes, um dito popular afirmaria que ”Deus creavit, Linnaeus Disposuit” (Deus Criou e Linnaeus dispôs). Tal a simplicidade com que combinava o ideal sistemático de classificação das plantas com uma sugestão prática de construção da nomeação. Um esquema que até nos seus rivais e críticos, encontrava o consenso de que trazia ordem ao caos. Evidentemente, entre a sistemática lineana latinizada e a esfera pública, um suporte lingüístico foi se elaborando através dos relatos jornalísticos e as narrativas de viagem. Pois enquanto as autoridades científicas estavam envolvidas na elaboração de textos

especializados em nomenclaturas taxonômicas, as publicações literárias davam conhecimento e acesso ao público de forma que os elegiam – ao leitor –, agente da legitimação dessa ciência.

De grande aceitação inicialmente na Inglaterra, na França, os Iluministas, e particularmente Buffon, não concordavam com a ordenação do sistemata sueco. À resistência inicial, seguiu-se a tentativa de tradução da denominação latina. Aliás, se expressa claramente no discurso preliminar dos editores da Enciclopédia Iluminista a importância de levar o conhecimento dos sábios em língua acessível ao vulgo. (...) “Notre Langue s’étant répandue par toute l’Europe, nous avons crû qu’il étoit temps de la subfitituer à la Langue latine (...)”42 (ENCICLOPÉDIA; 1989; p.30). Contudo, ao final da década de 1750, iniciando 1760, a padronização do sistema lineano da nomenclatura binominal, estabelecido no “Species Plantarum” (1753) e na décima edição do “Systema Naturae” (1758), proposta pelo sueco Carl von Linné – então latinizado para Linnaeus –, era, de certa forma, plenamente aceita por toda Europa.

Assim, cumpria-se o que fora intentado desde o do século XVI, desfazer alguns equívocos acerca da ordenação do mundo natural. Distinguia-se uma certa consciência por parte dos pesquisadores, da necessidade de uma atividade científica como trabalho conjunto. O conhecimento ou o resultado de pesquisa carecia de uma divulgação. Isto posto, nasciam as primeiras comunidades científicas oportunizadas pelos serviços de correspondências, órgão divulgador das

42Tradução: (...) “Como nossa língua se propagou por toda Europa, pensamos que era tempo de

descobertas que, conquanto ineficiente, respondeu pelas necessidades prementes até que se criassem as primeiras associações.

3.6. Produção e Divulgação das Ciências Lusitanas: A calcografia