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A considerar a importância do bem jurídico para extremar os

contornos do legitimamente criminável, a revelar o espaço de interferência do

direito penal, mormente na definição legislativa do crime, tem-se a inexatidão, até

este momento do trabalho, dessas fronteiras. Do analisado, a noção do bem

jurídico é insuficiente para garantir a liberdade no ambiente do Estado

Democrático de Direito.

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Antes do iluminismo a essência da punição residia na expiação.

Detidamente no direito com fundamento teológico, punia-se para desculpar,

arrancar o pecado, penitenciar. A idéia da realização da justiça baseava-se na

legitimidade do intérprete das leis divinas. Deduzia-se a vontade do ente superior,

a estruturar o conteúdo da lei na metafísica teológica.

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Além da mera violência, também pelo imobilismo do antigo

regime, incompatível com o mercantilismo em expansão, com a acumulação de

capital por meio do comércio, o iluminismo, nomeadamente a revolução

burguesa, subverteu o sistema, a engendrar outra concepção ao direito natural,

130 Constata-se também a ingerência das concepções do próprio Direito, como um todo, e assim

deve ele ser visto, a moldar não só a visão abstrata, teórica, do fenômeno jurídico, como ainda a operá-lo no controle social, em grande medida, como instrumento eficiente a serviço do poder, ou seja, como legítimo recurso de dominação.

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As mazelas desse sistema, violência, segregação, desumanidade, podem ser resumidas numa palavra: irracionalidade. Tamanha era a ausência de parâmetros punitivos (cuja violência não baseada na pena privativa da liberdade, diga-se de passagem) que nem se fala em direito penal nesse período, como hoje tenta-se conhecer. Pode-se equiparar o sistema ao tratamento dispensado aos animais; embora tal assertiva pareça viva na atualidade no nosso sistema prisional. Em síntese, a concepção do direito natural, alicerçado na justificação teológica, principalmente, fazia da punição artefato do poder; utilizada como propaganda da diferença social, pois só os súditos sujeitavam-se à violência. Assinale-se que o sistema não escondia tal proposição, pois o cerne da manipulação da pena residia na intenção de deixar bem clara estratificação imutável da sociedade.

visto com fundamento antropológico. Assim, a se valer da valorização do homem,

difundida pelo renascimento, montou-se a incongruência entre a punição

irracional e a necessidade de critérios racionais para o seu implemento.

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Especificamente ao bem jurídico-penal, a primeira construção

teórica (Birnbaum) foi insuficiente ao desiderato da limitação do poder punitivo,

pois eram extremamente opacas as linhas do bem jurídico, embora o sentido da

pré-juridicidade tenha suas raízes nessa primeira formulação. Mais adiante, na

trilha deixada pelo racionalismo iluminista, viu-se o defloramento do positivismo,

corrente importante do pensamento jurídico, sustentador da noção orgânica da

sociedade.

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Assim, pela experiência sociológica, LISZT tratou da limitação

do poder punitivo a apontar que a pena só incidiria para tutelar bens fundamentais

do homem, encontrados na vida, nas relações humanas. Bens esses que eram,

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Não se pode afirmar, peremptoriamente, a expressão humanitária como caraterística exclusiva do movimento da ilustração. Em primeiro lugar, ao estabelecer a diretriz racional e arquitetada da punição, enxerga-se o contraponto marcante com o regime derrubado. Ou seja, o discurso racionalizante serviu, e muito, para marcar a diferença entre o novo e o velho Estado, a fixar a verdadeira incompatibilidade entre eles, a favorecer, com isso, a implantação do Estado contratual. Ademais, com a estabilização do poder pela burguesia, assistiu -se à consolidação da prisão privativa da liberdade cuja moldura ainda hoje é aproveitada. Portanto, pode-se dizer que o surgimento do direito penal acompanhou a fixação duma nova estrutura de poder. Ressalte-se ainda que a construção teórica do utilitarismo da pena serviu de alicerce para a prevenção especial do positivismo, a desembocar nos irracionalismos do tratamento do delinqüente nato (Lombroso) e da visão da existência de uma casta de fracos na sociedade (Nietzsche), discurso assenhorado pelo do nazismo. Mas, em que pese tais objeções, o iluminismo representou um novo paradigma para o direito, nomeadamente para o direito penal, com a ilustração do homem, pintado como o centro do mundo, criador das suas re gras, de modo que o irracionalismo da pena do antigo regime, com ausência total de limites ao poder de punir, choca-se com o anseio antropológico, que busca levantar obstáculos formais e materiais ao ius puniendi. Arrisca-se a dizer que o iluminismo apresentou o vetor para o estabelecimento dos limites da atividade punitiva do estado, a preocupar- se incisivamente com o homem, receptor da punição.

133 Nessa atmosfera, o positivismo tomou conta da produção do direito. Agrega-se a esse

portanto, inatos.

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BINDING, doutro lado, asseverava a lei como única expressão

do bem jurídico, a tornar o direito reduzido à legalidade.

O não escalonamento de quais os bens fundamentais a serem

apanhados pelo direito penal, ou a falta de critérios dessa seleção, pode ser visto

como a falha das concepções positivistas, que, na extremidade do legalismo, leva

à autorização desmedida da criminalização, pois interessa apenas a vontade do

legislador, ainda que sem compatibilidade com os bens carentes de proteção.

Mas, em que pese a deficiência do positivismo jurídico, a fase

seguinte das tentativas teóricas de construção do bem jurídico-penal (HONIG),

com maior expressividade, o normativismo, concebido no empirismo legalista e

na busca incessante dum método e dum objeto que identificasse o direito como

ciência, aniquila o conceito de bem jurídico, pois a norma era a única garantia da

pureza metodológica, a retirar as impressões sociológicas, econômicas, entre

outras, desnaturava o direito.

Daí que o bem jurídico só podia estar ligado à interpretação da

norma. Ele era deduzido da ratio legis. Não havia qualquer investigação anterior

para se conhecer o que a norma quis absorver. Importa o complexo normativo, a

forçar a realização da lógica-jurídica, procedimento desgarrado da realidade.

Nem é preciso discorrer novamente sobre o defeito desse

sistema, já que é patente a sua não operatividade limitadora da criminalização, que

responde, quando muito, à lógica formal da estrutura hierárquica das normas.

resolução dos problemas e de percepção da realidade. O direito teria que depender duma matriz, duma fonte que lhe desse substância.

Qualquer argumentação material, ainda que ambientada na norma maior, falece de

legitimação, ou não pertence ao direito.

Extrai-se desse arrazoado, num segundo momento, não como

revelação, algo incriado, mas só depois da oposição dialética, ou seja, dialogando

incessantemente com os fatos históricos, que a matriz fornecedora dos critérios

legítimos para barrar o exercício do poder de punição não foi encontrada por

vários motivos, a destacar a corrida pelo cientificismo e o desapego à tradição

liberal.

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A pureza da metodologia normativista, de forte convencimento

pois ainda na atualidade o direito é identificado com a norma, mostrou-se

insuficiente ao desiderato da ontologia jurídica. A norma hipotética fundamental

nada explica nesse sentido, podendo-se afirmar que ela não passa de outra

metafísica sustentando o direito.

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Em síntese, o argumento normativista atravanca o caminho da

procura da matriz regulamentadora do poder punitivo. Ao desprezar os aspectos

extranormativos para o raciocínio jurídico, afasta junto o intento da limitação

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Dentre os principais méritos de LISZT está a transcendentalidade do conceito de bem jurídico, isto é, um conceito que parte de dados da vida, fornecido pelas relações sociais, o que é fundamental para desvincular as amarras puramente positivistas-legalistas.

135 Do apanhado sobre as concepções do direito e do bem jurídico-penal, pode-se concluir, num

primeiro fôlego, sem discurso panfletário, que o direito, mecanismo de controle social, sempre esteve a serviço do poder; este, condicionante permanente do conhecimento jurídico. Interessante observar no processo histórico, principalmente após a revolução burguesa, que o pensamento jurídico é forjado pela ideologia mantenedora do poder político, modificando-se com as revoltas sociais, tendendo a acomodá-las no sistema. Por isso que hoje se compreende que os direitos, até à legalização, são conquistas da luta, do enfrentamento aberto, quer no campo macro-social, como os movimentos de classe, de sindicatos, de trabalhadores rurais e urbanos, quer na esfera micro - social, processos judiciais e universidades.

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Todavia, esse entendimento reducionista contribui, e muito, ao regime capitalista. Não é a toa que os mais destacados juristas (dentre eles, HART) do sistema da common law, de raízes

material da criminalização, que depende do diálogo com as estruturas formais,

sem deixar de fora da pauta as conclusões decorrentes das relações humanas, do

direito criado na rua (LYRA FILHO).

Daí que a retomada da discussão sobre a questão do bem

jurídico-penal, capaz de situar o âmbito do que pode ou não ser criminalizado,

passa obrigatoriamente pela desconsideração da visão exclusivamente normativa

do fenômeno jurídico. O conteúdo material, ao que consta novamente apresentado

nos anos sessenta e setenta do século XX, é elemento da construção democrática

da noção de bem jurídico.

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Assim, a conjugação desses ingredientes, debate infinito com o

processo histórico, resgate das tradições liberais, enaltecimento do aspecto

material do fenômeno jurídico, além da elevação da importância da Constituição

na seara penal, parece possibilitar a superação das visões parciais do direito penal,

bem como o direcionamento para uma melhor delimitação do ius puniendi.

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sociologistas (historicismo), rumaram ao normativismo, ou, pelo menos, trabalharam na expectativa do império da lei.

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Contudo, ele não é o bastante. Para não cair na arbitrariedade, o referencial normativo aglutinativo de valores essenciais tem que estar presente, para legitimar a atuação criminalizante e para robustecer a configuração do Estado Democrático de Direito. Essa referência normativa é a Constituição. Expressão maior do consensualismo social, aglutinadora das mais variadas tendências dos homens que compõe a sociedade, esquecida nas concepções até então analisadas.

138 Adicione-se a postura crítica, a argamassa da construção, concebida, aqui resumidamente, como

PARTE II

BEM JURÍDICO-PENAL E CONSTITUIÇÃO:

PANORAMA DESCRIMINALIZANTE

5. Abertura - 6. Tentativas teóricas de estabelecimento do conceito de bem