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Síntese geral: entrelaçando as vivências

3) ANÁLISE: desdobrando significados construídos

3.7. Síntese geral: entrelaçando as vivências

Ao realizar uma leitura empática do conteúdo das entrevistas verifiquei que, aos poucos, delineavam-se categorias temáticas, algumas presentes em todas elas, outras

não. E, dentro de cada tema, observei diferentes formas de significar as vivências, mas também percebi aspectos comuns. Assim, a partir destas divergências e convergências do campo individual, explicito abaixo o que compreendo como alguns dos aspectos comuns da vivência de perda precoce da mãe relatada pelos adultos entrevistados.

É importante notar que, ainda que estes aspectos transcendam as experiências individuais e possam ser estendidos a vários outros indivíduos, isso não implica que necessariamente sejam verdadeiros para todos (Martins e Bicudo, 1994).

No começo:

1) A PERDA

Foi possível perceber que a morte da mãe, ainda jovem e com filhos pequenos, acarretou em todas as histórias muitas mudanças na estrutura familiar, pois esta tinha papel importante nesta dinâmica. Assim, a necessidade de rearranjos para suprir o papel que a mãe cumpria na vida da criança e da família trouxe, a partir das modificações, outras perdas aos órfãos como, por exemplo, da rotina, da casa, da escola, o afastamento de amigos e parentes, além das dificuldades que surgiram ou vieram à tona entre os membros da família, entre outras. Para alguns as mudanças foram tão drásticas que seria possível dividir suas vidas em ‘antes e depois’ da morte da mãe.

Neste contexto, a maioria dos participantes ressaltou que sentia necessidade de uma comunicação sincera e acolhedora por parte de adultos para com eles, para que a compreensão dos acontecimentos pudesse ser facilitada e que pudessem sentir-se amparados. A maioria deles afirmou não terem sido acolhidos como esperavam.

Os principais sentimentos vivenciados após a perda, relatados por eles, foram: solidão, desproteção, sensação de abandono, desamparo, sensação de orfandade

completa mesmo com o pai ainda vivo, medo, insegurança, vontade de morrer, tristeza, mágoa.

2) TIPO DE MORTE

O tipo de morte demonstrou ser relevante na forma como cada perda foi vivenciada pelo entrevistado e por sua família. Todas as mortes foram precoces, eram todas mulheres jovens que teriam ainda muito por viver. Além da prematuridade presente em todas as narrativas, também foi possível verificar tipos de mortes diferentes e suas peculiaridades em cada história. Foi possível observar a morte repentina/abrupta e o choque causado por esta; a morte violenta que, no caso narrado, foi presenciada e tornou a trágica cena persistente; a morte obscura e a confusão na compreensão do evento; o suicídio, que trouxe a sensação do abandono e o estigma social; e a morte após doença longa, não sendo possível ter idéia dos sentimentos envolvidos pois a entrevistada refere ter vagas lembranças do período em que a mãe estava doente.

3) A RELAÇÃO COM O PAI

Após a morte da mãe, nenhum dos entrevistados teve dificuldades financeiras maiores do que já tinham antes do acontecimento, o que significa que suas mães não eram as provedoras materiais principais, mas, na maioria dos relatos, eram os pais. Mas, para a maior parte dos participantes, já havia um distanciamento afetivo com seus pais, sendo suas mães as provedoras afetivas principais, assim suas mortes deixaram vago um lugar importante a ser ocupado. E, foi possível perceber que alguns dos filhos esperavam que principalmente o pai preenchesse este espaço vazio. Porém, os relatos indicam que nenhum dos pais se tornou provedor afetivo para os filhos. E, por essa razão, muitos relataram ter se sentido completamente órfãos de mãe e pai, ainda que

este último estivesse vivo. Assim, a relação entre o pai e os filhos após a morte da mãe mostrou-se ser de distância afetiva na maioria das narrativas, mas em duas delas apareceu, além do distanciamento, também o abuso e a violência física, o que gerou nestes filhos a sensação de desproteção, medo, raiva e mágoa.

4) CRENÇAS ADQUIRIDAS

A maioria das crenças adquiridas relatadas trouxe uma idealização da imagem da mãe, ou uma idealização do relacionamento que poderia ser construído se estivesse viva. Foi possível perceber que muitas destas crenças se iniciaram na infância e ainda hoje, na vida adulta, acompanham a pessoa. Acredito não ser possível afirmar ou negar o que os participantes relataram a respeito de suas mães, porém pude notar que muitas destas crenças têm concordância com as faltas que cada um sentiu em sua vida, como a falta de cuidados, afeto, proteção, acolhimento. Algumas destas crenças parecem trazer conforto para a pessoa hoje na vida adulta, outras mostram-se como entraves, pois parecem atrapalhar relacionamentos amorosos, ou outros aspectos da vida do entrevistado.

Na fase adulta:

5) CARACTERÍSTICAS PESSOAIS E SENTIMENTOS RECORRENTES

Não foi possível estabelecer um quadro de referência em relação às características pessoais desenvolvidas e os sentimentos recorrentes que os participantes relacionaram à perda precoce da mãe, pois foram muitas as diferenças nas histórias relatadas. A maioria dos entrevistados descreveu mudanças de suas características pessoais, relatando diferenças dependendo do momento de sua vida. Dessa maneira, foi possível perceber que não podemos descrever um tipo de personalidade pré-definida de

pessoas que perderam a mãe na infância, cada indivíduo é único e muitas são as variáveis envolvidas em seu desenvolvimento.

6) RELACIONAMENTOS AMOROSOS

Todos os entrevistados casaram-se e/ou mantiveram relacionamentos amorosos de longa duração. Porém, foi possível observar dois aspectos relevantes nas relações de alguns participantes, e cada um destes aspectos apresentou-se em mais de uma narrativa. Foram eles: vinculação amorosa fraca durante toda a vida, mesmo com o marido ou esposa; e o medo do abandono, mesmo sem haver indícios de término do relacionamento.

7) SENDO PAI / MÃE

Quatro dos entrevistados têm filhos e dois ainda querem ter, assim a orfandade não suprimiu o desejo de serem pais. E ainda, todos os quatro mostraram-se comprometidos com a maternidade/paternidade, e dois relataram suas dificuldades no exercício do papel de pais. Estes trouxeram questões muito próximas, a dificuldade de dar afeto aos filhos sem ter recebido dos pais, e a dificuldade de ser pai/mãe sem ter tido modelos parentais. Um dos participantes vê a possibilidade de se encontrar modelos substitutos ao longo da vida. E, nesta mesma linha de pensamento, é possível também encontrar afeto materno e/ou paterno em outras pessoas.

8) PERDA E MORTE

Na maioria das narrativas não surgiram preocupações significativas em relação à própria morte, ou com as futuras perdas de pessoas queridas por morte, sendo que metade dos participantes declarou não temer a morte ou as perdas.

Apenas duas pessoas descreveram uma maior preocupação com a morte, sendo que uma delas teve uma ‘reação de aniversário’ (CASSORLA, 1991), temendo morrer na mesma época em que a mãe faleceu e deixar o filho pequeno desamparado, que atualmente não está mais presente.

Seguindo adiante:

9) NOS CAMINHOS DA RESSIGNIFICAÇÃO

A maioria dos entrevistados relatou procurar meios em que pudessem refletir e ressignificar suas vivências de perda, para que pudessem superar a dor e lidar melhor com elas. Todos os que procuraram estes meios foram ajudados, encontrando outros significados para a morte da mãe que não apenas o da perda e da dor. Passaram a considerar tanto os aspectos positivos, como os negativos de suas histórias, integrando os dois lados em suas vidas.

Duas pessoas ressaltaram a vontade de não pensar em sua história de vida, pois têm medo de adoecer ao entrar em contato com a dor. Para estas o se emocionar parece ser um evento perigoso, pois pode desencadear a dor.

Os principais meios que levaram às ressignificações de suas histórias, apontados pelos participantes, foram: reflexão e verbalização dos sentimentos para parentes e amigos; resgate de sua história de vida e da história de vida de sua mãe; engajamento em processos psicoterapêuticos; realização de rituais de enlutamento, como ir ao cemitério; produção de trabalhos criativos, como a escrita de poesias; e ainda, o engajamento em profissões de ajuda, que tinham relação direta com suas próprias vivências.

10) A PERMANÊNCIA DO VÍNCULO

A maioria dos entrevistados demonstrou ter um vínculo significativo com a figura da mãe, mesmo na sua ausência física, pois continua sendo pessoa importante em suas vidas.

Todos os participantes que procuraram meios de ressignificar a vivência de perda foram em busca de mais lembranças relacionadas à mãe e maneiras de continuar vinculado a ela; e isso os ajudou a redefinir a forma de relacionamento com a mãe e integrá-lo em suas estruturas de vida, não da mesma forma como era quando estava viva, mas de uma maneira diferente.

As principais formas relatadas de manter o vínculo com a mãe foram: ver e sentir a presença da mãe mesmo na sua ausência, guardar fotos e objetos, relembrar, recontar histórias.

11) BUSCANDO O MELHOR PARA SI

É possível notar em todos os relatos as muitas adversidades pelas quais os colaboradores passaram durante suas vidas, em decorrência da perda de suas mães ou não. E ainda assim todos foram atrás de uma vida melhor para si; alguns trabalhando bastante para conseguir independência financeira e/ou consolidar uma carreira, outros se engajando em processos terapêuticos, se aproximando de pessoas que os acolhessem, escolhendo profissões de ajuda, entre outros.

Principalmente aqueles que buscaram meios de ressignificar a vivência de perda demonstraram terem crescido e se fortalecido com o processo de enfrentamento da dor, conseguindo considerar e integrar tanto os ganhos quanto as perdas em suas histórias de vida. Para estes a morte da mãe não representou apenas perdas, mas também ganhos, impulsionando-os a buscar o melhor para si.