• Nenhum resultado encontrado

3.23.1 Só e relevante para alguns criminosos

Alguns criminosos não precisam de ser reabilitados. As pessoas que cometem crimes isolados não devem ser castigados de acordo com esta justificação, uma vez que é improvável que violem outra vez a lei. Além disso, alguns criminosos estão claramente para lá da reabilitação, pelo que também não valeria a pena castigá-los, presumindo que poderiam ser identificados. Este argumento não é em si uma crítica à teoria, mas um olhar mais detalhado sobre o que a teoria implica. Contudo, muitas pessoas acham que estas implicações são inaceitáveis. Não funciona

Os castigos existentes raramente reabilitam os criminosos. Contudo, nem todos os tipos de castigo estão condenados a falhar a este respeito. Este tipo de argumento empírico só seria fatal para a ideia do castigo como reabilitação se pudesse mostrar-se que tais tentativas de reabilitação nunca poderiam ser bem sucedidas. Contudo, existem pouquíssimas justificações que se centrem exclusivamente nos aspectos reabilitadores do castigo. As justificações mais plausíveis fazem da reabilitação um elemento da justificação, juntamente com a dissuasão e a protecção da sociedade. Estas justificações híbridas baseiam-se habitualmente em princípios morais consequencialistas.

3.24 D

ESOBEDIÊNCIACIVIL

Estudamos, até agora, as justificações para punir quem viola a lei. As razões para punir eram morais. Mas poderá alguma vez a violação da lei ser moralmente aceitável? Nesta secção deito um olhar sobre um tipo particular de violação da lei que se justifica em termos morais: a desobediência civil.

Algumas pessoas argumentam que a violação da lei nunca se pode justificar: se não estamos satisfeitos com a lei, devemos tentar mudá-la através dos meios legais, como as campanhas, a redacção de cartas, etc. Mas há muitos casos em que tais protestos legais são completamente inúteis. Há uma tradição de violação da lei em tais circunstâncias conhecida por desobediência civil. A ocasião para a desobediência civil emerge quando as pessoas descobrem que lhes é pedido que obedeçam a leis ou a políticas governamentais que consideram injustas.

A desobediência civil trouxe mudanças importantes no direito e na governação. Um exemplo famoso é o movimento das sufragistas britânicas, que conseguiu publicitar o seu objectivo de dar o voto às mulheres através de uma campanha de desobediência civil pública que incluía o auto- acorrentamento das manifestantes. A emancipação limitada foi finalmente alcançada em 1918, quando foi permitido o voto às mulheres com mais de 30 anos, em parte devido ao impacte da primeira guerra mundial. No entanto, o movimento das sufragistas desempenhou um papel significativo na mudança da lei injusta que impedia as mulheres de participar em eleições supostamente democráticas. Mahatma Gandi e Martin Luther King foram ambos defensores apaixonados da desobediência civil. Gandi influenciou decisivamente a independência indiana através do protesto ilegal não violento, que acabou por conduzir ao fim da soberania britânica na índia; o desafio de Martin Luther King ao preconceito racial através de métodos análogos ajudou a garantir direitos civis básicos para os Negros americanos nos estados americanos do Sul. Outro exemplo de desobediência civil está patente na recusa de alguns americanos em participarem na Guerra do Vietname, apesar de serem requisitados pelo governo. Alguns americanos justificaram esta atitude afirmando acreditar que matar é moralmente errado, pensando por isso que era mais importante violar a lei do que lutar e possivelmente matar outros seres humanos. Outros havia que não objectavam a todas as guerras, mas sentiam que a guerra no Vietname era injusta e que sujeitava os civis a grandes riscos, sem nenhuma boa razão. A dimensão da oposição à guerra no

Vietname acabou por conduzir os Estados Unidos à retirada. Sem dúvida que a violação pública da lei alimentou esta oposição.

A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação não violenta e pública da lei, concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os que agem nesta tradição de desobediência civil não violam a lei unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a atenção para uma lei injusta ou uma política moralmente objectável e para publicitar ao máximo a sua causa. Por isso é que estes protestos ocorrem habitualmente em lugares públicos, de preferência na presença de jornalistas, fotógrafos e câmaras de televisão. Por exemplo, um americano chamado para a guerra que deitasse fora a sua convocatória durante a Guerra do Vietname, escondendo-se de seguida do exército só por ter medo de ir para a guerra e por não querer morrer, não estaria a executar um acto de desobediência civil. Seria um acto de autopreservação. Se agisse da mesma maneira, não por causa da sua segurança pessoal, mas por motivos morais, mas que no entanto o fizesse em segredo, não tornando público este caso de nenhuma forma, continuaria a não poder considerar-se um acto de desobediência civil. Pelo contrário, outro americano convocado para a guerra que queimasse a sua convocatória em público perante câmaras da televisão, comunicando ao mesmo tempo à imprensa as razões que o levavam a pensar que o envolvimento americano no Vietname era imoral, estaria a cometer um acto de desobediência civil.

O objectivo da desobediência civil é, em última análise, mudar leis e políticas particulares, e não arruinar completamente o estado de direito. Os que agem na tradição da desobediência civil evitam geralmente todos os tipos de violência, não apenas porque pode arruinar a sua causa ao encorajar a retaliação, conduzindo assim a um agravamento do conflito, mas sobretudo porque a sua justificação para violar a lei é moral, e a maior parte dos princípios morais só permite que se prejudique outras pessoas em situações extremas, tal como quando somos atacados e temos de nos defender.

Os terroristas ou os combatentes pela liberdade (a maneira como lhes chamamos depende da simpatia que temos pelos seus objectivos) usam actos violentos com fins políticos. Tal como os que enveredam por actos de desobediência civil, também eles desejam mudar o estado de coisas existente, não para benefícios privados, mas para o bem geral, tal como este é por eles concebido; mas diferem nos métodos que estão preparados para usar para originar a mudança desejada.

Críticas à desobediência civil Não é democrática Presumindo que a desobediência civil ocorre num tipo qualquer de democracia, pode parecer não democrática. Se uma maioria de representantes democraticamente eleitos vota a favor de uma certa lei ou de uma certa política, violar a lei como protesto parece ir contra o espírito da democracia, sobretudo se só uma pequena minoria de cidadãos está envolvida no acto de desobediência civil. Certamente que o facto de ser provável que todas as pessoas achem uma ou outra política desagradável é apenas o preço a pagar por viver num estado democrático. Se a desobediência civil praticada por uma minoria for eficaz, parece dar a um pequeno número de pessoas o poder de contrariar a opinião da maioria. Isto parece profundamente antidemocrático. No entanto, se a desobediência civil não for eficaz, não parece valer a pena adoptá-la. Logo, nesta perspectiva, a desobediência civil ou é antidemocrática ou não vale a pena.

E importante darmo-nos conta, contra tal argumento, de que os actos de desobediência civil têm por objectivo salientar decisões ou práticas moralmente inaceitáveis. Por exemplo, o movimento a favor dos direitos cívicos, na América dos anos 60, através de manifestações muito publicitadas contra as leis a favor da segregação racial deram publicidade mundial ao tratamento injusto dos Americanos negros. Compreendida assim, a desobediência civil é uma técnica para que a maioria ou os seus representantes reconsiderem a sua posição sobre um tema específico, e não uma forma não democrática de mudar a lei ou a política. Derrapagem para a anarquia

Outra objecção à desobediência civil faz notar que ela encoraja a violação da lei, o que poderia a longo prazo corroer o poder do governo e o estado de direito e que este risco ultrapassa decisivamente quaisquer possíveis benefícios a que possa dar origem. Uma vez colocado em causa o respeito pela lei, há o perigo de que resulte daí a anarquia. Este é um argumento da derrapagem, um argumento que sugere que, se dermos um passo numa certa direcção, não seremos capazes de parar um processo que terá um resultado obviamente desagradável. Tal como quando damos um passo para descer um declive escorregadio é quase impossível parar antes de chegar ao fim, o mesmo acontece, defendem algumas pessoas, se tornarmos aceitáveis alguns tipos menores de violação da lei: não seremos capazes de parar e, no fim, já ninguém respeitará a lei. Contudo, este tipo de argumento pode fazer que o resultado final pareça inevitável, quando na verdade o não é. Não há razão para acreditar na afirmação de que os actos de desobediência civil arruinarão o respeito pela lei, ou, para continuarmos com a metáfora do declive escorregadio, não há nenhuma razão para acreditar que não podemos parar num certo ponto e dizer: «Não avanço mais.» Na verdade, alguns defensores da desobediência civil argumentam que, longe de pôr em perigo o estado de direito, o que eles fazem revela um profundo respeito pela lei. Se alguém está preparado para ser castigado pelo estado por chamar a atenção para o que pensa ser uma lei injusta, isso revela que está comprometido com a posição geral de que as leis devem ser justas e respeitadas. Isto é muito diferente da violação da lei para benefício pessoal.

3.25 C

ONCLUSÃO

Neste capítulo discuti vários tópicos centrais de filosofia política. Subjacente a todos estes tópicos está a questão da relação das pessoas com o estado, em particular a origem de qualquer autoridade que o estado tenha sobre as pessoas, uma questão tratada directamente em muitas das leituras complementares recomendadas a seguir.

Os próximos dois capítulos centram-se sobre o nosso conhecimento e compreensão do mundo que nos rodeia, prestando especial atenção à questão de saber o que podemos aprender através dos sentidos.

3.26 L

EITURA COMPLEMENTAR

Para os interessados na história da filosofia política, Great Political Thinkers, de Quentin Skinner, Richard Tuk, William Thomas e Peter Singer (Oxford, Oxford University Press, 1992), oferece uma boa introdução à obra de Maquiavel, Hobbes, Mill e Marx. Recomendo também Political Thought from Plato to Nato, organizado por Brian Redhead (Londres, BBC Books, 1984).

Political Philosophy: An Introduction, de Jonathan Wolff (Oxford, Oxford University Press, 1996), é uma introdução minuciosa que aborda um vasto leque de temas nesta área da filosofia.

Practical Ethics, de Peter Singer (2.a ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1993), um livro que recomendei como leitura complementar para o capítulo 2, contém uma discussão da igualdade, incluindo a igualdade no emprego. O autor defende também a igualdade dos animais. The Sceptical Feminist, de Janet Radcliffe Richards (2.a ed., Londres, Penguin, 1994), é um estudo filosófico claro e incisivo de algumas questões morais e políticas acerca das mulheres, incluindo a questão da discriminação positiva no emprego.

Democracy, de Ross Harrison (Londres, Routledge, 1993), é uma lúcida introdução a um dos conceitos centrais da filosofia política. Combina um levantamento crítico da história da

democracia com a análise filosófica do conceito tal como o usamos hoje.

Liberty, o r g a n i z a d o por D a v i d M i l l e r ( O x f o r d , Oxford University Press, Oxford Readings in Politics and Government, 1991), inclui um excerto do ensaio «Two Concepts of Liberty», de Isaiah Berlin. O Ensaio sobre a Liberdade (1859, trad. 1964), de John Stuart Mill, é a defesa clássica do liberalismo.

Civil Disobedience in Focus, organizado por Hugo A d a m Bedau (Londres, Routledge, 1991), é uma interessante colecção de artigos sobre este tópico, incluindo o texto «Letter from Birmingham City Jail», de Martin Luther King.

Para os que desejam estudar filosofia política mais detalhadamente e a um nível mais avançado, Contemporary Political Philosophy: An Introduction (Oxford, Oxford University Press, 1990), de Will Kymlicka, oferece uma avaliação crítica das tendências principais na filosofia política corrente. Algumas passagens são bastantes difíceis.

4 4 O

MUNDO EXTERIOR

O nosso conhecimento básico do mundo exterior chega-nos através dos cinco sentidos: visão, audição, tacto, olfacto e gosto. Para quase toda a gente, a visão desempenha o papel principal. Sei como é o mundo exterior porque posso vê-lo. Se duvido da existência real do que vejo, posso, em geral, estender o braço e tocar-lhe para ter a certeza. Sei que tenho uma mosca na sopa porque posso vê-la e, se chegar a tanto, posso tocar-lhe e até prová-la. Mas qual é exactamente a relação entre o que penso ver e o que está de facto à minha frente? Poderei alguma vez ter a certeza acerca do que existe no mundo exterior? Poderei eu estar a sonhar? Os objectos continuam a existir quando ninguém os está a observar? Terei alguma vez experiência directa do mundo exterior? Todas estas questões são acerca de saber como adquirimos conhecimento das nossas imediações; pertencem ao ramo da filosofia conhecido por teoria do conhecimento ou epistemologia.

Neste capítulo examinaremos várias questões epistemológicas, concentrando-nos nas teorias da percepção.

4.1 R

EALISMODE SENSO COMUM

O realismo de senso comum é a posição assumida pela maior parte das pessoas que não estudaram filosofia. Admite a existência de objectos físicos — casas, árvores, carros, sardinhas, colheres de chá, bolas de futebol, corpos humanos, livros de filosofia, etc. — acerca dos quais podemos ter conhecimento directo através dos nossos cinco sentidos. Estes objectos físicos continuam a existir quer os estejamos a percepcionar, quer não. Além disso, estes objectos são mais ou menos como nos parecem ser: as sardinhas são de facto cinzentas e as bolas de futebol são de facto esféricas. Isto é assim porque os nossos órgãos dos sentidos — os olhos, os ouvidos, a língua, a pele e o nariz — são, em geral, fidedignos; dão-nos uma apreciação realista do que está realmente lá fora.

Contudo, apesar de ser possível viver a vida toda sem nunca questionar as crenças do realismo de senso comum acerca da percepção sensorial, esta perspectiva não é satisfatória. O realismo de senso comum não resiste satisfatoriamente aos argumentos cépticos acerca da

fiabilidade dos sentidos. Nesta secção examinaremos vários argumentos cépticos que parecem enfraquecer o realismo de senso comum, antes de examinarmos quatro teorias da percepção mais sofisticadas: o realismo representativo, o idealismo, o fenomenismo e o realismo causal.

4.2 C

EPTICISMOACERCA DOSDADOSDOSSENTIDOS

O cepticismo é a perspectiva segundo a qual nunca podemos ter a certeza de nada; há sempre algumas razões para duvidar mesmo das nossas crenças mais fundamentais acerca do mundo. Na filosofia, os argumentos cépticos procuram mostrar que as formas tradicionais de descobrir coisas acerca do mundo não são fidedignas e que não nos garantem o conhecimento do que realmente existe. Os argumentos cépticos das secções seguintes baseiam- se nos argumentos de Descartes patentes na primeira das suas Meditações.

4.3 O

ARGUMENTODA ILUSÃO

O argumento da ilusão é um argumento céptico que questiona a fiabilidade dos sentidos, ameaçando assim enfraquecer o realismo de senso comum. Habitualmente, confiamos nos nossos sentidos, mas, por vezes, eles enganam-nos. Por exemplo, quase toda a gente já teve a experiência embaraçosa de parecer reconhecer um amigo à distância, para descobrir depois que estamos a acenar a um desconhecido. Uma vara direita parcialmente imersa em água pode parecer curva; uma maçã pode ter um sabor amargo se acabámos de comer qualquer coisa muito doce; vista de certo ângulo, uma moeda redonda pode parecer oval; os carris do comboio parecem convergir à distância; o tempo quente pode fazer que a estrada pareça tremeluzir; o mesmo vestido pode parecer carmesim na penumbra e escarlate à luz do Sol; a Lua parece tanto maior quanto mais baixa está no horizonte. Estas ilusões sensoriais, e outras análogas, mostram que os sentidos não são sempre completamente fidedignos: pa rece pouco provável que o mundo exterior seja exactamente como parece ser. O argumento da ilusão afirma que, porque os nossos sentidos nos enganam por vezes, nunca podemos ter a certeza, perante qualquer caso específico, que não nos estão a enganar nesse momento. Este é um argumento céptico porque desafia a nossa crença quotidiana — o realismo de senso comum — de que os sentidos nos dão conhecimento do mundo.

4.4 C

RÍTICASAO ARGUMENTODAILUSÃO