• Nenhum resultado encontrado

3 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL ANTES DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE

3.4 A SAÚDE DURANTE OS GOVERNOS MILITARES

Esse período da história política brasileira se notabilizou pelos traços característicos dos governos militares que assumiram o poder político, através de um golpe militar, permanecendo sob o comando do país por mais de 20 anos. Esse período é denominado de “ditadura militar”, pela ruptura com o processo de construção democrático-social que vinha se dando no período de 1937 a 1964, pela forte centralização do poder político – autonomia do Poder Executivo e limitação dos demais Poderes Públicos - e, principalmente, pela grave situação sócio-econômica criada e deixada por esses governos.

As primeiras décadas de gestão dos governos militares foram marcadas por uma extrema e radical repressão às ideologias contrárias ao regime implantado, além de um intenso controle sobre os movimentos sociais e dos meios de comunicação, o que implicou em um processo de centralização política como jamais se tinha visto no país. Os meios de comunicação foram utilizados como instrumento de reforço às bases ideológicas do regime ditatorial, sem falar que era através deles que os governos militares difundiram as ideias de supostos avanços do Estado brasileiro, com campanhas que reforçavam e mantinham o poder político então vigente.

Também o setor saúde não deixou de sofrer os efeitos e as consequências desse modelo político/ideológico adotado e implementado durante o período em que o país fora governado pelos militares. Aliás, é possível perceber, através de registros históricos, que as bases fundamentais para o surgimento da atual concepção de saúde pública brasileira são

estabelecidas - ainda que por vias transversas - ao longo desse período, na medida em que as imposições político-filosóficas do regime conduziam ao refreamento dos movimentos sociais, as crises sócio-econômicas (entre elas a crise do setor da saúde) impulsionavam os atores sociais a formatarem um projeto social que se contrapusesse àquele modelo político então em vigor.

Mas antes é necessário traçar um panorama histórico dos principais acontecimentos que marcaram a saúde pública ao longo desse período, principalmente porque estes fatos têm relação muito estreita com os princípios e diretrizes do atual sistema público de saúde.

Ao longo da ditadura militar o Ministério da Saúde teve uma drástica redução nos seus orçamentos (o que já não era suficiente anteriormente), ocasionando uma piora substancial na prestação dos serviços de saúde coletiva, já que os serviços médico- hospitalares ficavam a cargo do Ministério da Previdência Social. Talvez por isso, houve um aumento significativo das epidêmicas como a dengue, a meningite e a malária, cujo controle encontrava dificuldades não apenas financeiras, mas também pela censura imposta aos meios de comunicação, impedidos que eram de alertar a população sobre a expansão e formas de prevenção de tais doenças em nosso país.

Um dos fatos históricos que marcaram a história da saúde no Brasil foi a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), ocorrido em 02 de janeiro de 1967. Na verdade, o processo de unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões vinha sendo gestado desde 1941 (no primeiro governo de Getúlio Vargas), mas por pressão de diversos segmentos sociais não conseguiu ser implementado pelos governos democráticos que administraram o país até 1964. Nas décadas seguintes esse processo ganha impulso com a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei n° 3.087/60), a qual impusera a unificação do regime geral da previdência social e avança com a tomada do poder central pelos militares em 1964, ocasião em que o governo militar promove intervenção em

todos os IAPs, por meio de juntas interventoras por ele indicadas. Esse movimento termina por conduzir, em 1967, à unificação dos seis IAPs, do Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência (SAMDU) e da Superintendência dos Serviços de Reabilitação da Previdência Social, no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)183.

Por sua vez, a centralização dos institutos previdenciários numa única instituição ao invés de trazer benefícios para os contribuintes do novo regime previdenciário, acabou por apresentar distorções que ainda hoje sequer é possível aferir suas causas: o aumento no volume de arrecadação conduziu a investimentos financeiros, por parte dos governantes, em áreas diversas da previdência social; o aumento de beneficiários do sistema médico- hospitalar, agora vinculado ao INPS, impossibilitava a prestação de serviços que atendesse a todas as demandas existentes, bem assim impunha a necessidade de tomada de decisão governamental quanto à contratação de serviços ou estabelecimento de rede própria de hospitais e clínicas; foi estabelecido um processo de contratação de serviços aos prestadores privados, por meio de convênios, pagos proporcionalmente aos atendimentos e serviços prestados, o que levou à existência de muitas fraudes e desvios de dinheiro da previdência184; mantinha-se a disparidade de tratamento entre os empregados formais e os demais trabalhadores, já que os serviços continuavam vinculados àqueles que contribuíam com o regime de previdência.

Em 1968, o então Ministro da Saúde, apresenta um projeto para a saúde pública do Brasil, sob a denominação de Plano Nacional de Saúde (PNS). Nele há sinais de modificações na concepção da saúde pública, com ênfase para a integração da assistência médica ao

183

Com a criação do INPS, houve um reforço à idéia de privatização dos serviços médico-hospitalares, como bem descreve Marcus Vinicius Polignano (História das políticas de saúde no Brasil – uma pequena revisão, p. 12-14): “O Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), produto da fusão dos IAP’s, sofre a forte influência dos técnicos oriundos do maior deles, o IAPI. Estes técnicos, que passam a história conhecidos como “os cardeais do IAPI”, de tendências absolutamente privatizantes criam as condições institucionais necessárias ao desenvolvimento do “complexo médico-industrial”, característica marcante deste período (NICZ, 1982)”. 184 Desta forma, foram estabelecidos convênios e contratos com a maioria dos médicos e hospitais existentes no país, pagando-se pelos serviços produzidos (pro-labore),o que propiciou a estes grupos se capitalizarem, provocando um efeito cascata com o aumento no consumo de medicamentos e de equipamentos médico- hospitalares, formando um complexo sistema médico-industrial. (Marcus Vinicius Polignano, ibidem, p. 15)

Ministério da Saúde e também para a universalização do acesso aos serviços de saúde no país. No entanto, devido à possibilidade de modificação desses dois pontos, houve resistências e não aceitação da referida proposta – por parte de alguns governos estaduais e da reação de setores da área médica e da mídia -, o que levou o governo a rejeitar e cancelar o referido plano. Em contrapartida, o Plano Nacional de Saúde previa a privatização total da rede pública de saúde, com pagamento dos serviços aos prestadores privados, tomando por base o número de pessoas atendidas e a complexidade dos procedimentos realizados185. Interessante é que, na prática, a ideia de privatização dos serviços públicos de saúde permeou todo o período dos governos militares, tanto que nessa época houve muitos investimentos e financiamentos para a construção de hospitais de propriedade privada186. Contrariamente, a ideia de universalização dos serviços de saúde não teve qualquer influência sob as gestões militares, eis que a prestação de serviços de atendimento médico-hospitalar continuou sendo feita apenas àqueles vinculados ao sistema previdenciário, ou seja, os trabalhadores com vínculo formal.

Apesar das posições políticas contrárias - quando da apresentação da proposta do Plano Nacional de Saúde -, a ideia de universalização dos serviços de saúde foi introduzida por meio do Plano de Pronta Ação (PPA), instituído pelo Ministério da Previdência, na medida em que estabelecia que os estabelecimentos credenciados por aquele Ministério, pudessem fazer os atendimentos a pacientes, em caso de urgência e emergência, independentemente deles serem beneficiários do sistema previdenciário. Nesse caso, a previdência social cobria os custos do tempo em que o paciente ficasse internado, fosse ele segurado ou não da previdência187. É visível que essa pequena modificação abriu espaço, posteriormente, para a demonstração da real necessidade do sistema público de saúde passar a

185 Otavio Azevedo Mercadante et al. Evolução das políticas e do sistema de saúde no Brasil, p. 240-241. 186 Do total de recursos transferidos para a área da saúde, no período de 1975 a1977, 73,8% foram utilizados para a construção de hospitais, sobretudo de tamanho médio e de propriedade privada. (Giovani Gurgel Aciole, A saúde no Brasil: cartografia do público e do privado, p. 166)

prestar atendimento médico-hospitalar a todos os cidadãos, independentemente de serem ou não contribuintes do regime de previdência do país, bem assim afastando apenas os atendimentos de urgência e emergência. Mas a concretização desse ideal ainda levaria alguns anos para se realizar, como veremos ao longo desse retrato histórico.

Nos anos seguintes, a ideia de saúde pública brasileira ficou muito voltada para o atendimento médico-hospitalar individualizado, especificamente aos beneficiários e dependentes do INPS, ficando a saúde coletiva relegada à quase inexistência, da mesma forma que a grande massa de cidadãos que não possuíam emprego formal. Essa diretriz conduziu o sistema de saúde público a efetivar diversos convênios e contratos com os prestadores de serviços de saúde privado do país, já que a sua rede própria não era suficiente para oferecer serviços médico-hospitalares aos beneficiários e dependentes do INPS. Na verdade, muito mais do que firmar convênios e contratos, a previdência social passou a financiar (com recursos próprios) a construção, reforma e melhorias dos estabelecimentos médico- hospitalares desses prestadores privados, na maioria das vezes, a fundo perdido. Como se vê, o sistema público deixava de investir na construção e expansão da rede pública de saúde, para investir na estruturação dos prestadores privados (com investimentos sem juros ou até a fundo perdido), para depois contratá-los para prestar os serviços médicos, pagando conforme a produtividade de cada um deles188.

A contratação de prestadores privados, em detrimento do investimento na expansão e melhoria da rede de saúde pública, terminou por criar alguns dividendos para o sistema público pátrio, com reflexos acentuados ainda no presente, principalmente nas ações judiciais

188 Em 1974 o sistema previdenciário saiu da área do Ministério do Trabalho, para se consolidar como um ministério próprio, o Ministério da Previdência e Assistência Social. Juntamente com este Ministério foi criado o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). A criação deste fundo proporcionou a remodelação e ampliação dos hospitais da rede privada, através de empréstimos com juros subsidiados. A existência de

recursos para investimento e a criação de um mercado cativo de atenção médica para os prestadores privados levou a um crescimento próximo de 500% no número de leitos hospitalares privados no período 69/84, de tal forma que subiram de 74.543 em 69 para 348.255 em 84. (Marcus Vinícius Polignano, ob. cit.,

vinculadas à saúde: “propiciou a estes grupos se capitalizarem, provocando um efeito cascata com o aumento no consumo de medicamentos e de equipamentos médico-hospitalares, formando um complexo sistema médico-industrial” e terminou por impor a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) em 1978, órgão administrativo específico – dentro do INPS - para gerir os contratos e convênios, bem assim os recursos financeiros destinados a essas contratações189 e do Conselho Consultivo de

Administração da Saúde Previdenciária (CONASP) ligado ao INAMPS, cuja principal função era a fiscalização das faturas apresentadas pelos prestadores privados, na tentativa de combater as fraudes ao sistema previdenciário190.

Por outro lado, diante da quase total privatização da assistência médica (ocorrida ao longo do período ditatorial), por meio da qual o INPS e/ou o INAMPS comprava cada vez mais os serviços e procedimentos médico-hospitalares do setor privado, o setor público ficava cada vez mais refém dos prestadores privados, o que acabava por sujeitá-lo às limitações econômicas, decorrentes dos preços atribuídos aos serviços, resultando em restrições diferenciadas de acesso para muitos usuários. Como a seguir também se delineará, nenhum sistema público de saúde no mundo oferece cobertura completa e irrestrita para todos os seus compatriotas, mas o que aqui se está a levantar é que o próprio sistema acabava por fazer sérias restrições a alguns serviços e prestadores, em função dos custos desses serviços e por não haver contrapartida orçamentária capaz de suportar esses gastos. Essa é uma decorrência lógica não apenas do sistema brasileiro, mas da grande maioria dos sistemas públicos, em

189 Cf. Marcus Vinícius Polignano, História das políticas de saúde no Brasil – uma pequena revisão, p. 15. 190 Na tentativa de conter custos e combater fraudes o governo criou em 1981 o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária(CONASP) ligado ao INAMPS. O plano inicia-se pela fiscalização mais rigorosa da prestação de contas dos prestadores de serviços credenciados, combatendo-se as fraudes. O plano propõe a reversão gradual do modelo médico-assistencial através do aumento da produtividade do sistema, da melhoria da qualidade da atenção, da equalização dos serviços prestados as populações urbanas e rurais, da eliminação da capacidade ociosa do setor público, da hierarquização, da criação do domicílio sanitário, da montagem de um sistema de auditoria médico-assistencial e da revisão dos mecanismos de financiamento do FAS. (Marcus Vinícius Polignano, op. cit., p. 20)

oferecer cobertura aos serviços que estejam em consonância com os parâmetros de custo- efetividade191.

Apesar de anunciarem um tempo áureo da economia brasileira, os governos militares acabaram por conduzir o país a uma série de crises, a começar pela economia, seguido por um quadro social de extrema pobreza, com um endividamento externo descontrolado, uma das maiores concentrações de renda nas mãos dos mais ricos, altos índices de desemprego e analfabetismo. Assim, diante das sucessivas crises e dos novos cenários regionais (principalmente da América Latina) em que os governos ditatoriais eram substituídos, os dois últimos governantes militares iniciam o que ficou denominado de “redemocratização do país” ou “abertura política”, com um lento e gradual retorno dos inúmeros brasileiros exilados, com a ruptura do sistema bipartidário e criação de outros partidos políticos, restabelecimento da liberdade de imprensa, reorganização de sindicatos e dos movimentos sociais.

Nesse contexto, o setor da saúde pública não poderia está diferente: baixos investimentos no setor192; queda de arrecadação previdenciária, com reflexos na cobertura dos serviços médico-hospitalares prestados pelo sistema; desvio de dinheiro da previdência para outros setores sociais; submissão do sistema público aos prestadores privados;

191 A expressão custo-efetividade deve ser entendida nesses sentidos: “O indicador de custo-efetividade de um projeto, programa ou ação na área da saúde fornece um índice do ganho de saúde por unidade monetária aplicada. Ao se compararem projetos ou ações, os que apresentarem cifras mais elevadas serão os mais custo- efetivos, eficientes e, portanto, deveriam ser escolhidos!” (Denise C. Cyrillo e Antonio Carlos C. Campino, Gastos com a saúde e a questão da judicialização da saúde, p. 28). Complementando: “avaliação ou análise de custo-efetividade: análise através da qual os resultados/consequências do emprego de uma determinada tecnologia em saúde são mensurados em parâmetros físicos, por exemplo, anos de vida ganhos, capacidade de diagnosticar casos novos de uma doença. Há preocupação em se alcançar os resultados com o menor custo possível ou alternativamente, entre as opções disponíveis, isto é, qual das alternativas tem a capacidade de maximizar os benefícios atrelados a recursos financeiros a eles destinados. Ou seja, procura indicar opções que minimizam custos e maximizam resultados”. (Altacílio Aparecido Nunes, A avaliação econômica de fármacos e outras tecnologias em saúde instrumentalizando o poder público e judiciário para a tomada de decisão: potencialidades e limitações, p. 149)

192

Para se ter uma ideia, até 1964 o orçamento do Ministério da Saúde oscilava entre 3,65 a 4,57% do orçamento geral da União. A partir de 1968 até 1980 o orçamento destinado para o Ministério da Saúde esse percentual não atingiu a marca do 2% do orçamento geral da União. (Fontes: Para a década de 60: Buss, Paulo Marchiori et al. Ministério da Saúde e saúde coletiva. Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social da UERJ, 1976, p. 20. Para a década de 70: Campos, Gastão Wagner de Souza et al. – Planejamento sem normas. São Paulo, Hucitec, 1969. P. 107). Citado por Claudio Bertolli Filho, História da saúde pública no Brasil, p. 51.

superfaturamento dos valores por serviços prestados193; ausência de controle sobre as endemias, epidemias e indicadores de saúde194.

Por isso, a questão da saúde brasileira passa a constar das pautas não apenas dos profissionais da saúde, mas se insere nas discussões dos diversos movimentos sociais que se organizavam e lutavam pela democratização e pela implementação de políticas públicas que superassem umas das graves crises econômicas e sociais a que o Brasil se encontrava sucumbido.

Documentos relacionados