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Sanidade — Culpa x Inocência Caracterização de

No documento Perspectivas em linguística forense (páginas 170-175)

Nicéia Caracterização de Nicéia Caracterização de Jorge

Sujeito de estado (é; tem)

Enrolada Cheia de contradições Católico

Má Leviana Pai de família

Extremamente raivosa

Indigna de confiança,

nociva Dois filhos, esposa doente

Confusa Ofensiva Considerado

Muito vaidosa Desumana Justo

Não confiável Desagregadora (da família) Sem preocupação (acusação)

...

Consciente Sem mágoa

Racional ... Exibicionista, desairosa Não louca Sujeito do fazer (faz) ...

Entrar em conluios Comparecer à promotoria Cometer vilezas Peticionar

Acusar sem fundamento Dar notícia do crime

...

Dar oportunidade para pedido de desculpas

Manifestar preocupação (com esposa, com efeitos sobre família de Nicéia, com sua própria imagem pública)

incoerente, indigna de confiança, vaidosa, exibicionista, nociva. Resumamos, agora, como são construídos os enunciadores de cada documento.

Os traços revelados pela análise da Carta esboçam um enunciador em contato com a norma culta do Português, porém nada autoriza afirmar que a domine. As flutuações de níveis linguísticos, a ausência de controle de aspectos simples de morfologia e mais complexos da sintaxe e semântica do Português, assim como a limitação lexical e figurativa apontam para um enunciador que se constrói como dotado de poucos recursos linguístico-discursivos, descomedido, passional, vingativo e, possivelmente, portador de voz feminina, devido ao alto número de adjetivos intensificadores, mais típicos ao falar feminino paulistano e paulista

Diferentemente, as características do discurso do enunciador entrevistado colocam-nos frente a um sujeito articulado, com domínio da norma culta, da sintaxe e da morfologia do Português, além de dotado da capacidade de escolha vocabular precisa e variada. Em várias ocasiões, após digressões ou esclarecimentos, mostra-se capaz de recuperar a ideia que desenvolvia, sem quebra de ponto de vista ou de coerência gramatical. Mesmo diante de interrupção do entrevistador, o enunciador interage e retoma a palavra, concluindo sua fala sem perder o controle sobre sua linguagem. Quando comete um lapso ou erro, corrige-o imediatamente, como em "exu/ exibicionismo", ou faz uso de uma perífrase, tal como em "compusca (sic)/ éh... tenta jogar lama...". O enunciador-entrevistado constrói-se comedido, conservador, equilibrado, transparente, compassivo, homem de ação.

Os enunciadores da Carta e da Entrevista erigem ethe distintos: o ethos do primeiro se instala no regime do excesso ou da falta, como alguém raivoso, incontido, vingativo; enquanto o ethos do segundo remete à justa medida, sugerindo ao enunciatário um sujeito familiar à área jurídica, equilibrado, forte, compassivo. Enunciadores distintos abordam quatro temas semelhantes, embora a partir de figurativizações ou tratamentos diferentes. Com níveis de controle da língua antagônicos, os textos desenvolvem-se a partir de oposições semânticas fundamentais distintas e não comunicantes, que se convertem no nível narrativo em percursos divergentes, mesmo que Nicéia receba uma caracterização em parte coincidente.

Isto posto, pode-se afirmar a inexistência de elementos linguístico-discursivos — à exceção dos temas, motivadores da entrevista —, que confirmem a hipótese segundo a qual ambas as peças teriam sido produzidas pelo mesmo autor.

Quadro 4: Dados sobre o ethos do enunciador da Carta e da Entrevista

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise descrita, atentamos primeiramente ao nível linguístico: observamos aspectos concernentes ao léxico, à morfologia, à sintaxe, à semântica e, como pano de fundo, à pragmática. Em seguida, investimos na análise discursiva orientada pela teoria semiótica francesa, que prevê três níveis de organização do sentido: discursivo (o mais superficial, do dito), narrativo (intermediário, do "esqueleto" das tensões e ações subjacentes ao dito) e fundamental (o mais profundo e abstrato, dos valores sobre os quais o dito se fundamenta). No nível discursivo, focalizamos os temas e as figuras; no nível narrativo, as ações (transformações) e os estados; e no fundamental, a oposição semântica de base de cada texto. Esse modo de proceder se deveu à necessidade de atenção ao fenômeno da variação intrafalante, pois cotejamos textos de gêneros distintos, combinada com o fato de a entrevista ter sido motivada pela carta, o que, por si só, geraria coincidência de temas.

Almeida (2016, p. 68), atenta ao fenômeno da variação linguística intrafalante,

Enunciador da Carta Enunciador da Entrevista Traços

linguístico- discursivos

Falta de controle da língua nos níveis sintático, semântico e morfológico, inconstâncias e limitações no nível lexical, uso indevido de aspas, elementos de coesão ausentes

Controle da língua em todos os níveis, vasta escolha lexical, capacidade de rápida reformulação quando em hesitação. Produção linguística compatível com norma oral culta de São Paulo descrita pelo Projeto NURC/SP (Preti, 1997).

Marcas

discursivas Maiúsculas, negritos, exclamações, marcadores de intensidade, abundância de adjetivação

passional.

Gestualidade contida, tom de voz calmo, articulação clara e pausada, manifestação de uso da razão e pouco recurso à emoção.

Ethos Imponderado, descomedido, passional, vingativo,

possivelmente feminino, regime da falta ou excesso

Homem de ação, firme, forte, compassivo, equilibrado, regime da justa medida

propõe, também com apoio na semiótica francesa, que "[é] preciso pensar em elementos que não variem (ou que variem menos) entre textos de um mesmo autor, mas de natureza distintas". A pesquisadora se dedica à busca dos elementos necessários e suficientes à análise, assim, reduzindo o método aos passos necessários para atingir seu fim. Debruça-se sobre o nível semio-narrativo (narrativo e fundamental), do qual, sua hipótese se confirmando, a expressão e o conteúdo típicos de um dado falante serão depreendidos. Almeida (2015), em sua tese de doutoramento, desenvolve e testa essa proposta, chegando a resultados consistentes e satisfatórios.

O corpus da autora relativo à atribuição de autoria consistia em comentários (opiniões positivas, negativas, críticas, reclamações) postados em mídia social ou enviados por email, por quatro sujeitos distintos. Os textos eram independentes, no sentido em que não havia coincidência de circunstância ou de problema em sua motivação. De posse de oitenta comentários, sendo vinte de cada autor(a), Almeida mostrou que a análise do nível semionarrativo era suficiente para triar o conjunto de textos de cada autor(a), separando-os dos outros.

No presente caso, face a apenas duas produções linguísticas de gênero e extensão muito diferentes e numa relação de motivação intrínseca, embora a análise semionarrativa tenha-lhes apontado diferenças consistentes, no tratamento de quatro temas comuns, a busca do ethos do enunciador de cada texto, mais a análise das figuras empregadas para tratarem-se os temas, reforçaram os resultados da análise semionarrativa, acirrando as diferenças entre a Carta e a Entrevista.

Para encerrarmos as considerações sobre os textos, resta destacar que as análises linguística e semiótica levantam características do enunciador de cada texto, enquanto o sistema jurídico busca estabelecer a pessoa responsável por suas ações linguístico-discursivas. Como consequência da análise aqui descrita, frente aos ethé construídos, foi-nos possível afirmar a ausência de elementos linguísticos ou discursivos

indicando mesma autoria, mas não que um mesmo autor — a mesma pessoa — não os

tenha composto. O objetivo jurídico, com base nos laudos técnicos de autoria, precisa ser refinado e reformulado, pois, no caso em pauta, só poderia consistir na resposta à pergunta: "a imputação da Carta a Jorge encontra sustentação nos fatos linguístico- discursivos disponíveis?" A resposta, neste caso, é não.

À guisa de conclusão, deixo algumas palavras sobre o processo criminal e o emprego deste método.

O laudo pericial ancorado nos procedimentos analíticos aqui apresentados integrou as peças do processo por calúnia e difamação movido por Jorge Yunes contra Nicéia Pitta em 2000, motivado por esta tê-lo acusado, em um programa de TV, de ser o autor de duas cartas anônimas com ameaça de morte. Nicéia foi absolvida em primeira instância, o que levou o advogado do interessado a solicitar a análise linguística dos dois textos objetos deste capítulo e apresentá-la no julgamento. Nicéia foi condenada em segunda instância a uma pena revertida em multa.

No tangente ao método, no âmbito jurídico, utilizei-o essa única vez, tanto por, dotada de índole mais para solitária, não ter contato com advogados criminalistas, quanto pela tensão experimentada diante da responsabilidade de emitir minha resposta à questão colocada, sabendo que ela contribuiria — ou poderia contribuir — com a decisão de um juiz sobre alguém. Por outro lado, como professora de uma disciplina intitulada "Estudos Discursivos em Inglês", passei a inserir um exercício de atribuição de autoria, como parte do curso. O exercício consiste em fornecer dez mensagens eletrônicas de autoria de uma mesma pessoa cuja língua materna é inglês e uma décima primeira, de autoria desconhecida. Os alunos devem analisá-las, discutir semelhanças e diferenças, tentar definir se a última mensagem é ou não de mesma autoria e apresentar um relatório da análise e sua conclusão. Chegar à resposta certa é o menos importante no contexto instrucional e "nota" atribuída, ao contrário do contexto jurídico. Contudo, o poder motivacional que tal exercício proporciona surpreendeu-me positivamente. A grande maioria dos alunos que passaram por esse exercício mergulhou com afinco na análise, discutiu, comparou e contrastou hipóteses, buscou leitura complementar, dedicou-se ao máximo e... ardeu de curiosidade sobre a resposta, fornecida no encerramento do curso, justificada por fatos linguísticos, a uma sala repleta e animada por grande entusiasmo e atenção.

Capítulo 8

No documento Perspectivas em linguística forense (páginas 170-175)