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Capítulo 2 ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.3 Scholarship e as funções de ensino e investigação na era digital

2.3.2 Scholarship na era digital

Como resposta aos desafios da sociedade em rede e do movimento global de abertura ao conhecimento, que perpassa praticamente todas as esferas da sociedade, a utilização de tecnologias emergentes que facilitam a colaboração e partilha a um nível global teve também influência na forma cada vez mais social e participativa com que os docentes/investigadores encaram as suas funções (Veletsianos, 2012), nomeadamente na forma como estas são encaradas, organizadas, construídas e experienciadas (Weller, 2011).

No seu livro “Scholarship in the digital age”, Borgman (2007) analisa a forma como as infraestruturas digitais têm desafiado a tradicional publicação académica e transformado o conceito de dados, nas diferentes áreas científicas. Segundo a autora, as constantes alterações têm permitido estabelecer um novo tipo de comunicação académica, bem como abordagens mais colaborativas e interdisciplinares, dando lugar a um novo tipo de scholarship, imersa num ambiente progressivamente mais interligado, transparente e colaborativo.

Esta influência nas diferentes funções académicas tem sido descrita e caracterizada na literatura também de formas distintas, em função das práticas que cada perspetiva pretende realçar neste contexto de scholarship na era digital.

Cohen (2007) realça o papel das ferramentas sociais e define social scholarship como as práticas em que a utilização de ferramentas sociais é parte integrante do processo de investigação e publicação e apresenta como principais características a abertura, conversação, colaboração, acesso, partilha e revisão transparente. Nesta definição, a autora refere-se especificamente à função de investigação e todo o processo a ela associado, ou seja, à scholarship da descoberta, no modelo de Boyer (1990), colocando a ênfase no papel da Web 2.0 nas práticas de investigação.

Burton (2009) define o open scholar como alguém que torna os seus projetos e processos intelectuais digitalmente visíveis e que convida a comentários constantes sobre o seu trabalho, em todas as fases do seu desenvolvimento.

Ao definir o conceito de open faculty, Andersen (2010) distingue entre o docente/investigador analógico e digital, identificando influências de fatores individuais e institucionais que podem determinar a predisposição para uma atitude com maior ou menor

grau abertura, realçando o papel das competências tecnológicas como catalisador da mudança e consequente transição do analógico para o digital.

Por sua vez, Pearce, Weller, Scanlon e Kinsley (2010) e Weller (2011) definem o conceito de digital scholarship como mais do que utilizar tecnologias de comunicação mais informais para investigar, ensinar e colaborar, mas como abraçar valores abertos, tirando partido do potencial das tecnologias e do trabalho em rede, de forma a beneficiar a academia e a sociedade.

Veletsianos & Kimmons (2012b) definem o conceito de networked participatory scholarship como as práticas emergentes dos docentes/investigadores na utilização de tecnologias participatórias e de redes sociais online para refletir, discutir, melhorar, validar e fazer avançar o seu trabalho académico. Estes autores defendem também que a forma como os docentes/investigadores utilizam as tecnologias digitais implica um conjunto de práticas e uma predisposição, que têm o potencial de alterar a forma como as próprias funções académicas são consideradas.

Através da análise das diferentes perspetivas e respetivas terminologias, constatamos que o debate em torno das alterações às práticas académicas pelos ambientes digitais continua, em grande parte, influenciado pelo modelo de Boyer (1990) e a sua perspetiva multidimensional. Pearce et al. (2010), por exemplo, recuperam o modelo proposto por Boyer (1990) e, centrando a sua perspetiva no potencial - ainda que numa perspetiva muito tecnológica – das tecnologias para promover práticas mais transparentes e mais abertas, exploram precisamente as alterações que o conceito de abertura traz em cada uma das funções académicas.

Figura 2.10 – Influência da digital scholarship no modelo muldidimensional de Boyer

Fonte: adaptado de Pearce et al., 2010

•Canais de comunicação abertos •Educação aberta •Publicações abertas •Dados abertos Descoberta Integração Aplicação Ensino

Na primeira dimensão, relativa à descoberta de novo conhecimento numa determinada área científica, Pearce et al. (2010) referem que, por um lado, as ferramentas informáticas permitem gerar e analisar grandes quantidades de dados, que, por outro lado, podem facilmente ser partilhados com a comunidade académica, transformando-se em dados abertos.

Na dimensão da integração, em que o novo conhecimento é contextualizado e aplicado a problemas mais abrangentes, Pearce et al. (2010) centram-se nos mecanismos tradicionais através dos quais os investigadores comunicam os seus resultados, nomeadamente os mecanismos de publicação em revistas científicas, alterados por processos mais abertos de revisão de pares e publicação em acesso aberto.

Por sua vez, a dimensão da aplicação é influenciada pela forma como se utilizam novas formas de comunicação para participar em debates mais globais, em que os docentes/investigadores têm acesso a maiores audiências, devido ao que os autores denominam de desintermediação relativamente aos canais de comunicação tradicionais. Por fim, na dimensão do ensino, foi onde, segundo Pearce et al. (2010) ocorreu o maior impacto das tecnologias digitais e de abordagens mais abertas, sendo que a digitalização dos recursos didáticos começou por fazer com que fossem facilmente reproduzidos e partilhados a uma escala global, que por sua vez, permitiu o desenvolvimento do movimento dos Recursos Educacionais Abertos.

Neste contexto, apesar de o conceito de scholarship ser descrito de diferentes perspetivas, as aparentemente distintas definições colocam a ênfase na utilização da tecnologia, embora realçando os valores promovidos por essa mesma utilização. O que é comum a todas as definições são os princípios de abertura, colaboração e partilha, o que representa um contraste com as práticas académicas tradicionais, normalmente consideradas como processos isolados. Assim, o conceito de scholarship na era digital é influenciado por diferentes aspetos, como o trabalho colaborativo e em rede, a partilha de dados digitais e uma maior ênfase na abertura ao conhecimento, proporcionando práticas de ensino e investigação mais informais, mais colaborativas e mais abertas, em todas as suas dimensões.

Considerando a dimensão da investigação em particular, Czerniewicz et al. (2014) propõem um modelo que ilustra o ciclo de comunicação académica tradicional e a forma como o mesmo tem vindo a sofrer alterações, em todas as fases do processo de investigação (Figura 2.11).

Figura 2.11 – Alterações ao tradicional ciclo de comunicação académica

Fonte: (Czerniewicz et al., 2014)

Neste modelo de criação e disseminação de conhecimento, os autores identificam os principais elementos que integram o ciclo de comunicação académica tradicional: (a) conceptualização; (b) recolha e análise de dados; (c) articulação dos resultados; (d) tradução e envolvimento. Na perspetiva dos autores, o modelo tradicional tem início com um processo de conceptualização de um assunto, que envolve tarefas teóricas, como a escrita de revisões de literatura e que normalmente corresponde tradicionalmente a uma fase mais individual do processo. A segunda etapa consiste na recolha de dados que, apesar de poderem assumir diferentes formatos, não são tradicionalmente partilhados e nem sempre estão em formato digital. Na fase seguinte, a análise de dados conduz a resultados de investigação, que normalmente são representados em versões textuais e finais dos autores, cuja disseminação é normalmente atribuída a editoras científicas. Quando a investigação está relacionada com as atividades de ensino, existe também uma fase que os autores denominam de envolvimento, que pode implicar a divulgação de manuais ou o acesso a recursos online, mas sempre por parte de uma audiência unidimensional, claramente demarcada.

Tal como a Figura 2.11 ilustra, todas as fases sofreram alterações na era digital, sendo que as atividades têm o potencial de serem partilhadas num processo mais colaborativo e aberto, com versões mais dinâmicas dos dados, também com resultados multimodais e mais frequentemente publicados em acesso aberto, para audiências já não tão predefinidas e num processo que já não é necessariamente unidirecional. Como consequência, a fase de envolvimento também reflete novos tipos de recursos, permitindo a criação de recursos educacionais abertos, que, por sua vez, também possibilitam alterações no papel e na forma de transmissão do conhecimento das próprias instituições.