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SCHWARTZ, Stuart B Segredos Internos – Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial São Paulo: Companhia das Letras p

I POBRES NA OPULÊNCIA DO BRASIL: HOMENS LIVRES NAS VILAS DO AÇÚCAR DE PERNAMBUCO, SÉC.

40 SCHWARTZ, Stuart B Segredos Internos – Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial São Paulo: Companhia das Letras p

41 Idem. p. 210 42

Sobre a distinção de peões e pessoas de mor qualidade, as Ordenações Filipinas, conjunto de leis que regem Portugal, Reino e império a partir do início do XVII, contêm inúmeros casos. Por exemplo, no caso das disposições da herança e sucessão de pai para filho, sendo o pai peão herdará o filho legítimo ou natural, mas sendo o pai cavaleiro, fidalgo ou escudeiro, e não sendo oficial mecânico, “nem havido e tratado por peão”, só herdam filhos legítimos, e na ausência deles os parentes mais próximos. Herdando os ilegítimos apenas em caso de vontade expressa por testamento do pai. ORDENAÇÕES Filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Edição 'fac-simile' da edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro. 1870. Livro IV, p. 942. ; Também regulamentações de caráter punitivo trazem as mesmas distinções entre privilégios e punições de acordo com o estamento do réu. Por exemplo, na regulamentação sobre os tormentos permitidos de serem aplicados ao réu, diz a lei: “E os fidalgos, Cavalleiros, Doutores em Canones, ou em Leis, ou Medicina, feitos em Universidade per exame, Juizes e Vereadores de alguma Cidade, não serão mettidos a tormento, mas em lugar delle lhes será dada outra pena, que seja em arbitrio do Julgador, salvo crime de Lesa Magestade, aleivosia, falsidade, moeda falsa, testemunho falso, feitiçaria, sodomia, alcovitaria, furto: porque, segundo Direito, nestes caso não gozão de privilegio de Fidalguia, Cavallaria, ou Doutorado, mas serão

O papel social de cada ator social na cultura estamental barroca define-se, assim, pela ostentação do indivíduo que caracterizará sua posição social,43 sendo o trabalho braçal, o dito 'trabalho mecânico', um dos principais desqualificadores sociais. Nessa sociedade, o indivíduo é o que aparenta ser,44 e por isso precisa investir na ostentação do ócio e do luxo. Uma ostentação que está intimamente ligada à sua classificação jurídica, e que gera diversas distinções legais proibindo, por exemplo, que ‘pessoas de menor qualidade’ se vistam como nobres.

Mas a ostentação também é pública, promovida pela Igreja e pelo Estado para comover a massa, para criar empatia entre o povo, transformado em espectador, e o agente encomendador da obra, seja ela plástica ou teatral. Esse imaginário barroco já pode ser percebido na zona açucareira no século XVI e primeiras décadas do século XVII, na construção glamourosa de igrejas.45 Os cronistas desse período ressaltam ainda a ostentação promovida pelos senhores de engenho. O Padre Fernão Cardim, por exemplo, descreve os veludos e damascos dos senhores olindenses no século XVI:

“A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de 40, 50, e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que têm com a escravaria da Guiné; que lhe morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que têm em seu tratamento. Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem frequentam as missas, pregações, confissões, etc.”46

Aos gastos com o suntuário, juntam-se os vultosos gastos com a aquisição de escravos entre os principais motivos do endividamento dos senhores de engenho. Outros relatos nos mostram, todavia, que a ostentação vai mais longe, a ponto de não apenas vestir as senhoras de veludo e damascos, mas também as escravas com tecidos de luxo.

1310. Grifo Nosso. As repercussões sociais que a hierarquia barroca exerce nas condições de vida de pessoas de melhor qualidade e peões ficam, assim, expressas na lei.

43

SCHWARTZ. Op. cit. p. 210.

44

FRANÇA. Op. cit.

45

MENEZES, José Luis da Mota. O Barroco no País do Açúcar. Recife, 2000. (Mimeografado)

46

CARDIM, Pe. Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1978. P. 201. e ARAÚJO. Op. cit. P. 114.

A arte barroca é classicamente posta como tendo seu apogeu português e colonial no século XVIII, principalmente nas cidades auríferas.47 No entanto, os séculos XVI e XVII na zona açucareira não podem ser isolados do barroco, visto já possuírem diversas das características desse momento: a produção artística por encomenda, o engrandecimento da religião, as práticas de ostentação pública. Nessa perspectiva, a riqueza canavieira do último quartel do século XVI permite o desenvolvimento de um primeiro ciclo monumental arquitetônico colonial.48

As festas, por sua vez, caracterizam-se como a principal atividade sócio-cultural barroca, e são perceptíveis na colônia açucareira mobilizando toda a sociedade. São eventos religiosos, públicos e profanos, onde todas as camadas sociais participam inseridas em hierarquias próprias, cada grupo conhecendo sua função e seu papel determinado no evento. Organizados a partir das irmandades, das corporações de ofício, e mesmo dos conventos, diversos grupos sociais, distintos por cor, etnia ou mesmo por profissão, participam das procissões e festejos contribuindo com danças e apresentações próprias. 49 É o caso da festa de São Gonçalo Garcia, padroeiro dos homens pardos, em 1745 no Recife: uma procissão organizada pela irmandade parda, mas que apresenta uma opulência poucas vezes registrada para o Recife colonial.50

A monumentalidade arquitetônica, as festas, a opulência no vestuário, são características culturais do sistema de valores implantado pela elite açucareira colonial que quer ser espelho de Portugal. Lá a fidalguia domina a cena, aqui senhores de engenho e ricos proprietários tomam para si os encargos de patrocinarem a arte e a ostentação que caracterizam os fidalgos ibéricos. O povo, alvo das tentativas persuasórias barrocas, assimila na colônia traços dessa cultura. É notável, nesse sentido, que um número significativo de igrejas nas vilas do açúcar em Pernambuco seja construído pela própria população congregada em irmandades. A formação de irmandades leigas nessas vilas açucareiras aponta, assim, para a assimilação de ideais e projeções barrocas pelas camadas populares, ainda que seja uma assimilação parcial. Da mesma forma, o trabalho de artistas

47Cf. ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco I: Uma Linguagem a dos Cortes,

Uma Consciência a dos Luces. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1994.

48

MENEZES. Op. Cit. P.3.

49

ARAÚJO, Rita de Cássia R. de. Festas: Máscaras do Tempo - Entrudo, Mascarada e Frevo no

Carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife. 1996. P. 55

50

Para a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, Cf. ARAUJO, Rita de Cássia Barbosa. A Redenção dos

negros e mestiços, compondo obras em talha e pintura, refletem padrões barrocos, miscigenados com elementos nativos e africanos, produzindo regras e representações culturais novas e próprias do mundo colonial.51

Mas o traço cultural oriundo do imaginário barroco que, assimilado pela população e intensificado pela escravidão, marca a sociedade livre indelevelmente é o desprezo pelo trabalho. Esse desprezo pode ser encontrado tanto entre os senhores e ricos comerciantes, como também no seio da própria população pobre, que tem por atividade profissional o trabalho mecânico.

E uma vez que o ofício mecânico desqualifica socialmente, mesmo o enriquecimento dele advindo traz máculas de sangue. Nesse sentido, o estilo de vida considerado ‘bem viver’ está marcado pela ostentação do ócio:52 “O tempo livre do trabalho devia ser aplicado em demonstração de prestígio: ser reconhecido ou conversar com alguém importante na rua, ou, melhor ainda, ser recebido na casa de personagem influente ou (suprema glória!) recebê-lo em sua própria casa.”53

O status de ‘máculas de sangue’ possuído pelo trabalho mecânico na lei portuguesa iguala quem o exerce a um descendente de mouros, judeus, negros ou índios, desclassificando-o, assim, para a ascensão social ao status de ‘pessoa de mor qualidade’. No mundo colonial é perceptível a dificuldade de uma elite sem liames com nenhuma dessas ‘máculas’, mas o ideal nem por isso é menos forte, como indicam as exigências para o ingresso na Santa Casa de Misericórdia da Bahia, uma das irmandades mais conservadoras do status quo estamental do mundo colonial.

O compromisso da Santa Casa de Misericórdia da Bahia de 1618 traz exigências similares à instituição reinol: exige-se limpeza de sangue mouro ou judeu, ausência de

51

MENEZES. Op. cit. p. 5. Sobre a assimilação e transformação cultural que os mestiços coloniais operam sobre os ditames artísticos europeus na América Hispânica, Cf. GRUZINSKI, Serge. O Pensamento

Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. p. 19, 45, 63. Precisamos, ressaltar, no entanto, que

Gruzinsky critica o uso do conceito de América Barroca, acreditando que o mesmo pode ser generalizante demais. Idem, 54.

52 A definição de Bem Viver pode ser encontrada em MORAES, Douglas Batista de. Bem Nascer, Be m

Viver, Bem Morrer – A Administração dos Sacramentos da Igreja Católica em Pernambuco, de 1650 – 1790. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade

Federal de Pernambuco, Recife.

53

ARAÚJO. O Teatro dos Vícios – Transgressão e Transigência na Sociedade Urbana Colonial. Op. cit. p.113.

delitos escandalosos, e que o peticionário a irmão esteja isento de trabalhar com as mãos.54 Podemos ver constituição similar na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Recife, também uma irmandade da elite latifundiária.55 As irmandades leigas são tanto representantes das hierarquias sociais vigentes quanto conservadoras dessas hierarquias. As instituições que congregam as elites açucareiras demonstram uma hierarquia latente em seu interior: desigualdade de direitos e privilégios entre homens e mulheres e irmãos de ‘maior condição’ e irmãos menores.56 A elite açucareira procura, assim, refletir a sociedade de ordens do imaginário ibérico. As irmandades de negros, todavia, conhecem uma maior igualdade entre seus irmãos, sejam homens e mulheres, ou livres e escravos.

Por outro lado, da mesma forma que a elite açucareira espelha-se na fidalguia ibérica, a população livre pobre espelha-se na elite açucareira. A cultura popular é bem mais complexa que a simples cópia da elite,57 visto que as influências da população escrava nascida na África e seus descendentes, e da população americana nativa, são significativas e muitas vezes dominantes na formação dessa cultura popular.58 Mas, por outro lado, significativa nesta formação também é a influência do imaginário ibérico, do desprezo pelo trabalho, do prestígio através da ostentação e do ócio.

Se observarmos a sociedade açucareira do ponto de vista do projeto colonial metropolitano, a elite açucareira e os grandes comerciantes são os únicos elementos considerados produtivos, além dos escravos. No entanto, a dinâmica interna da sociedade, criada à revelia do projeto colonizador, gera diversos grupos sociais que sustentam e subsidiam a existência da própria produção de açúcar e dos grupos atrelados a ela. Mas

54

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos – A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-

1755. Brasília,:ed. da UNB, 1981. P. 95

55

Ver irmandade do Santíssimo Sacramento como instituição de elite para a limpeza de sangue em ASSIS, Virgínia Almoêdo. Pretos e Brancos – A Serviço de uma Ideologia de Dominação (Caso das Irmandades

do Recife). 1988. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

56

Cf. RUSSEL-WOOD. Op. cit. p. 15. E ASSIS. Op. cit.

57

Para uma discussão sobre os limites entre cultura popular e cultura das elites Cf. BURKE, Peter. Cultura

Popular na Idade Moderna . São Paulo: Companhia das Letras. 1989. P. 15-27.

58

Falar de cultura popular colonial é uma proposição vaga, pois diversos grupos coexistem nas camadas populares dessa sociedade, trazendo influências diferenciadas. Os escravos africanos não podem, tampouco, ser vistos de forma homogênea, oriundos que são de culturas bastante distintas. Cf. TINHORÃO. Op. Cit. p. 79-102; 133-159. Sobre a organização do Rei do Congo em Pernambuco, Cf. TORRES, Cláudia Viana. Um

Reinado de Negros em um Estado de Brancos – Organização de Escravos Urbanos em Recife no Final do Século XVIII e Início do XIX (1774-1815). 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. E para Minas Gerais, PAIVA. Op. cit.

além do dado econômico, há em todo o processo de colonização a busca pelo enraizamento, pela recriação da sociedade metropolitana, e isso tem no aspecto sócio-cultural o seu grande veículo.59

Conhecer o imaginário barroco vigente nas povoações e vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII nos ajuda, dessa forma, a entender as aspirações das pessoas oriundas das camadas mais baixas da estrutura estamental colonial, as camadas periféricas à produção açucareira. Podemos, dentro dessa perspectiva, observar que os valores culturais influem na participação desses grupos sociais na vida social das vilas açucareiras, principalmente no caso dos pobres produtivos, ou seja, os oficiais mecânicos. As atitudes dos libertos, por exemplo, ao ingressarem nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, participando junto aos escravos, ou sua postura nas milícias de henriques, servindo à ordem escravista, estão repletas de valores impostos pela cultura barroca colonial e reinterpretados à luz das condições sociais de cada grupo. Mas também a opção que libertos, pardos e brancos pobres podem fazer pela mendicância, em vez da inserção no grupo de pobres produtivos, pode indicar uma assimilação e adaptação desse imaginário dominante, onde é preferível mendigar a exercer o degradante ofício mecânico.

Por outro lado, é esse imaginário barroco mestiço das vilas açucareiras que vai significar o interior das capitanias do norte do Estado do Brasil como o sertão. É preciso considerar ainda que o cenário urbano atua como catalisador na fusão de representações e imagens construídas pelos grupos sociais livres intermediários da sociedade açucareira. Assim, para conhecer as condições sociais dos pobres produtivos e dos vadios precisamos antes conhecer o contexto urbano que os alimenta, e esse contexto é constituído pelas vilas açucareiras da capitania de Pernambuco. Ao entendermos, por sua vez, o cenário das vilas açucareiras e os grupos livres que o habitam, podemos começar a seguir as pistas que nos levarão a deslindar a participação desses personagens na guerra dos bárbaros e a própria construção da idéia de sertão e da sociedade sertaneja.

59

A idéia de colônia como o espaço da reprodução da cultura metropolitana pode ser vista em BOSI, Alfredo.

1.2 - CENÁRIO URBANO: RECIFE E OLINDA NO SEGUNDO