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“o numero de crimes he tão grande principalmente dos Negros e Piães que parece conveniente que Vossa Alteza se sirva de mandar acresçentar ao Regimento do Ouvidor de Pernambuco os dous Capítulos do Regimento do Ouvidor do Rio de Janeiro”

Conselho Ultramarino sobre petição do governador de Pernambuco, Fernão Coutinho. 8 de agosto de 1672.217

Esses dois capítulos do regimento do ouvido do Rio de Janeiro que o Conselho Ultramarino afirma serem vitais para o controle da criminalidade em Pernambuco são referentes à pena de morte para as ‘pessoas vis’. Tal documento faz parte de uma longa discussão na administração régia sobre a instituição ou não de pena de morte em Pernambuco no segundo período português. Ou defensores da pena afirmam que a mesma é imprescindível para acabar com a crescente criminalidade da capitania. Uma criminalidade que, por sua vez, está associada nesse discurso aos negros e peões, ou seja, à plebe de Pernambuco, e que tem suas causas também bastante comentadas nas cartas do Conselho:

“os excessos que naquella terra se obrão e a pouca emmenda que há para elles nascidos são de lhe não poder dar o castigo conforme os crimes, (...) Que naquella terra se mata gente com huma facilidade, que cre que os Pays ensinão os filhos isto como as mayores obrigações e quando os que se perdem por elles se lhes dá grande castigo, hé (irem) para angolla ou mandalos para a Bahia donde he tão facil o achar quatro testemunhas falcas como o voltarem a passar ao mesmo lugar do delito; que aly achou naquella cadea dous memelucos prezos que matarão hum frade a espingarda estando dormindo a sua porta sem mais (...) que a de lhe haver empedido hum casamento que poucos dias havia que matou hum mulato naquelle recife a hum homem bem alentado a espingarda de sima de huma genella sem mais causa que a de humas leves resoes que ainda naquella casta de gente pesão menos, (...) parece que tem menos merecimento aquele governo que o do Rio de Janeiro donde se estão enforcando sendo esta a cauza de lá se deminuir os crimes(...).”218

Vemos assim que os discursos da Coroa associam a criminalidade da capitania aos atos da plebe, dos pardos e mamelucos que matam sem mais causa que umas leves razões que naquela casta de gente pesam menos. Essa casta de gente, como afirma a Coroa, é a população livre de cor, tanto os trabalhadores produtivos quanto os ditos desocupados que

217

AHU, PE, cx. 6, p.a .

também fazem parte dessa sociedade urbana. Esses criminosos e desocupados constituem, por sua vez, o segundo grupo de homens recrutáveis das vilas açucareiras de Pernambuco, os chamados vadios, os marginalizados pela sociedade açucareira.

Dentro da estrutura social canavieira os vadios são descritos como vagabundos, gente sem patrão ou ofício, muitas vezes constituídos por escravos libertos ou brancos inválidos que se entregam à mendicância.219 Mas não são apenas os inválidos que fazem parte desse grupo. Na verdade, a invalidez justifica a mendicância, que por sua vez é bem vista por esse imaginário por incentivar a caridade cristã. O contingente sobre o qual é posto o epíteto de vadio é composto, normalmente, pelos desocupados saudáveis que, do ponto de vista dos discursos dominantes, optam pela vagabundagem.

Assim sendo, podemos perceber que na sociedade colonial açucareira os pobres e os vadios formam dois grupos distintos. A distância que os separa é definida pelo fato dos primeiros estarem inseridos na estrutura estamental, considerados úteis e produtivos àquela sociedade; enquanto os vadios constituem o grupo considerado improdutivo, desligado de quaisquer atividades inseridas na economia da região, tornando-se marginais perante essa sociedade.

A diferença entre o pobre e o vadio é nítida no imaginário barroco: o pobre, na zona do açúcar, é o trabalhador mecânico, o roceiro e o lavrador. Em diferentes graus de inserção econômica, esses personagens são desde proprietários de terras, como os pequenos lavradores, até artífices e pequenos comerciantes. Considerados pessoas vis pelo imaginário barroco colonial são, no entanto, tolerados, uma vez que úteis ao sistema. O vadio, no entanto, é um elemento à parte: é o desocupado, o pedinte, o bandido, o elemento considerado improdutivo, intolerado pelo sistema e quase sempre associado aos homens de cor livres. É o indivíduo que rejeita, ou é excluído dessa sociedade.220 Uma exclusão social representada pela rejeição ao trabalho.221 O vadio torna-se o paradoxo da sociedade

219

VILHENA. Op. cit. P. 133.; Apud JANCSÓ. Na Bahia, Contra o Império – História do Ensaio de

Sedição de 1798. Op. cit. p. 85.

220 Essa hierarquização da sociedade barroca não é feita tão somente através de valores econômicos, mas sim

de valores e categorias estamentais. No entanto, a estrutura econômica não pode ser desprezada,

principalmente no estudo dos pobres, uma vez que sua condição social depende consideravelmente de estarem ou não de posse de meios produtivos. A partir dessa premissa, vadio seria então aquele que é excluído dos meios de produção.

colonial açucareira, significado pelo o fato de que se o trabalho mecânico é rejeitado como degradante, o ócio que não se apóia em trabalho escravo também o é.222

Nesse sentido, nem todos aqueles que são classificados como vadios na sociedade escravocrata o são por imposição do meio sócio-econômico, apesar de ser o domínio exercido pelo trabalho escravo sobre os meios de produção uma das principais causas do grande número de livres desocupados nessa sociedade. Por outro lado, muitos forros imbuídos do imaginário que despreza o trabalho mecânico, buscam escapar da equiparação com os escravos da qual serão alvo caso se ocupem de atividades manuais. Preferem, assim a mendicância, vista com melhores olhos por esta sociedade, que desde a Idade Média considera o mendigo como o pobre de Cristo, passível de caridade e pena. Mas não o vadio. Aquele indivíduo que opta pela vadiagem, sendo um indivíduo considerado sadio, sem direito à mendicância, é desprezado e considerado perigoso, pois se utiliza de um ócio impróprio. Apenas aquele que é sustentado pelo trabalho escravo pode se dedicar ao ócio barroco.

Mas se o vadio é o personagem desocupado, a Coroa procura inseri-lo em seus planos de colonização, visto consistirem eles em um repositório humano à disposição. Nesse sentido, podemos perceber que na sociedade colonial açucareira, a Coroa portuguesa utiliza sempre que possível a integração do elemento marginal, não sua exclusão. Uma integração que é feita pelo recrutamento dos marginais para os quadros repressivos da administração estatal. Um outro paradoxo.223

Esse grupo social chamado genericamente de vadios inclui diferentes tipos de personagens marginais à sociedade colonial. O conjunto de normas dessa sociedade, ou seja, a legislação oriunda do Reino, apresenta o vadio como o delinqüente. O imaginário colonial, todavia, não é tão restrito: vadio é aquele elemento que não se insere nos padrões produtivos, podendo, no entanto, ser aproveitado por essa estrutura sazonalmente, cabendo o termo ainda, vez por outra, àqueles que resistem ao Estado.224

222

ARAÚJO. O Teatro dos Vícios – Transgressão e Transigência na Sociedade Urbana Colonial . Op. Cit. P. 150-151

223 A tese da utilidade social é uma abordagem que distingue dois modos com os quais uma sociedade pode

tratar seus marginais: pela completa exclusão do convívio social, como é o caso dos loucos no fim da Idade Média, ou pela integração e utilização desses marginais no meio social, como é o caso dos comerciantes no mesmo período. SCHMITT. Op.cit.. P. 285.

224

Laura de Mello e Souza, em seu estudo clássico sobre os desclassificados da mineração, empreende uma abordagem profunda das causas dessa desclassificação no Ocidente. Buscamos trabalhar, então, uma outra

Sendo uma sociedade estamental, com classificação hierárquica rigidamente estabelecida perante a lei, a sociedade colonial reconhece a existência do pobre produtivo, o artesão, o oficial mecânico, e o insere em sua estrutura econômica, ainda que na periferia. São os peões da lei do Reino, as pessoas vis e de menor qualidade. Desprezados por seu status social, mas aceitos como úteis, esses personagens estão inseridos na classificação hierárquica em suas camadas mais baixas. Dentro dessa perspectiva é que os vadios são desclassificados.

Ainda no medievo ibérico estão as origens desses conceitos de marginalidade no Ocidente, que diferenciam o mendigo do vadio e ambos do pobre trabalhador. A Lei das Sesmarias, por exemplo, promulgada em Portugal em 1375, visava recuperar a agr icultura do Reino através da condenação dos vadios a trabalhos forçados no campo,225 ou seja, através da transformação do vadio em elemento social produtivo. Nela já se percebe uma distinção jurídica entre o elemento socialmente tolerado enquanto produtivo, e o elemento vadio considerado improdutivo. Percebe-se também, já nesse momento, a opção estatal pelo aproveitamento desse grupo marginalizado, redirecionando-o como mão-de-obra para os projetos régios.

Apesar disso, o mundo canavieiro nem sempre identifica limites perfeitos entre os pobres e os vadios. Muitas vezes os engenhos contratam mão-de-obra livre nos períodos de maior atividade produtiva, dispensando-a assim que a superprodução acaba: “e, se não eram absorvidas em outras atividades, retornam para suas roças de subsistência ou passavam a roubar e mendigar pelas vilas e cidades .”226 Situação que pode ser observada no discurso de Tollenare sobre os mocambeiros, os moradores das choupanas de beira de estrada, desocupados em regime permanente que servem por vezes nos engenhos como mão-de-obra extra. Assim, aquele que é classificado como vadio pode ocasionalmente assumir lugar na estrutura produtiva, ainda que temporariamente.

perspectiva, especificamente com as diferenças entre o pobre produtivo e o vadio, pois, uma vez que Mello e Souza caracteriza o desclassificado social como o homem livre pobre, miserável, exterior a sociedade por sua pobreza, e os analisa a partir de sua classificação na estrutura produtiva, termina por igualar o elemento vadio e o elemento pobre. E apesar de que a Coroa recruta para seu quadro repressivo os dois elementos, utiliza -os, na verdade, de forma diferenciada. Uma diferença que é originária da própria distinção de condição social entre os dois grupos. SOUZA. Desclassificados do Ouro: A Pobreza Mineira no Século XVIII. Op. cit. P. 65. p.149.

225

Idem, p. 56

É preciso percebermos, todavia, que a vadiagem pode também ser uma opção pessoal, e não apenas uma imposição da sociedade escravista sobre os pobres livres. O não trabalhar, a recusa de assumir as mesmas ocupações que os escravos - atitude que para a sociedade senhorial significa preguiça e indolência quando identificada em pessoas das camadas subalternas -, é também uma forma de resistência à ordem escravista, “a reafirmação do status de livre”.227 Nesse sentido, a ociosidade apresenta-se como uma forma de distinção entre o livre, o liberto e o cativo que não pode ser esquecida.

E essa escolha pela vadiagem não é feita apenas pelos libertos que querem, assim, distinguir-se dos escravos; também é feita pelos migrantes portugueses, oficiais mecânicos reinóis, lá sofrendo a discriminação barroca ao trabalho manual, que ao serem inseridos em um meio onde o trabalho está dominado pela escravidão, optam pela vadiagem.

Luís dos Santos Vilhena registra esse fenômeno em Salvador do fim do XVIII, onde homens vindos de Portugal para servir como criados no Brasil, aqui abandonam essa atividade ‘exclusiva de negros’, achando que teriam ‘por melhor sorte o ser vadio, o andar morrendo de fome, o vir parar em soldado e às vezes em ladrão’.228 Um discurso sugestivo que indica ser o primeiro tipo social constituinte desta camada vil os próprios reinóis migrados e que trazem para a sociedade escravista o imaginário ibérico.

Essa imbricação entre o imaginário barroco ibérico e a realidade escravista colonial cria novos valores culturais e econômicos. Neste imaginário unem-se os ideais estamentais ibéricos e a desqualificação racial causada pela escravidão. Mas a categoria social vadio é juridicamente definida já na legislação metropolitana: As Ordenações Filipinas, compiladas nas últimas décadas do XVI e em vigor como código legal para o Reino e o Ultramar durante os séculos XVII e XVIII, têm a preocupação de estabelecer a estratificação do vadio e suas sanções legais. No capítulo específico intitulado ‘dos vadios’, dizem as ordenações que:

“qualquer homem que não viver com senhor, ou com amo, nem tiver Officio, nem outro mestér, em que trabalhe, ou ganhe sua vida, ou não andar negoceando algum negocio seu, ou alhêo, (...) seja preso, e açoutado publicamente.(...)

227

Idem. p. 789.

228

VILHENA. Apud ARAÚJO. O Teatro dos Vícios – Transgressão e Transigência na Sociedade Urbana

e na cidade de Lisboa os corregedores da Côrte e da cidade, e os Juizes de Crime della, se informarão particularmente cada trez meses, se há nella algumas pessoas ociosas e vadias, assi homens, como mulheres.

E achando que as há, as mandarão prender, e cada hum deles procederá summariamente, sem mais ordem, nem figura de Juizo, (...)

E os ditos Corregedores darão suas sentenças á execução sem apellação nem agravo.

E os Juizes darão appellação e aggravo nos casos, em que couber.(...)”229

Ou seja, a legislação institucionaliza a distinção entre o vadio e o oficial mecânico: o primeiro, como diz a lei, é expressamente aquele que vive sem senhor, aquele que não tem ocupação mecânica e nem negocia, seja para si, seja para um senhor. Por outro lado, entre os oficiais mecânicos estão classificados desde o grande negociante até o caixeiro, abrangendo assim, esta última categoria, toda a diversificada camada de homens livres produtivos. O que define o vadio, dessa forma, não é o que ele é, mas o que ele não é para a sociedade barroca colonial. E a vadiagem é crime punido com prisão e açoitamento público, além do degredo e do recrutamento militar estabelecido pelas Ordens Régias. Essas ordens determinam uma vigilância cerrada das autoridades municipais sobre suas localidades: a cada três meses, obriga a lei que os corregedores e juizes de crime investiguem suas jurisdições a cata de vadios.

E mesmo que não tenhamos todas as autoridades criminais do império realizando buscas trimestrais minuciosas atrás de vadios, a existência da lei demonstra que a Coroa não deixa de se preocupar com esses personagens. Além de vigiá-los e reprimi- los, a Coroa portuguesa procura dar -lhes uma utilidade social. Essa utilidade relega-os às mais baixas camadas produtivas, pois os vadios presos são transformados em soldados.

Dentro dessa política de transformar o vadio em elemento produtivo para o Estado, podemos encontrar diversas práticas da administração metropolitana e colonial. É o caso, por exemplo, de uma consulta de 1635, onde o Conselho Ultramarino discute a petição de um capitão de infantaria da região do Lamego no Reino, em que este pede autorização para recrutar todos os vadios de sua jurisdição, enviando-os na armada que então estava de partida para combater a companhia holandesa de comércio em Pernambuco. Sobre isso, o parecer do Conselho diz que:

“a cidade de Lamego (...) e sua comarca havia muitas pessoas que podião nesta occasião servir a Vossa Magestade; e por quanto são homes estravagantes que não tem obrigação alguma, e muitos se não sustentavão, mas que com o que furtando vão; Pede a Vossa Magestade lhe mande hordem para que os possão prender. (...) para servirem a Vossa Magestade nesta ocasião de Pernambuco (...) Pareceo que Vossa Magestade deve mandar aos corregedores das comarcas, que as pessoas que lhe appontarem os Capitães, constando-se que são vadios, e Inutis na República, e escandalosos (...), os prendão, para que presos possão vier servir a Vossa Magestade na occasião deste Armada que vai a Pernambuco.”230

Aqui a opinião dos conselheiros expressa a imagem que sociedade e Estado fazem dos vadios: homens extravagantes que não tem obrigação alguma e que se sustentam com furtos, os vadios são os inúteis da República, os homens escandalosos à margem da lei, e também da moral. Prendê- los não é suficiente. É necessário também recrutá- los. A punição para a vadiagem aqui confunde prisão, recrutamento e degredo. Na tentativa de livrar-se dos vadios, mas não querendo desperdiça- los enquanto recursos humanos, a Coroa cria o degredo útil, que não apenas exclui os marginais do convívio social, mas também lhes fornece uma utilidade favorável ao Estado.

E a principal utilidade social que a Coroa dá a seus vadios é torná-los soldados burocráticos. Nas vilas açucareiras da América portuguesa, enquanto os pobres produtivos devem ser preferivelmente inseridos nas tropas auxiliares, de forma a que continuem a trabalhar normalmente, os vadios são forçosamente recrutados nas tropas burocráticas, instituição desprestigiada e mal vista pela sociedade. Dentro dessa perspectiva, uma das principais funções dessa tropa é ser solução para o problema dos marginais, transformando- os em peças úteis do Estado, ao mesmo tempo retirando-os do convívio social e aproveitando-os na repressão a esta mesma sociedade açucareira.

Podemos observar essa situação em uma carta régia dirigida ao governador de Pernambuco, André Vidal de Negreiros, em 1660, onde a Coroa ordena que:

“em razão da falta de gente que há no Reino de Angolla, aonde me hides servir de Governador, e da que vos era necessario levar em vossa companhia, para sua segurança e defensa, me pareceo dizervos que se fica tratando de se enviar a Angolla, deste Reino, a maior quantidade de gente degradada que pode ser, (...) e quando esta não bastar procureis ajustarvos ahy com Franscico de

Britto, que vos vay suçeder para que possão dahy levar alguns soldados (...).”231

Ou seja, para constituir a organização militar dos territórios lusos de Angola na segunda metade do século XVII, a administração ultramarina envia gente degredada do Reino, além de tropas de Pernambuco que, por sua vez, também são compostas por vadios e delinqüentes. Se é comum que os degredados do Reino sejam usados como colonos, o que já vemos com Duarte Coelho, a imposição de uma tarefa específica nessa colonização parece ser menos usual, ao contrário do que acontece com os vadios recrutados ta nto no Reino quanto na colônia açucareira, ocupados que são com as tarefas militares do empreendimento.

A busca por estabelecer uma associação entre o degredo e uma função social útil ao projeto colonizador parece estar constantemente presente nas preocupações da Coroa portuguesa para a administração de seu império, como podemos ver na seguinte ordem régia dirigida ao ouvidor de Pernambuco, em 1715:

“Faço saber a vos (...) que passandosse ordem em 26 de dezembro de 1710 a vosso antecessor, para que aquelles criminozos que estivessem em pena de degredo, e por crimes tais que merecessem o desterro de Angolla, os fizesse remeter para aquele Reyno, e ainda alguns vadios que conhecesse podião servir de grande perturbação nessa Republica, e de escandalo aos povos (...), me propos em carta (...) do anno passado, e duvida que se lhe oferecia sobre a execução da dita ordem se havia executar nos criminozos que estivessem na dita pena sem esperar a sentença da Rellação da Bahia para onde havia apellar (...), nem em outro cazo dos vadios em que não devia haver appellação nem aggravo por serem sumarios. E pareceo dizervos que a Refferida ordem que se passou a vosso antecessor para serem mandados os vadios para angolla foi somente por aquella ocasião e se não deve extender para o mais tempo e assim neste particular deveis guardar a ordenação e o vosso regimento não os a respeito dos vadios, mas tambem dos mais criminozos (...).”232

Essa ordem faz parte de uma correspondência administrativa entre a Coroa e seus representantes no império que apresenta, em diferentes momentos, uma vontade política de retirar os vadios do convívio social, aqui especificamente Pernambuco. Degredar os vadios que perturbam a república é excluir essa camada da estrutura social. Uma visão mais ampla do problema, no entanto, permite-nos perceber que para a Coroa esse não é apenas um

231

AHU, cód. 275, fl. 308v.4/11/1660

processo de exclusão, mas de aproveitamento, uma vez que essa camada é muitas vezes, como no caso de Angola, utilizada com fins militares.

Essa ordem régia de 1715 também ilustra a existência de certa confusão legal sobre a deportação de vadios. Na carta, o Conselho Ultramarino explica ao ouvidor de Pernambuco que a anterior deportação dos vadios da dita capitania para Angola fora uma contingência momentânea do governo precedente, não sendo regra geral. Mas vemos em documentos posteriores que esse degredo útil continua sendo utilizado pela capitania ao longo do século XVIII, independentemente das contingências momentâneas.233

Para o imaginário dominante nas vilas do açúcar, a distância entre o vadio e o bandido é sempre tênue. E sob a capa da utilidade social que a Coroa fornece aos vadios, a