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seguif sem urn intervalo longo demais" (p 139) Para esses au tores, a duragao das pausas vai depender de fatores como

complexidade ou dificuldade do tema em discussao. Os falan- tes, em qualquer situac;ao, oferecem pistas para a identificac;ao do final do turno, sejam elas IingClfsticasou paralingClfsticas (mudanc;a na direc;ao do olhar, movimento com as maos, entre outros). Alem dessas ha ainda que se considerar as pistas pros6dicas.

Estudos na area da pros6dia (cf. Maeda, 1976; Lieber- man, 1967; Oller, 1973; Lehiste, 1980, entre outros) t~m de- monstrado que dados fornecidos pela observac;ao da frequ~n- cia fundamental, durac;ao e amplitude de diferentes estruturas apresentam caracterfsticas distintas, dependendo da posic;ao dos elementos na estrutura. As pistas pros6dicas fornecem si- nais ao ouvinte para uma possfvel mudanc;a de turno. Esta

e

uma das caracterfsticas da func;ao pragmatica da pros6dia com relac;aoao c6digo. 0 mesmo se pode dizer com relac;ao

a

queda na frequ~ncia fundamental, ou uma mudanc;ano padrao entoacional, ou ainda, uma baixa na amplitude ao termino de uma sequ~ncia tonal (coincida ou nao com a conclusao do pensamento do falante), que, de alguma forma contribua para a descontinuidade na fala, pode sugerir aQ ouvinte que uma chance Ihe foi concedida para tomar 0turno. Essaperspectiva

de analise pros6dica interacional sugere uma maior atenc;ao ao estudo das pausas de hesitac;ao,visto que ao se considerar o padrao entoacional associado a um elemento da estrutura sintatica onde se da a pausa e que se podera definir se a pau- sa preenchida pelo falante ou a tomada de turno pelo ouvinte se deu pelo fornecimento de uma pista identificada pelo pa- drao entoacional que acompanhouaquela estrutura ou se a durac;ao simplesmente e que possibilitou a mudanc;a do turno. De acordo com Boomer (1965) "as hesitac;oes na fala es- pont&nea ocorrem em pontos onde as decisoes e escolhas devem ser feitas". Os arranjos gramaticais e lexicais sac feitos a partir de uma decisao previa do falante a qual, sendo cir- cunstancial (0 1alante organiza a 1ala a cada momento), pode resultar em pausas nao planejadas.

Para Brazil (1978:1) "as escolhas entoacionaisestao re- lacionadas

a

func;ao interativa de uma manifestac;~ooral (utte- rance)". Os falantes deverao estar atentos

a

func;ao interativa da 1ala se quiserem ser entendidos. A escolha de um determi- nado padrao entoacional obedece a uma decisao a cada mo-

mento da fala e estara condicionada ao conhecimento de mundo dos participantes e

a

complexidade do tema em de- senvolvimento. Da mesma forma, a compreensao por parte do ouvinte dependera do partilhamento do conhecimento de mundo partilhado (shared konowledge) e do tema. Quando atuando interativamente,0 falante divide as estruturas em uni-

dades tonais (tone units) de modo que cada porgao seja per- cebida pelo ouvinte como "uma realizagao de fala inteligfvel" (Brazil, op. cit.:1). Cada unidade tonal e pre-planejada e pode ter uma ou mais proemin~ncias (selegao de um elemento lexi- cal na estrutura sintatica com ~nfase numa determinada sflaba) resultantes da escolha previa estabelecida pelo falante. Antes de iniciar uma unidade tonal 0 falante precisa saber 0 que vai

acontecer com cada unidade. As proemin~ncias sao selecio- nadas com base no conhecimento partilhado com 0 ouvinte,

ao mesmo tempo que estao vinculados ao contexto, 0 que

coincide, na maioria das vezes, com a t6nica da palavra sele- cionada, mas nao necessariamente. 0 conceito de t6nica se- gundo Brazil (1978) e aquele de forga articulat6ria em uma da- da sflaba que carrega consigo a acentuagao mais forte numa unidade tonal. A proemin~ncia, por outro lado, e 0 resultado

da selegao de uma sflaba em uma determinada palavra asso- ciada ao significado da mensagem a ser veiculada. A proe- min~ncia e um sinal para0 ouvinte de que aquela palavra e se-

letiva. Como tal, e predizivel. 0 tipo de padrao entoacional de toda unidade depende do tom atribufdo ao elemento lexical se- lecionado.

Brazil descreve cinco tons: ascendente (rise), descen- dente (fall), ascendente-descendente (fall-rise), descendente- ascendente (rise-fall) e nfvel. Os tons descendente e ascenden- te-descendente implicam separagao (separateness) e introdu- zem uma informagao nao-partilhada. Sao denominados pro- clamadores (proclaiming). Os tons ascendente e descenden- te-ascendente implicam partilhamento (common ground) e sao chamados referentes (reffering tones). 0 papel desempenhado pelo falante pode ser de dominante (0falante mantem0 con- trole de como a interagao verbal devera se dar) e nao- domina- te. Uma situagao em que 0falante exerce0papel de dominan- te e aquela do professor em sala de aula. Os tons ascendente e ascendente-descendente estao relacionados ao papel de dominante exercido pelo falante.

A1em dos tons acima descritos, os quais obedecem a uma orientagao direta (direct orientation), h8 dois outros tons usados na orientagao oblfqua (oblique orientation). 0 discurso de orientagao oblfqua esta centrado na Ifngua e nao no ouvin- te. Nao ha uma preocupagao em comunicar ideias mas em or- ganizar sintaticamente a produgao oral. A orientagao oblfqua tern dois tons: descendente e nfvel. 0 descendente ocorre em pontos de possfvel completude (completion) e 0 nfvel esta re-

lacionado as palavras em uso. Este parece ser 0tom normal-

mente usado na hesitagao.

Halliday (1967) distingue tambem cinco tons (linhas mel6dicas) associados aos movimentos tonais (pitch move- ments). Esses tons estao vinculados a oposig6es entre polari- dades:

"se a polaridade e assertiva, a intensidade da t6nica cai; se nao-assertiva, sobe. Assim,0tom 1 constitui uma as- sergao a uma pergunta que nao envolve polaridade; 0

tom 4, que cai e em seguida sobe, constitui uma as- sergao que envolve ou implica alguma pergunta. 0 tom 2 constitui uma pergunta... e 0 tom 5, que sobe e em seguida cai, constitui uma pergunta nao mais importan- te, combatida por uma assergao. 0 tom 3 evita umade- cisao; como uma assergao e, na melhor das hip6teses, eventual ou imaterial" (op. cit.:36).

Com isso, entende-se que 0falante pode ter diferentes

graus de envolvimento com seu interlocutor (Coulthard, 1977). Os diferentes graus podem relacionar-se com inteng6es mar- cadamente distintas no falante, diferentes graus de envolvi- mento partilhado, e familiaridade com0tema em discussao.

Brazil (1975) estabelece graus de intensidade que po- dem ser atribufdos aostons proclamador e referente, indican- do graus de envolvimento por parte dos interlocutores. Com isso, a classificagao de Brazilaproxima aquela de Halliday. Po- demos resumir a classificagao de Halliday e a de Brazil em duas dimensoes - referente/proclamador e envolvimento/nao envolvimento - em que 0significado estara sempre relacionado

a uma maior ou menor grau de envolvimento dos interlocuto- res, envolvimento esse que, por sua vez, pressupoe urn maior ou menor grau de partilhamento de urn conhecimento previo.

dem ser usados tanto em perguntas quanto em assertivas.

E

importante aqui ressaltar a distingao entre 0 conceito gramati-

cal de 'interrogativas' e 'afirmativas' por um lado, e0 conceito

interacional de 'assegao' e 'indagagao', por outro. 0 uso de 'a- firmar' e 'perguntar' na concepgao interacional esta relaciona- do ao uso comunicativo da lingua considerando 0 texto no

qual a interagao se da. 0 conceito gramatical esta centrado na lingua em si. Nos contextos de assergao 0 uso dos tons pro-

clamador e referente depende do conhecimento partilhado en- tre as partes _ ou seja, lado ja negociado - ou se uma infor- magao nova esta para ser veiculada. Nos contextos de inda- gagoes 0 tom referente tende a ocorrer com perguntas com

uma resposta esperada ('Estou certo que 0 que eu penso e

verdade?'), enquanto 0tom proclamador tende a ocorrer sem

resposta esperada ('Ainda nao tenho certeza. Por favor, diga- me'). 0 tom referente esta, portanto, relacionado com pergun- tas que "confirmam", eo tom proclamador, com aquelas do ti- po "descubra". A cada tipo de tom esta associado um nlvel (al- to, medio ou baixo) a primeira sHaba proeminente da unidade tonal que funciona como uma 'pista' para 0 ouvinte. 0 tom

medio consiste em, por assim dizer, a Iinha basica, ponto de refer~ncia para a classificagao dos outros dois: alto e baixo. A distAncia entre .esses tr~s nlxeis e percorrida por uma serie de gradagoes (cf. Brazil, 1975). A distancia maxima acima do pon- to medico esta associada l;Imafungao contrastiva, mais eviden- te quando 0 contraste se da ao nlvel do sistema como, por

exemplo, 0contraste lexical, sem uma relagao necessaria entre ftens dentro e fora do sistema (cf. Coulthard, 1977).

o

nlvel baixo (distancia maxima abaixo do ponto neutro) pressupoe uma relagao de equival~ncia entre Itens nurn con- texto conversacional. De certa forma, a classificagao em nlveis acima decrita esta relacionada as dimens6es de significado previamente discutidas de "refer" e "proclaim" e "involved" e "uninvolved". As gradagoes alto, medio e baixo funcionam como pistas ('key' para Labove Fanshel, 1977) e um tom alto pode sugerir 'ha mais seguir', enquanto 0tom baixo implicaria 'isto foi ditonuma·situagao criada por algo que acabou preci- samel1teagora'.

o

uso de diferentes tons (keys) - alto, medio, baixo - po- de,dentro do sistema, estar relacionado com diferentes tipos

de estrutura (interrogativa, afirmativa e.negativa). Em cada tipo de estrutura pode-se ainda descrever uma serie de padroes, cada urn dos quais correspondera a diferentes inten90es do falante. No en1anto, mesmo considerando diferentes padroes dentro de cada estrutura torna-se diffcil (quando nao, impossl- vel) prever-se uma descri9ao de todos os padroes entoacio- nais de que0falante faz uso na lingua para exprimir diferentes inten90es. Para labov e Fanshel (op. cit.) e praticamente im- possivel prever-se urn numero deinterpretagoes de pistas pros6dicas que sejam Iivres do contexto.

Dada a natureza interacional do enfoque 0 modelo ofe- recido por Brazil parece 0 mais adequado para se estudar a questao pros6dica na·fala, buscando-se evid6ncias de que 0

1ipo de padrao entoacional usado na interagao podera forne- cer subsidiOs para os fenOmenos de continuidade e desconti- nuidade na fala, definindo quando, como e em que cir- cunstAncias0falante faz uso de processos pros6dicos para a

organizagao e compreensao da produg8o oral.

Comunica9ao apresentada no Grupo de Trabalho de Analise da Conversagao, no VII Encontro Nacional da ANPOLL, em Porto Alegre, julho de 1992.

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o

T~TRO DE ARIANO SUASSUNA

E A U1ERATURA POPULAR NORDESTINA

UMA POETICA DO PALIMPSESTO

Quando Ariano Suassuna entra, em 1946, na Faculdade de Direito do Recife - "para oferecer

a

(sua) mae um titulo de Doutor que a console de ter um filho escritor" - integra um grupo de jovens poetas, atores, pintores que, com 0 apoio de Hermilo Borba Filho, dez anos mais velho, se propoe a traba- Ihar e refletir em conjunto sobre a criaQaode uma arte dramati- ca nacional, refletindo os problemas, os interesses e a cultura do povo.

Este grupo, que funda no mesmo ana0Teatro do Estu-

dante de Pernambuco (T.E.P.), teve na opiniao do mesmo Hermilo, "uma funQAorevolucionaria, li.Jtandocontra a mercan- tilizaQao e 0 aburguesamento da arte [... ]. [0 T.E.P.] estimu- lou, fundou e enceriou as primeiras manifestaQoes de uma dramaturgia nordestina, que representa 0 que nossa tradiQao,

nossos contos e mitos, nosso romanceiro e nosso espfrito po- pulares t6m de mais verdadeiro e profundo".(1)

E0 primeiro trabalhp foi de pesquisa, de descoberta da

arte popular: nesse ana de 1946, Suassuna organiza um en- contra de cantadores no Teatro Santa Isabel; no ana seguinte, o T.E.P. realiza uma Mesa-Redonda com 0poeta Ascenso Fer- reira, 0 mamulenguelro Chelroso, 0 poeta popular Joso Mar- tins de Athayde, Fuzarca, um Velho de Pastoril, Antonio Perei- ra, mestre de umfamoso bumba-meu-boi, um cantador, um representante de circo ambulante, escritores e estudantes. Es-

18 "prlmeira Mesa-Redonda de teatro realizada no Brasil para tratar deespetaculos populares"(2)nos parece figurar, de modo quase emblematico, 0 que vem a ser 0 processo de criaQao, de escritura e representaQAodo teatro de Ariano Suassuna.

Muitos escritores recorreram

a

cultura popular e os re- glonalistas particularmente multiplicaram, nas suas obras, as refer6nclas populares. 0 teatro de Suassuna mantE~mcom a ar- te popular, e em especial com 0 folheto e 0 teatro popUlar,

uma relagao diferente: se procura urn " material bruto" a ser recriado com urn sentido mais amplo e universal(3),encontra neles tambem urn modele de escritura, que participa da elabo- ragao de uma nova poetica.

De Uma Mulher vestida de sol, que data de 1947, ate A Caseira e a Catarina, montada em 1962, estendem-se quinze anos de produgao, de vida teatral intensa, com quinze tftulos, entre entremeses e pegas, muitos deles premiados, urn sucesso nacional e internacional imediato, tres grupos de tea- tro Iigados

a

vida teatral do Recife:0TEP, ja citado, 0 Teatro Adolescente do Recife e, posteriormente, 0 Teatro Popular do

Nordeste -0TPN - e, ao longo desses quinze anos, a constan-

te e fraterna amizade com Hermilo Borba Filho,0alter ego, de tal modo Iigado a essa produgSo teatral que nenhum estudo da obra de urn deles pode deixar de mencionar0outro.

Nao falarei aqui da ultima pegs de Suassuna, As Con- chambranc;as de Quaderna que me parece ocupar urn espa- go peculiar, entre narrativa e teatro, e merecera urn estudo

a

parte, em outra oportunidade.

Para entender melhor 0 processo criativQ que funda 0

teatro de Suassuna, procuraremos esclarecer as suas relac;oes com as produgoes populares nos seus varios generos:

- 0romance tradicional iberico - 0folheto de feira

- 0teatro de mamulengo - 0bumba-meu-boi.

1. 0 primeiro, 0 romance tradicional, foi definido por

urn folclorista brasileiro como "poesia dramatica cantada"(4) que pode ser inclufda numa danga ou outra representagao po- pular sem modificar ou alterar a sua estrutura.

E

uma inclusao deste tipo que aparece no entremes 0 Homem da Vaca e 0 Poder da Fortuna, segundo 0 processo

do encaixe, da "pega dentro da pec;a". 0 caso e unico no tea- tro de Suassuna. 0 romance de Claramenina e Dom Carlos de Alencar, aqueles que "nu da cintura pra cima

I

nu da cintu- ra pra baixo

I

namoravam pra se casar" nao desempenha uma fungao narrativa precisa, mas introduz, alem do prazer estetico e experimental, um elemento de contraponto ideol6gico.

2. 0 folheto de feira constitui, sem duvida, urn dos elementos privilegiados na elaborac;aodo texto suassuniano.

No folheto, Suassuna encontra algumas matrizes narrati- vas, varias personagens e numerosos textos que aparecem ci- tados, as vezes in extenso.

2.1. 0 folheto como modele narrativo aparece em 0 Auto da Compadecida que recorre, em cada ato, a um ou va- rios folhetos:

- 0 primeiro ate retoma 0 Enterro do cachorro, parte do folheto 0 Dinheiro, de Leandro Gomes de Barros; - 0segundo ate segue0esquema narrativo da Hist6ria do cavalo que defecava dinheiro (anonimo), trans- formando 0equino em gato;

- e 0terceiro ate apoia-se em 0 Castigo da Soberba,

de Anselmo Vieira de Souza, e A Peleja da Alma, de Severino Piraua de Lima.

Em 0 Homem da Vaca e0 Poder da Fortuna, entrem~s

cujo subtftulo deixa clara a sua qualidade de "adapta<;ao" do folheto de mesmo tftulo, de Francisco Sales Areda, alam da es- trutura narrativa quase intacta, encontram-se varias cita<;6esdo folheto, as vezes explicitadas pelo processo de reescritura.

E

bom a gente ir cavar que um peba gordo a presunto.

Simao disse: mulherzinha melhor mude ~ste assunto porque buraco de peba a morada de defunto.

N6s vamos atras do peba Se perde nossa dormida ...

(5)

M. -

E

bom a gente ir cava-Io Que um peba gordo a presunto I S. - Voc~ esta doida, mulher

E

melhor mudar de assunto

o

povo diz, por af,

Que peba come defunto !

Depois, tem que ser de noite, perdemos nossa dormida I

(6) Os versos do folheto "buraco de peba / a morada de de- funto" sup6em uma comunidade cultural que compartilha das

mesmas crenQa$ quanta a alimenta~ao do tatupeba, tambem chamado de papa-defunto.

"N6s vamos atras do peba / se perde nossa dormida .. ." evidencia 0superfluo de qualquer informac;ao: oleitor/ouvln-

te popular sabe que este animal s6 pode ser cac;ado a noite. Ja 0 entrem~s explica estas evid~ncias para0Iitor/espectador da cidade, que nada sabe do campo e da cac;a:esse e urn dos principais problemas da passagem do texto popular na obra culta; retirando 0 texto do meio-ambiente cultural, comum ao poeta e ao seu publico, corre-se 0 risco de torna-Io parcial-

mente incompreensfvel ou simplesmente pitoresco.

2.2. Alem da matriz narrativa e/ou das eventuais ci- ta~oes,0folheto fornece ao teatro de Suassuna duas das suas

principais personagens, Joao Grilo, no Auto da Compadeci- da e Cancao em 0 Casamento Suspeitoso.

Os dois amarelinhos na~ sac transposic;oes mas verda- deiras recria~oes do her6i pfcaro. Assim Suassuna na~ recorre a nenhum dos folhetos onde estas personagens aparecem: em

o

Auto da Compadecida, Joao Grilo assume os atos atribuf- dos no folheto a outro; a Hberdade de criac;ao de Cancao e ainda maior porque a pec;a0 Casamento Suspeltoso na~ re- toma a estrutura narrativa de urn folheto.

Ao passar do folheto ao teatro, 0tipo do pfcaro (do ma-

landro, na terminologia de Roberto da Matta) se transforma. Permanece porem a caracterfstica primeira da personagem, a errAncia: iniciada por uma ruptura prematura da estrutura famI- liar, esta errAncia se manifesta por deslocamentos contfnuos, no espa~o, que permitem passar de urn epis6dio para0outro, adequando idealmente a personagem e a estrutura narrativa.

A construc;ao da maioria das pe~as de Suassuna retoma este modelo. Evidente no entrem~s, e dissimulado na pe~a pe- la reescritura e as vezes total reeI3bora~ao, pela interpene- tra~ao de alguns epis6dios e sobretudo pela unidade introdu- zida pela perspectiva moralizante.

A personagem do malandro desdobra-se: a dupla Joio Grilo/Chic6 ou Cancao/Gaspar corresponde a uma separac;ao da dupla personalidade do pfcaro: de urn lado () astucioso que sobrevive gra~~$asua intelig6ncia e vivacidade, do outro, o herdelro da sabedorla popular, expressa em proverbios e adivinha<;6es.

Chic6 e Gaspar falam em proverbios, como Simao em A Farsa da Boa Preguic;a, Pinhao em 0 Santo e a Porca, ou Benedito em A Pena e a Lei. A citac;ao proverbial vira caracte- rizac;ao da personagem mas, alem da conotac;ao popular, fun- ciona como instrumento de derrisao. Esta relac;ao de ironia op6e-se a confirmac;ao pelo mesmo ou pela analogia:

"A derrisao consiste na inversao, pelo proverbio, do con- teudo proposto de modo que urn registro segundo emerge do primeiro, deslocando e degradando-o, suge- rindo uma necessaria desconstruc;ao dos papais narrati- vos".(7)

Assim Gaspar resume a sua desconfia~a em relac;aoa vida e as mulheres pelo provarbio:

"Pau seco nao da embira, nem corda velha da n6"

o

proverbio denuncia 0 jogo de seduc;ao da burguesa atrafda pela novidade de urn amor "rustico", mas0 proverbio sera, por sua vez, desmontado e degradado, quando Gaspar sucombe a tentagao e reconhece finalmente:

"Agora pau da embira e corda velha da n6"(8)

Mais complexo ainda como personagem, Cancao apa- rece, em A Farsa da Boa Pieguic;a como 0verdadeiro .motor

da ac;ao, 0 homem astucioso e inteligente que sabe manobrar todos, mostrando-se venal com os corruptos, amistoso com os