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CAPÍTULO III – O CONCEITO DOS ESTUDANTES INTERNOS DE MEDICINA SOBRE

3.4 O discurso das causas da homossexualidade

3.4.2 Segunda linha: “Homossexual desde o nascimento, porém existe relação com as

A perspectiva da segunda linha de pensamento determinante é de que o indivíduo nasce homossexual, contudo o meio social em que ele ou ela está inserido pode influenciar na sua aceitação ou não aceitação sobre a sexualidade. Esta perspectiva foi pronunciada por quatro estudantes internos. Na sequência, seguem as falas:

Bernardo: Bem, sendo eu mesmo homossexual, eu sei que isso é uma coisa que

você não consegue modificar ou então que... Na realidade, eu concordo que você nasce, que existe um fator biológico envolvido muito importante, mas eu também acho que existe uma modulação, digamos assim, do meio social e familiar que influencia de certa forma a sua aceitação (...) Então, realmente, pra mim é uma orientação, é uma coisa que você já nasce orientado, predeterminado a fazer. Eu digo isso porque desde a infância eu tenho essa tendência, mas por questões sociais e familiares eu acho que não me aceitava completamente.

74 Bento: Eu acredito que sejam fatores biológicos, eu acredito que a própria genética

que influencia a parte hormonal que determina o ser macho e o ser fêmea. E eu acho que a gente expressa esse lado mais macho ou mais fêmea, intermediariamente, por determinações biológicas, eu acho que os hormônios estão envolvidos nisso aí. E é por isso que eu acredito que é sim determinado por fatores biológicos, portanto, não seria uma opção (...) Acho que você pode, de acordo com as determinações sociais, pela vergonha e tudo mais que há, pela repressão, você pode disfarçar, você pode não viver aquilo, mas assim eu acho que a sua sexualidade é uma coisa sua, é uma coisa íntima que ninguém modifica a não ser você mesmo.

Téo: Então, pra mim sempre foi algo que nasceu comigo e que a vida, à medida que

eu fui amadurecendo, eu fui meio que me orientando digamos assim a lidar com isso também, sabe? (...) Sabe quando você se percebe um lento processo de aceitação. Isso pode ser algo muito ruim, pode vir de uma maneira muito negativa, pode gerar um transtorno psicológico, pode. Eu conheço muita gente assim que teve fases de negação tremendas, muito grandes. Isso é conseqüência de uma tendência natural a se conflituar, sabe?

Bianca: Eu acho que a homossexualidade... A pessoa tem uma orientação, ela é, ela

nasce com aquela orientação sexual, é a orientação sexual da pessoa. E a pessoa, muitas vezes, até mesmo no contexto que ela vive não tem, não é propício para que ela desenvolva a homossexualidade dela. Sendo que ela, em algum momento da vida dela, vai se descobrir como ela realmente é. Eu acho, pra mim, que é uma orientação da pessoa, que tem outras influências, mas que na essência da pessoa a pessoa é homossexual.

Os discursos acima prosseguem corroborando com a perspectiva de que se nasce homossexual e, nesse sentido, determinantes biológicos seriam os fatores originários. Esse é o ponto de vista estruturante. Contudo, esses discentes internos afirmam que o meio social, representado pela família, amigos e as diversas instituições sociais, podem influenciar o homossexual a reprimir a homossexualidade. Nesse sentido, depreendemos que devido à intolerância social frente a esse exercício de sexualidade, os homossexuais “por natureza” tendem a não expressar a sexualidade que é inata, conforme o discurso dos internos. Ainda segundo eles, a conformidade com a homossexualidade dar-se-ia durante um processo de aceitação do homossexual para com a “sua” prática.

Das quatro declarações acima, as três primeiras são de internos (Bernardo, Bento e Téo) que se afirmaram homossexuais. Nesse momento, é importante atentarmos para as particularidades presentes nesses discursos, mas deixando evidente que tais peculiaridades não se distanciam de forma aguda do discurso de quem não se identifica como homossexual. Sendo assim, vamos a essas declarações.

Em primeiro lugar, quando esses internos afirmam que se nasce homossexual, eles remetem a experiências na infância.

Téo: Eu me lembro desde quando eu era bem novo assim, coisa de quando eu era

75 Bernardo: (...) desde a infância eu tenho essa tendência.

Essa experiência calcada na infância tende a supor que a homossexualidade é algo tão primitivo que uma possível justificativa seria acreditar que se nasce homossexual. Contudo, é preciso salientar que sim, desde a mais tenra idade, os indivíduos vão conhecendo e construindo seus gostos e seus desejos por meninos ou por meninas, não da forma como quando são adultos, mas são, sim, construídas e podem, inclusive, modificar-se ao longo do tempo. Sendo assim, ainda crianças esses sujeitos podem experimentar sensações de “estar à parte” ou “de não ser como os outros” (ERIBON, 2008, p. 121), uma vez que estão em um contexto social onde a norma é a heterossexualidade, que envolve padrões e comportamentos de gênero, por exemplo.

Nesse sentido, estamos trazendo essa reflexão para pensar sobre um outro aspecto presente no discursos desses internos: o momento em que eles afirmam que o meio social pode interferir na aceitação da homossexualidade que é “inata”, conforme do discurso desses internos. Conforme coloca Eribon, os homossexuais experimentam “o sentimento de ser diferente” (2008, p. 128). E isso é uma característica que os fazem esconder as suas preferências sexuais. Não poderíamos deixar de elucidar esses aspectos, mesmo que de forma sucinta, porque competem a discursos que carregam a subjetividade daqueles que se afirmam como homossexuais.

De modo geral e considerando o discurso dos quatro discentes dessa linha de pensamento, é pontual destacar como se mantém consistente no imaginário social a noção de que a homossexualidade é diferente, fora do padrão e tantos outros sinônimos correlatos, independente se a pessoa é ou não homossexual. A realidade dessa perspectiva subentende e reforça a existência de uma sexualidade padrão, a saber, a heterossexualidade. Sendo assim, as falas desses internos compreendem que a sexualidade é uma “descoberta” que se dá em meio a uma configuração de discursos preconceituosos, no qual o homossexual mesmo está inserido, ou seja, podendo ser parte integrante desse discurso. Por isso, o homossexual encontra-se em conflito, até chegar o momento em que este indivíduo consegue “aceitar” a “sua” homossexualidade.

Discorrendo ainda sobre as declarações, temos que apenas um estudante interno que compõe esta linha de discurso falou exatamente a respeito dos aspectos biológicos particulares que determinariam a “essência” da homossexualidade. Segundo a fala de Bento, “a própria genética que influencia a parte hormonal que determina o ser macho e o ser

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fêmea”. Para isso, ele acrescenta: “acho que os hormônios estão envolvidos nisso aí”. Essas declarações expõem duas perspectivas discursivas presentes na história dos discursos médicos para explicar as causa da homossexualidade: o ponto de vista da genética e o dos hormônios. Especialmente o campo dos estudos genéticos sobre comportamentos sexuais vem ganhando notabilidade e aderência nas últimas décadas.

Prosseguindo com a declaração referida sobre as causas da homossexualidade, Bento complementa: “eu acho que a gente expressa esse lado mais macho ou mais fêmea, intermediariamente, por determinações biológicas”. O que podemos concluir com isso? Ao afirmar que nos expressamos sexualmente de acordo com o sexo biológico (masculino ou feminino), o interno associa essas categorias à norma heterossexual. Desse modo, ser macho ou expressar um “lado mais macho” implica, dentre tantas características, associar o sexo masculino ao desejo e às relações sexuais com mulheres. Da mesma forma, ser fêmea ou expressar um lado “mais fêmea” implica relacionar o sexo feminino ao desejo e às práticas sexuais com homens.

Nesse sentido, o interno compactua com a suposição de que a homossexualidade seria uma “inversão de gênero” (ERIBON, 2008). Isto quer dizer que o homossexual masculino deve possuir atributos femininos causados por fatores genéticos e/ou hormonais, enquanto que a lésbica possui atributos masculinos provocado por fatores genéticos e/ou hormonais, conforme a fala do interno. Nesses termos a homossexualidade é pensada dentro do binarismo de gênero. Conforme destaca Louro, “no campo da sexualidade, operamos dentro da lógica binária e suportamos estender nosso pensamento aos sujeitos e às práticas que se relacionam a essa lógica” (2016, p.73).

De acordo com esse sentido atribuído para a homossexualidade, temos, de certa forma, um tipo de negação à ideia de que pessoas com gêneros iguais podem se atrair sexual e eroticamente. Mas onde estaria essa negação? A negação estaria presente no significado que revela que o homem gay, por exemplo, deve possuir uma “alteração” biológica em sua constituição que o torne efeminado. Logo, é preciso “ser” ou “ter’ caracteres femininos para gostar e se relacionar com homens. O mesmo vale para as mulheres lésbicas. Isto é, por natureza, para haver atração e desejo por mulheres, a mulher lésbica deve possuir algum caractere biológico masculino. Como vimos, as explicações biológicas são as mais variadas e, por vezes, apenas falar que “é da biologia humana” encerra a discussão em si mesma, tamanha a legitimidade que o discurso possui.

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