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Segunda fase do percurso museal da imaginária guarani em Porto Alegre: a doação de

A “guerra das imagens” travada entre espanhóis e indígenas do México colonial estabelecida a partir da substituição das deidades nativas por outras católicas naqueles mesmos espaços ocupados outrora por divindades Astecas, fazendo com que a deusa Toci-Tonantzin (Nossa Mãe) cedesse lugar à Virgem de Guadalupe na colina do Tepeyac, por exemplo, deixara claro já no século XVI que “a inserção da imagem num ambiente físico nunca é indiferente” (GRUZINSKI, 2006, p. 196). A territorialização do culto mariano no antigo santuário de Toci- Tonantzin jogava com as formas de apropriação dessa devoção, colocando em questão a construção social das representações no tempo e no espaço.

Em Porto Alegre, no Museu Júlio de Castilhos do início do século XX, esse jogo de apropriação e atribuição de sentidos a partir da inserção de imagens em determinados espaços

físicos não representou a instituição de um culto religioso, mas sim um momento específico das condições de existência (FISCHER, 2013) disso que é conhecido como escultura missioneira; um momento no qual foi possível revestir de um sentido – missioneiro - uma escultura cuja inserção no acervo do Museu Júlio de Castilhos é dúbia. A segunda forma de musealização de uma escultura sacra enunciada como missioneira também se constituiu como doação, caso esteja correto esse movimento particular do exercício de conferir inteligibilidade ao processo de formação da coleção de esculturas da imaginária guarani do Museu Júlio de Castilhos. A imagem sobre a qual é preciso pensar nesse momento é a de Senhor dos Passos, e sua musealização é fenômeno opaco, cujos contornos são mais presumidos do que afirmados. Mesmo assim, sua narrativa reveste-se de relevância na medida em que possibilita que se desnaturalize aquilo que é tido o óbvio já dado, para que se perceba as técnicas de produção das esculturas ora como objetos de arte, ora como objetos de história; ora como missioneiras, ora como puras relíquias de jesuítas, conforme será abordado ao longo deste trabalho.

Analisar, pois, a maneira como a escultura de Senhor dos Passos foi inserida no acervo do Museu Júlio de Castilhos e pode ser pensada como imagem missioneira, implica observar as condições que possibilitam constituir os objetos desta forma e não de outra. Numa exposição, os objetos são reunidos em conjunto a partir de chaves associativas – físicas, espaço-temporais, culturais - que consideram as suas características intrínsecas ou extrínsecas, e disso resulta uma produção de significados que se lhes são atribuídos (BLANCO, 2009). No caso da escultura Senhor dos Passos, sua exposição em meio a outras três esculturas com características físicas semelhantes, ou seja, imagens sacras talhadas em madeira policromada, apresenta-se como uma das condições a partir das quais Senhor dos Passos pode ser enunciada como imagem missioneira.

No catálogo da Exposição Agropecuária e Industrial de 1901 à página 382 é possível conferir a lista dos 37 objetos expostos por Salvador Pinheiro Machado naquele evento. Para citar alguns exemplos, figuram na lista “1 gato do mato empalhado”, “2 dentes de porco do mato”, “4 pedrinhas raras”, “03 dentes petrificados” e “uma serrilha de peixe”. Além destes, alguns artefatos dito “jesuíticos”, como “uma cadeira dos jesuítas”, “uma pia de pedra das ruínas da Igreja de S. Nicolau”, “1 santo (S. Pedro) escultura sobre madeira” e ao fim da lista, “2 imagens de madeira”. Sendo assim, nota-se que três esculturas em madeira foram expostas. Estas esculturas são as mesmas que constam na lista de transferência de peças ao Museu do Estado, realizada pela Comissão de Organização da Exposição, em 1903 sob a rubrica “doação de Salvador Pinheiro Machado”. Nesta lista, manuscrita em papel almaço pautado, na 16ª linha

consta “1Santo de madeira (S.Pedro)47 e, mais abaixo, na 25ª linha é feita a referência a “Duas imagens de madeira”.

Por outro lado, no Livro de Registro nº 1 do Acervo do Museu Júlio de Castilhos, às páginas 11 e 12 consta a inscrição de entrada de 04 esculturas de procedência missioneira em 1903, informação que causa certa estranheza se for levado em consideração o fato de que apenas três imagens foram expostas e posteriormente transferidas pela Comissão de Exposição ao Museu do Estado naquele ano. Uma análise mais minuciosa desse documento, entretanto, possibilita a percepção de um sinal que diferencia os quatro registros.

No apontamento das três esculturas doadas por Pinheiro Machado lê-se, ao lado da descrição do artefato, o nome do doador e o local de procedência da peça. O registro de uma única escultura - Senhor dos Passos - porém, é o único que não determina o nome de quem realizou a doação, assinalando apenas a procedência missioneira da escultura. Esquecimento de quem registrou as ofertas de Pinheiro Machado? Ou atitude deliberada de classificar aquele objeto como missioneiro, motivada por intenções quaisquer? O elemento que permite a formulação destas indagações consiste num ofício enviado ao Museu do Estado no dia 07 de abril de 1903 pelo diretor da Secretaria de Obras Públicas, onde este esclarece que “a fim de figurarem entre os objetos expostos nesse Museu, remeto-vos por ordem do Senhor Secretário, dois modelos de estátuas do Marechal Floriano Peixoto48, um santo esculpido em madeira e uma cadeira histórica” 49 (THIELKE, 2014). No livro tombo do acervo do museu, porém, no registro de entrada dos dois modelos da imagem de Floriano Peixoto consta 1904 como ano de doação dessas peças. No verso da página 13 do referido livro, foi registrada que na seção IV do museu, com o número 46 do catálogo de acervo “uma cópia do monumento do Marechal Floriano Peixoto vinda das Obras Públicas” e, com o número 47 “uma cópia da estátua do Marechal Floriano Peixoto vinda das Obras Públicas”. Nenhum apontamento há sobre o “santo esculpido em madeira” no livro tombo do acervo.

47 Uma análise da iconografia religiosa permite observar que em verdade trata-se de uma escultura de São

Francisco Xavier, e não de São Pedro. Nas representações religiosas, ambos os santos são relativamente parecidos, entretanto, São Pedro é representado segurando um molho de chaves e, normalmente, tem os olhos voltados ao Alto. Já São Francisco Xavier é representado segurando um cajado ou um crucifixo; as vestes usadas também o identificam. As características da escultura que se encontra no Museu Júlio de Castilhos a aproximam destas representações deste último santo, considerado um dos fundadores da Companhia de Jesus e Patrono Universal das Missões.

48Segundo presidente do Brasil, governou entre 23 de novembro de 1891 a 15 de novembro de 1894.

49 Museu Júlio de Castilhos. Ofício número 577 expedido pela Diretoria Central da Secretaria de Obras Públicas.

Ao que é possível supor, talvez a escultura de Senhor dos Passos foi doada não por Pinheiro Machado, mas sim pelo Secretário de Obras Públicas do Estado no mesmo ano em que as imagens missioneiras foram transferidas para o até então denominado Museu do Estado, haja vista ser a única peça que não contém o nome de seu doador, o que é observado a partir da intersecção entre o registro das peças no livro tombo do acervo, a listagem de objetos expostos em 1901 e a lista de transferência de objetos ao Museu do Estado em 1903, onde se lê que além da imagem de São Pedro outras “duas imagens de madeira” foram doadas. Entretanto, não se sabe até o presente momento que imagens eram essas. Alerta-se, pois, que a conjectura de que foi a escultura de Senhor dos Passos aquela doada pelo Secretário de Obras Públicas é uma assertiva provisória e sujeita à revisão.

No registro do acervo, a lista de esculturas doadas segue uma sequência que dá a entender que as 04 imagens foram doadas pela mesma pessoa, tendo inclusive a mesma procedência. Impossível saber se esse registro foi feito por descuido, desconhecimento ou vontade deliberada, mas o que ganha importância, nesse caso, é o fato de que uma vez registrada como objeto proveniente da região das Missões exposta juntamente com as outras esculturas, a imagem de Senhor dos Passos já é, com efeito, missioneira. O registro dessa escultura não é, entretanto, o único movimento transformador de sua especificidade. A exposição de Senhor dos Passos em uma sala que atualmente é designada Sala Missioneira é o segundo movimento que implica e reforça a atribuição deste sentido à imagem ainda hoje. Neste aspecto, cabe assinalar a exposição desta escultura juntamente com outras de mesma tipologia enquanto um dos procedimentos que definem as esculturas como imagens missioneiras (CERTEAU, 2014).

Jacques Aumont (1993) argumenta que a produção técnica e a produção social das imagens são duas instâncias nas quais seus significados são construídos. Neste aspecto, os pressupostos teóricos deste autor permitem pensar que as esculturas são aquilo que delas fazem as práticas institucionais. O caso particular da escultura Senhor dos Passos, registrada no livro de registro do acervo e exposta juntamente com outras esculturas de mesma tipologia e enunciadas como imagens missioneiras incita a pensar, pois, nas condições sob as quais os objetos são revestidos em determinados valores imanentes às relações sociais de determinada época.

Expostas na seção IV do ainda denominado Museu do Estado, juntamente com dois sinos jesuíticos em bronze, com bancos zoomorfos e demais objetos que, assim como as esculturas de Salvador Pinheiro Machado, também foram expostas no evento de 1901 e posteriormente transferidas para o museu. Assim, é provável que um valor artístico tenha sido

atribuídos às quatro esculturas nesses anos iniciais do Museu do Estado, cuja quarta seção era destinada às “Ciências, Artes e Documentos Históricos”, num período em que por ciências entendia-se as ciências naturais, e por documento histórico os documentos escritos e oficiais (BARROS, 2011). Essa organização das esculturas na IV Seção foi alterada nas décadas posteriores, na medida em que o próprio perfil institucional do museu foi transformado paulatinamente e mudanças na organização interna do museu foram processadas. Neste contexto, foram engendradas outras condições de possibilidade para que sentidos e valores diferentes pudessem ser atribuídos à imaginária guarani do Museu Júlio de Castilhos.

2.5 O Museu Júlio de Castilhos e imaginária guarani entre as décadas de 1920 e 1930