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Terceira fase do percurso museal da imaginária guarani em Porto Alegre: a compra de

As esculturas missioneiras estão inscritas na ordem do devir que as faz e desfaz incessantemente. Um devir que está relacionado tanto à instabilidade dos sentidos atribuídos aos artefatos culturais pelas distintas redes sociais que mantem relação com eles, quanto ao que Foucault (2010a; 2011a) chamou de poder-saber. Em seu percurso não apenas por diferentes lugares, mas, principalmente por distintos sentidos, as esculturas missioneiras - enquanto artefatos culturais que concorrem na construção da memória coletiva e das representações sobre o passado - dão a ver a pluralidade de elementos imbricados nos processos de atribuição de sentidos e de produção de diferentes narrativas sobre o passado.

Em 10 de outubro de 1936, o diretor do Museu Júlio de Castilhos, Sr. Alcides Maya73, recebeu uma carta assinada por Pedro Cesar de Oliveira - dono da Livraria Oliveira, em Porto Alegre – na qual era oferecida à venda ao Museu uma imagem de Nossa Senhora da Glória74, “de confecção jesuíta”, datada do século XVIII. De acordo com o relato do proponente,

73 Alcides Castilho Maya (1878-1944), jornalista, político, contista, romancista e ensaísta. Membro da Academia

Brasileira de Letras. Em Porto Alegre dirigiu o Museu Júlio de Castilhos em 1925, até se aposentar, e colaborou no Correio do Povo. Considerado por Veríssimo um dos “grandes amigos” da Livraria do Globo.

74 Embora na documentação sobre a compra da referida imagem, assim como na atual etiqueta que a identifica,

esteja a designação de Nossa Senhora da Glória, uma análise dos atributos da escultura permite afirmar que se trata representação de Nossa Senhora da Conceição.

“diversas pessoas foram convidadas a examinar a referida Imagem, e dentre elas, destaco o Revdo. Padre Luiz Jäeger75 S.J., profundo conhecedor e grande estudioso dos factos jesuíticos do nosso Estado”76.

O proponente destacou, ainda, que depois de demorada análise, o padre Jäeger afirmou que aquela escultura revelava a autoria de um grande artista identificado com meio ambiente, haja vista as feições indígenas do rosto de Nossa Senhora, assim como os detalhes dos ornamentos de suas vestes. Na opinião do padre - menciona o senhor Pedro Cesar de Oliveira – trata-se de um “objeto de grande valor artístico e histórico”77. Como preço a ser pago pela imagem, sugeriu a quantia de 10:000$000.

Em 27 de janeiro de 1937, por sua vez Alcides Maya escreveu um ofício ao Secretário da Educação, no qual apresentou a proposta de venda da imagem ao Museu, e afirmou ser aquele um “exemplar histórico de alto valor”78. Nas palavras do diretor “trata-se de facto de uma relíquia não só de valor histórico como também de arte Rio-grandense”79. Por se tratar de “um exemplar raro e de alto valor histórico”, Maya julgou ser razoável o valor proposto pelo vendedor. Em 10 de março de 1937 a referida imagem foi adquirida pelo Estado, conforme ofício número 629 da Secretaria de Educação80. Com essa compra, estava completo o conjunto de cinco esculturas jesuítico-guaranis que fazem parte do acervo do Museu Júlio de Castilhos. A compra da escultura de Nossa Senhora da Conceição deu-se num período assinalado por debates entre os intelectuais gaúchos a respeito do lugar das Missões no processo de formação histórica do Rio Grande do Sul. De acordo com os estudos sobre historiografia gaúcha desenvolvidos pela historiadora Ieda Gutfreind na década de 1990, identifica-se três fases da produção historiográfica no estado. A primeira delas, localizada no século XIX, caracterizou- se pelo desenvolvimento de estudos centrados na explicação sobre a colonização portuguesa no sul, a descrição geográfica, climática, dos recursos materiais e das potencialidades do estado no

75 Padre jesuíta nascido na cidade gaúcha de Ivoti em 10 de julho de 1889 dedicou-se aos estudos sobre a

Companhia de Jesus e sua ação missionária junto aos guaranis aldeados entre os séculos XVII e XVIII, sendo considerado, ainda hoje, um profundo conhecedor do assunto. Foi sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, professor do Colégio Anchieta, em Porto Alegre, e fundador do Instituto Anchietano de Pesquisas.

76 Correspondência assinada por Pedro César de Oliveira em 10/10/1936. Fonte: Arquivo permanente do Museu

Júlio de Castilhos. Livro de Ofícios recebidos, 1936. Porto Alegre, RS.

77 Correspondência assinada por Pedro César de Oliveira. Fonte: Arquivo Permanente do Museu Júlio de Castilhos

em 10/10/1936. Livro de Ofícios recebidos, 1936. Porto Alegre, RS.

78Ofício remetido ao Secretário da Educação em 27/01/1937. Arquivo Permanente do Museu Júlio de Castilhos.

Livro de Ofícios Expedidos. Porto Alegre, RS.

79 Ofício remetido ao Secretário da Educação em 27/01/1937. Arquivo Permanente do Museu Júlio de Castilhos.

Livro de Ofícios Expedidos. Porto Alegre, RS.

plano econômico e social. Dentre os historiadores do início do século XIX, estão José Feliciano Fernandes com sua obra “Anais da Província de São Pedro” e Antônio José Gonçalves Chaves, com a obra “Memórias ecônomo-políticas sobre administração pública no Brasil”, considerados precursores da matriz historiográfica lusitana que se desenvolve com maior força a partir da década de 1920.

A partir do final do século XIX e início do século XX o discurso historiográfico gaúcho muda de direção. A naturalidade com que eram vistas as relações do Rio Grande do Sul com áreas de influência platina e lusitana cede espaço para a formação de um grupo de historiadores que valoriza as relações do Rio Grande do Sul com o Prata. Os três principais nomes desse grupo são Alcides Lima81, Assis Brasil82 e Alfredo Varella83, cujos posicionamentos teóricos sobre a identidade do gaúcho e a formação histórica do Rio Grande do Sul serão criticados em anos posteriores. Varella defendia semelhanças entre o gaúcho e os tipos sociais uruguaio e argentino. Em relação às Missões na formação histórica do Rio Grande do Sul, sustentava uma grande influência étnica e social do índio missioneiro nesse processo.

Outros nomes representativos dessa matriz historiográfica foram Carlos Teschauer e Luiz Gonzaga Jäeger – quem avalizou a procedência escultura de Nossa Senhora da Conceição comprada em 1937 -, autores cujas obras deixam entrever vários elementos que configuram uma explicação do processo de desenvolvimento do Rio Grande do Sul centrado na ação dos jesuítas. O próprio Teschauer era jesuíta e desenvolveu um trabalho respaldado em documentos inéditos a partir dos quais incorporou ao debate historiográfico rio-grandense a temática missioneira (FLORES, 1989). Dois foram seus trabalhos de referência: “História do Rio Grande do Sul nos dois primeiros séculos” livro editado em 1921, no qual descreve a formação histórica do Rio Grande do Sul relacionando-a com os trabalhos apostólicos da Companhia de Jesus, e “Vida e obra do padre Roque Gonzáles de Santa Cruz, S.J., primeiro apóstolo do Rio Grande do Sul”, publicado este na revista do IHGRGS em 1928. O objetivo deste ensaio foi o de traçar a biografia do padre Roque, salientando sua santidade (FLORES, 1989). Para o autor, a “ocupação missioneira precedeu outras modalidades civilizatórias”, uma vez que antes da ação bandeirante em território rio-grandense, Roque Gonzáles já havia devastado a região no início do século XVII (TORRES, 1997).

81 Alcides de Mendonça Lima (1859-1935). Historiador gaúcho cuja obra de referência é “História popular do Rio

Grande”, editada em 1882.

82 Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938). Político, historiador, pecuarista e diplomata.

83 Alfredo Augusto Varela (1864-1943). Historiador gaúcho. Sua principal obra é “História da Grande Revolução”,

Por sua vez, Luiz Gonzaga Jäeger, a partir do embasamento encontrado na documentação jesuítica e na obra do padre Antônio Sepp, descreve a primeira fase de formação dos povoados jesuítico-guaranis, sua destruição e posterior retomada na atividade catequética durante o segundo ciclo missioneiro (FLORES, 1989). Os heróis e os indolentes da história missioneira são caracterizados por Jäeger no conjunto de sua obra, de forma que aos jesuítas era conferido o papel de bons, os maus eram os bandeirantes, e os indígenas figuravam como indolentes (TORRES, 1997). A característica fundamental dos trabalhos de Jaeger é a noção de que os padres da Companhia de Jesus não tinham nacionalidade e, por isso não interessava a qual governo juravam fidelidade. Percebe-se, portanto, nas obras dos dois autores, que o domínio espanhol da região noroeste do Estado onde se desenvolveram as Reduções Jesuítico- Guaranis continuava sendo recalcado na historiografia, em detrimento de uma ênfase no trabalho civilizador dos padres inacianos.

A partir de 1920 identifica-se o terceiro momento da produção historiográfica gaúcha, com a formação de um grupo de historiadores que enfatizava a origem lusitana do estado e no sentimento de brasilidade de seus habitantes. O compromisso assumido pelos historiadores que se identificavam com essa matriz foi o de pesquisar os fatos históricos do Rio Grande do Sul, sobretudo a respeito da Revolução Farroupilha, nos documentos oficiais guardados em arquivos nacionais. Já o esforço intelectual que marca essa tarefa era o de criar uma representação do Rio Grande do Sul à semelhança do Brasil. Nomes como Aurélio Porto84, Emílio Fernandes de Souza Docca85, Othelo Rosa86 e Moysés Vellinho87, passaram a enfatizar com maior extensão de ideias a noção de brasilidade do Rio Grande do Sul.

Nas décadas posteriores a 1920 os debates entre os intelectuais identificados com as duas matrizes historiográficas de pensamento não se esgotaram (GUTFREIND, 1992). Em relação ao Museu Júlio de Castilhos, desde 1925 um manifesto interesse pelo passado regional, resultou na transformação do seu perfil institucional, consolidada na década de 1950, e que configurou o Museu Júlio de Castilhos como museu histórico (SILVA, 2018). O processo de

84 Político, escritor e historiador brasileiro, trabalhou no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, no

Arquivo Nacional e no Arquivo do Itamarati. Atuou também como jornalista nos jornais A Federação, entre 1925 e 1930, Diário de Notícias, de 1927 a 1928 e Jornal da Manhã. Como historiador, escreveu “As Missões Orientais do Uruguai”, obra editada em 1943.

85 Escritor, historiador e militar gaúcho, nascido em São Borja em 16 de julho de 1884. Faleceu no Rio de Janeiro

em 21 de maio de 1945. Pertenceu ao IHGRGS e à Academia Rio-grandense de Letras.

86 Othelo Rodrigues Rosa, jornalista, escritor, poeta, historiador e promotor gaúcho nascido em Montenegro em

18 de julho de 1889. Seu falecimento deu-se em Porto Alegre, em 4 de dezembro de 1956.

87 Moisés de Morais Vellinho nasceu em 6 de janeiro de 1902 na cidade de Santa Maria. Dedicou-se ao jornalismo,

compra da imagem de Nossa Senhora da Conceição como um objeto “de confecção jesuíta” dotado de “raro e de alto valor histórico” não apenas esteve em sintonia com esse movimento institucional, como também definiu naquele momento valores atribuídos não apenas àquela imagem, mas também às demais que já faziam parte do acervo da instituição.

Entretanto, as esculturas missioneiras não são entidades abstratas com sentidos e valores estáveis (CHARTIER, 1990). No ano de 1941 o Museu das Missões já havia sido inaugurado no atual município de São Miguel88, com o objetivo de salvaguardar e expor especificamente os objetos remanescentes do período reducional encontrados pela região em estado de abandono, conforme será abordado no quarto capítulo deste trabalho. Parte de seu acervo havia sido recolhido em 1937, muito embora a coleta de peças fosse realizada nos anos posteriores à criação do Museu. Em 1941, Leônidas Cheferrino – representante da 7ª Região Administrativa do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan)89 – enviou um ofício à Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde do Rio Grande do Sul solicitando a relação dos objetos missioneiros que pertenciam ao acervo do Museu Júlio de Castilhos90, uma vez que a intenção de Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro presidente do Sphan91, era a de incorporar essas peças ao acervo do Museu das Missões. No dia 04 de abril, o oficial administrativo do Museu Júlio de Castilhos remeteu a resposta da solicitação. Afirmou o oficial que

Revendo o Livro de Registro Geral deste Museu, verifiquei os seguintes assentamentos:

1 – Imagem de Senhor dos Passos, esculpida em madeira; 1 – S. Francisco Xavier, esculpida em madeira;

2 – Anjos, esculpidos em madeira; 4 – Sinos da catedral das missões; 1 – Rosário;

1 – Campainha pequena;

1 - cadeira jesuítica, doados pelo extinto general Salvador Pinheiro Machado, no ano de 1903, época da fundação deste Museu.

Outra campainha e um par de colunas de madeira, doados pela Intendência de S. Luiz das Missões, também em 1903, um livro jesuítico escrito em couro, doado por Francisco José dos Santos, em 1903, e, finalmente uma Nossa Senhora esculpida em madeira, adquirida por compra na importância de

88 São Miguel das Missões pertenceu à Santo Ângelo até 25 de abril de 1988, data de sua emancipação político-

administrativa.

89 O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) foi criado pela Lei número 378 de 13 de janeiro

de 1937 com a “finalidade de promover em todo o País, de modo permanente o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional” (Lei 378/1937, art. 46). A 7ª Região Administrativa do Sphan abrangia os Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e seu escritório técnico se localizava em Porto Alegre. Cf. FONSECA, 2009.

90 Arquivo Permanente do Museu Júlio de Castilhos. Livro de Ofícios Recebidos, 1941. Porto Alegre, RS. 91 Rodrigo Melo Franco de Andrade foi jornalista, advogado e escritor nascido em Belo Horizonte. Atuou na

10:000$000, do proprietário da Livraria Oliveira, desta capital, Sr. Pedro Cesar de Oliveira92.

Em 25 de abril o então diretor do Museu Júlio de Castilhos – Emílio Kemp – recebeu um novo ofício da Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública. De ordem do Secretário, a direção do Museu deveria proceder à entrega ao Serviço do Patrimônio, por seu representante devidamente credenciado, “das imagens e objetos requisitados para o Museu S. Miguel, (...) excluindo-se a imagem de Nossa Senhora, adquirida ao Sr. Pedro Oliveira, por ser a mesma de procedência discutível”93. Mediante essa determinação, Emilio Kemp se pronunciou afirmando que

as doações foram feitas para o Estado, visando este Museu que foi fundado em 1903, havendo, por tanto, o intuito dos doadores que eles ficassem pertencendo ao Estado e enriquecendo as coleções deste Museu. A Imagem de N. Senhora, que é uma representação do quadro de Murillo “Ascenção de N. Senhora” foi adquirida nesta capital e a sua perfeição como obra de talha revela a arte portuguesa celebre nesse particular. Não tem ela nenhum indicio de ter sido executada nas Missões. É uma imagem do mesmo valor das que se encontram na Matriz do Rio Pardo e que são preciosas obras de talha portuguesa. Ao Museu pertencem por doação a maioria das Imagens e objetos reclamados e por compra a Imagem de N. Senhora. Parece que ele deve conservar o que lhe foi doado, tanto mais que os doadores já não existem e mais o que comprou sem que haja nenhuma prova de que a Imagem de N. Senhora tivesse pertencido ou tenha vindo das Missões94.

Desconhece-se até o presente momento quais fundamentos foram utilizados por Emílio Kemp para afirmar que a escultura de Nossa Senhora da Conceição fosse uma representação da escultura de Murillo95. Talvez Emílio Kemp desconhecesse a justificativa que embasara a compra da referida escultura em 1937 e que ficara registrada nos assentos administrativos do Museu. Ou, então, quisera por algum motivo particular reforçar a ideia de “procedência discutível” da imagem. Conjecturas que, diante da inexistência de documentos que permitam uma leitura mais aproximada desse episódio e mesmo da impossibilidade de se conhecer o passado em sua totalidade, acabam sendo criadas pelo pensamento imaginativo que acompanha os historiadores. Inócua, portanto, a tentativa de compreender, seja a afirmação do agente do Sphan de que a procedência da escultura era discutível – e os fundamentos de tal assertiva -,

92 Informação número 40, de 04/04/1941. Fonte: Arquivo Permanente do Museu Júlio de Castilhos. Livro de

Ofícios Expedidos, 1941. Porto Alegre, RS.

93 Ofício número 381, assinado em 25/04/1941. Fonte: Arquivo Permanente do Museu Júlio de Castilhos. Livro

de Ofícios Recebidos, 1941. Porto Alegre, RS.

94 Informação número 40A, assinada por Emílio Kemp, s/d. Fonte: Arquivo Permanente do Museu Júlio de

Castilhos. Livro de Ofícios Expedidos, 1941. Porto Alegre, RS.

95 Bartolomé Esteban Murillo, nascido em Sevilha no ano de 1618, é considerado o pintor que melhor define o

seja as intenções de Kemp ao ratificar que nenhum registro havia de que a escultura em questão fosse missioneira.

Entretanto, é preciso deixar de lado a busca pelas intenções dos sujeitos e voltar a atenção para os efeitos que essas relações de forças mobilizadas entre as duas instituições produziram sob as formas de enunciar a imaginária guarani no Museu Júlio de Castilhos. O que deveras importa, neste caso, diz respeito à produção da escultura de Nossa Senhora da Conceição – e de todas as outras esculturas – como imagem remanescente dos antigos povos jesuítico-guaranis, e os modos como ela foi dada a ver. Mesmo que nenhum indício houvesse da procedência missioneira de tal escultura, ela estava exposta desde 1937 na Seção de História Nacional juntamente com outras quatro imagens sacras em madeira, com “sinos da catedral das Missões” e uma “cadeira jesuítica”, por exemplo, o que se configura como prática de enunciação da imagem (FOUCAULT, 2009a; 2009b) como remanescente do período reducional.

O que a questão da escultura de Nossa Senhora da Conceição estabelece são duas cenas enunciativas assinaladas pelas relações de poder-saber e que evidenciam as esculturas missioneiras – na medida em que são objetivadas dessa forma – como correlatos de práticas sociais históricas. A escultura de Nossa Senhora da Conceição – assim como se observou em relação à escultura de Senhor dos Passos - não preexiste como escultura missioneira fora de operações específicas, tais como a avaliação de um padre jesuíta sobre a autenticidade da peça; a compra justificada na importância, raridade e antiguidade da peça; o registro no livro tombo do acervo como peça proveniente das Missões e, sobretudo, sua exposição juntamente com as outras esculturas a partir de uma mesma chave associativa (BLANCO, 2009).

Nessa rede de operações, é preciso ocupar determinadas posições para que os sujeitos possam enunciar a imaginária guarani de um modo e não de outro, daí o poder de nomear as esculturas, ou seja, de constituí-las. No interior das relações de poder-saber em torno da procedência da escultura em referência, um processo de intercâmbio entre autoridade e competência pode ser observado, na medida em que os sujeitos que se pronunciaram sobre a origem da peça, assim o fizeram em nome do lugar de fala que ocupavam. A autoridade profissional conferida pelo Museu Júlio de Castilhos e pela Sphan, enquanto instituições socialmente reconhecidas, aos sujeitos inscritos em seus quadros, permitiu a expressão de um discurso que não era propriamente o do seu saber ou competência técnica, mas sim o da ordem institucional (CERTEAU, 2014).

Tal querela sobre a procedência da escultura de Nossa Senhora da Conceição assinalou o ano de 1941, já na gestão de Emílio Kemp na diretoria do Museu Júlio de Castilhos, que permaneceu fechado ao público durante quatorze anos (1925-1939), mantendo apenas o atendimento aos pesquisadores e as chamadas conferências histórico-científicas. Com a reabertura da instituição, foi realizada uma reorganização das coleções de seu acervo através da criação de novas salas expositivas e de reformas na estrutura do prédio do museu executadas pela Secretaria de Obras Públicas. Em 1947, a organização do Museu Júlio de Castilhos era