• Nenhum resultado encontrado

2. Enquadramento Teórico

2.3 Segurança do doente

Nas últimas décadas as questões que envolvem a segurança do doente (SD), nomeadamente as relacionadas com a ocorrência de eventos adversos EAs, foram reconhecidas como extremamente relevantes tendo-se tornado uma preocupação real para os utentes, mas também para os diversos sistemas de saúde e seus responsáveis (Sousa et al. 2009; Carneiro, 2010). A OCDE em 2006, definiu a segurança do doente como uma de cinco prioridades, com vinte e uma recomendações, tendo levado à implementação de programas de segurança do doente por todo o mundo (Matke; Epstein; Leatherman, 2006;

25 Aloqbi, 2008). A segurança do doente assume actualmente uma importância relevante no que diz respeito à prestação de cuidados de saúde, sendo fundamental na sua prestação e um componente critico na gestão da qualidade. A SD envolve uma ampla área de acção, desde a segurança ambiental e gestão de risco, incluindo o controlo de infecções, segurança na utilização de medicamentos, de equipamentos, na prática clinica, na segurança do prestador e no ambiente envolvente à prestação de cuidados de saúde. A melhoria da SD requer, por isso, uma abordagem holística e integrada para dessa forma permitir identificar e gerir os riscos para a segurança dos doentes, assim como permitir a definição de soluções de longo prazo (Leape et al.,1991; WHO, 2002b; Uva et al., 2008). De acordo com Uva; Sousa; Serranheira, (2010) o seu principal objectivo é “evitar a ocorrência do problema ou acontecimento adverso, resultante de condições latentes do ambiente de trabalho ou de erros humanos, que possam originar incidentes e/ou acidentes com consequências negativas e/ou danos para a segurança e/ou saúde do doente”.

A evolução do conceito de segurança

A WHO (2009) define a segurança do doente como “ a redução do risco de danos desnecessários associados aos cuidados de saúde para um nível mínimo aceitável. Esse nível mínimo aceitável tem em conta o conhecimento actual sobre o mesmo, os recursos disponíveis, o contexto em que os cuidados foram prestados e a ponderação do risco de não tratamento ou de outro tratamento”. Esta definição destaca a SD como um aspecto fundamental da qualidade em saúde e chama à atenção para a relevância dos eventos adversos enquanto foco principal da SD.

De acordo com a Universidade da Califórnia (São Francisco, 2001) a segurança do doente inclui os processos ou estruturas cuja aplicação diminui a probabilidade de ocorrência de eventos adversos, associados à utilização do sistema de prestação de cuidados de saúde. Desde a década de 90, com a publicação de vários estudos, dos quais se destaca o da Harvard Medical Pratice Study (Leape et al., 1991, Leape,1994b) o tema dos eventos adversos (EAs) passou a ser um assunto relevante e a fazer parte da agenda política dos países mais evoluídos, como é o caso dos EUA, Reino Unido, Canadá, Holanda, Austrália, passando a ser um assunto central de debate na opinião pública.

Em 1999 o Institute Of Medicine Americano (IOM) publicou o livro To err is Human (IOM, 2000), onde baseado no estudo da Harvard Medical Practice Study (HMPS) concluiu que em cada ano, nos EUA, morriam entre 44 e 98 mil americanos devido a erros no sistema de saúde. Um tão elevado número de mortes representava a oitava causa de morte nos EUA,

26 superior ao número de mortes por SIDA ou acidentes de viação e naturalmente contribuíam bastante para a despesa em saúde. McGlynn et al., (2003) concluiram ainda que a desadequação dos cuidados médicos, ou a sua incorrecta utilização, por mau uso, por defeito ou por excesso, era responsável por cerca de 50% dessas mortes.

Com a publicação do livro To Err is Human, a questão da SD passou a estar na primeira linha das preocupações e da agenda política. A quinquagésima quinta World Health Assembly (WHA) propôs em Maio de 2002, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) definisse e implementasse normas e práticas globais de segurança do doente, tendo para esse efeito sido criada pela OMS a World Alliance for Patient Safety (WAPS) em 2004, com o objectivo de apoiar os estados membros no desenvolvimento de políticas públicas e incitar às boas práticas assistenciais (WAPS, 2005), bem como despertar da consciência profissional e o comprometimento político para as questões da segurança do doente, tendo ainda consagrado a segurança nos cuidados de saúde, como um direito fundamental dos cidadãos europeus.

Em 2005 a WAPS, criou um programa denominado International Classification for Patient Safety, com o objectivo de desenvolver uma classificação internacional de SD que permita a categorização da informação sobre SD, utilizando conceitos comuns, bem como a sua comparação, monitorização, análise e interpretação, para dessa forma permitir a melhoria na prestação de cuidados de saúde (WHO, 2009). No âmbito deste programa todos os anos são lançados diferentes programas, por todo o mundo, visando a melhoria da segurança do doente.

O trabalho desenvolvido pela WAPS, tem-se focado em várias áreas, sendo as mais relevantes as relacionadas com a higienização das mãos, procedimentos clínicos e cirúrgicos seguros; segurança do sangue e hemoderivados; administração segura de injectáveis e os relacionados com a segurança da água, saneamento básico e manuseamento de resíduos (WAPS, 2005). De acordo com o Council of Europe (2006) a SD deve ser o principal alicerce onde assenta a qualidade dos cuidados de saúde, devendo ir buscar a informação a sistemas de notificação (reclamações e queixas, incidentes e complicações notificadas pelos profissionais) devendo fazer parte de um programa integrado de melhoria contínua da qualidade.

Foram criados em vários países organismos vocacionados para o estudo da SD. A titulo de exemplo referimos os EUA, onde foi criada em 1997, a National Patient Safety Foundation e a Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) que juntaram esforços na procura

27 de novas soluções e na definição de medidas que visem melhorar a SD. Em Inglaterra, no âmbito do ministério da saúde, foi criado o National Patient Safety Agency (NPSA) e foi desenvolvido um sistema de notificação com medidas de desempenho e performance. Também em Portugal foi criado em 2009 e integrado na DGS, o departamento de qualidade, no âmbito do qual foi incluído o Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e Eventos Adversos (SNNIEA).

O conselho da Europa em 2006 reconheceu que os princípios do SD deveriam ser transversais a todos os níveis de prestação de cuidados, ou seja deveriam ser aplicados desde os cuidados primários até aos cuidados terciários. Nessa medida, os membros do comité elaboraram e enviaram um relatório a todos os estados membros da União Europeia com recomendações relativas à monitorização da SD e à prevenção de EAs nos cuidados de saúde. As recomendações constantes desse relatório são os seguintes:

I. Garantir que a SD é o tema fundamental de todas as políticas de saúde relevantes, em especial das políticas de melhoria da qualidade;

II. Desenvolver uma política de SD coerente e compreensiva, que promova a cultura de segurança, com uma abordagem pró-ativa e preventiva na concepção de sistemas de saúde para a SD;

III. Promover o desenvolvimento de sistemas de notificação de incidentes em SD para impulsionar a segurança através da aprendizagem, sendo que estes sistemas não devem ser punitivos, devem ser justos nos seus objectivos, independentes de outros processos reguladores e concebidos de forma a motivar os profissionais para a notificação de incidentes na segurança (notificação voluntária, anónima e confidencial). Deve ainda ser estabelecido um sistema de notificação para a colheita e análise de EAs a nível local, que permita a agregação a nível regional e nacional, envolvendo os setores público e privado e possibilitando o envolvimento dos doentes, familiares e outros profissionais, ligados direta ou indiretamente aos cuidados de saúde;

IV. Rever o papel e a utilidade de outras fontes de dados como fonte complementar de informação sobre SD, tais como as reclamações dos doentes, as bases de dados clínicas e sistemas de monitorização;

V. Promover o desenvolvimento de programas educacionais e disponibilizá-los a todos os profissionais, incluindo gestores, para melhorar a compreensão das decisões

28 médicas, a segurança, a gestão do risco e as abordagens apropriadas nos casos de EAs;

VI. Desenvolver indicadores de SD válidos e de confiança que possam ser usados na identificação de problemas de segurança, na avaliação da efetividade das intervenções, visando facilitar as comparações a nível internacional;

VII. Cooperar na elaboração de uma plataforma internacional para partilhar experiências e conhecimento sobre todos os aspectos da SD;

VIII. Promover a investigação sobre SD;

IX. Elaborar relatórios regulares dos programas e intervenções realizados a nível nacional para melhorar a SD;

X. Desenvolver e adequar estratégias para a implementação local das recomendações mencionadas anteriormente, e encorajar a aplicação dos métodos sugeridos na prática clínica diária.

Com base nestas recomendações o Council of Europe (2006) considerou que a SD deveria constituir a base da qualidade dos cuidados de saúde, devendo utilizar a informação dos vários sistemas de notificação (reclamações e queixas, incidentes e complicações notificados pelos profissionais), como parte integrante do programa de melhoria contínua da qualidade.

A SD assume actualmente um grande relevância não apenas para os profissionais mas também para os pacientes e seus familiares, na medida em que permite o desenvolvimento de um maior nível de segurança e confiança na prestação de cuidados.

No entanto a falta de segurança dos doentes tem consequências nefastas para as organizações de saúde, os profissionais e principalmente para os doentes, que a elas recorrem. A falta de SD pode ter implicações a três níveis: i) perda de confiança por parte dos profissionais e dos pacientes nas organizações de saúde e nos seus profissionais, com a consequente deterioração das relações entre estas entidades e os utentes; ii) aumento dos custos sociais e económicos, em função dos danos causados e; iii) redução da possibilidade das organizações poderem alcançar os outcomes (resultados) esperados, com impacto directo na qualidade dos cuidados prestados (Arah e Klazinga, 2004; Wears, 2004).

29 A abordagem inerente à SD embora sendo um tema bem delimitado e preciso, o que teóricamente facilitaria a sua análise e identificação de modo a diminuir ou eliminar falhas na prestação de cuidados de saúde (Sousa, 2006), é na verdade uma questão de elevada complexidade, devido aos vários factores que envolvem as situações associadas às “falhas” de segurança, à complexidade das organizações de saúde, à receptividade dos vários intervenientes e à sensibilidade do tema (Sousa, 2006; Leape,1994). Só recentemente se tem abordado a questão da SD de forma sistémica e prospectiva incorporando todos os factores que poderão contribuir para a diminuição da SD (Carneiro 2010). Esta abordagem mais holística obriga a definir metodologias específicas e a estabelecer conceitos próprios, facilitando a compreensão para as necessidades existentes ou o desenvolvimento de intervenções previstas ou necessárias (Carneiro, 2010).

De acordo com vários autores a investigação em SD é fragmentada e pouco valorizada (Bates et al., 2009) devido ao facto da informação ser escassa, inadequada e difícil de obter, na medida em que esta é uma área recente e multidisciplinar, sem uma estrutura de investigadores com dimensão e competência para o seu estudo. Adicionalmente o financiamento é insuficiente e existem limitações no planeamento e na definição das áreas prioritárias a investigar, resultantes também das diferentes abordagens metodológicas existentes e da complexidade e sensibilidade do assunto.

Sendo a SD uma área vasta é fundamental priorizar metas e objectivos. Nessa medida tem especial relevância o conhecimento epidemiológico (que inclui a frequência, as causas, a tipologia e o impacto) e o desenvolvimento e implementação de soluções inovadoras, diminuindo assim o risco e aumentando a segurança (Webster e Anderson, 2002; Tamuz; Thomas; François, 2004; Ahluwalia e Marriot, 2005; Sousa, Uva; Serranheira, 2011; Ginsburg et al, 2008 citado por Carneiro 2010). Com a aquisição de conhecimento, é possivel detectar as áreas de maior risco, conhecer o número de incidentes de modo sistemático, melhorar as técnicas disponíveis e determinar o impacto dos acidentes com o intuito de definir o que deve ser considerado como evento minor e evento grave (Ahluwalia e Marriot, 2005). A utilização desta metodologia permitirá de acordo com Sousa et al, (2010) disseminar e implementar acções de melhoria na prestação de cuidados e apoiar as tomadas de decisão em termos clínicos e políticos.

Em resumo, as questões que envolvem a SD suscitam cada vez mais preocupação à população em geral e ao poder político. Nessa medida diferentes governos desenvolveram acções que permitem dar uma maior relevância a esta questão. Sousa refere alguns exemplos de acções implementadas: “criação de agências especializadas para estudar a

30 propor medidas no sentido de inverter a situação, implantação de sistemas nacionais de carácter voluntário de notificação de eventos adversos; promoção de cultura de aprendizagem, em detrimento de uma cultura de culpabilização; enfoque na análise das raízes do problema e o reforço de liderança e envolvimento de todos os actores que intervêm no processo de prestação de cuidados de saúde” (Sousa, 2006).

Portugal

A realidade da SD em Portugal difere um pouco da de outros países desenvolvidos, como o Reino Unido, a Dinamarca ou a Austrália. De acordo com Sousa (2006), em Portugal não existe ainda uma estratégia nacional explícita, que permita conhecer em profundidade a verdadeira dimensão do problema e a partir daí a definição de estratégias adequadas para corrigir as falhas identificadas e promover a melhoria contínua dos aspectos relacionados com a SD. De acordo com o mesmo autor as razões que contribuem para essa realidade são: a ausência de normas gerais e /ou específicas para analisar as causas e reduzir ou suprimir as falhas que podem desencadear a ocorrência de EAs; a inexistência de um sistema nacional de notificação de EAs (entretanto criado, em 2012, e integrado no departamento de qualidade e segurança da DGS). e o predomínio de uma cultura de culpabilização e penalização pela ocorrência do EA, em detrimento de uma cultura de análise e aprendizagem a partir dos mesmos. Importa ainda referir também que a formação dos profissionais de saúde no que diz respeito à SD e qualidade em saúde, ainda não faz parte integrante obrigatório dos conteúdos dos currículos, de forma organizada e sistematizada (Sousa, Uva, Serranheira, 2011b).

Na sequência da criação em 2009, do departamento de qualidade e segurança da DGS, onde foi integrada a SD, foi criado o Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e de Eventos Adversos - SNNIEA (DGS, 2011). Recentemente tem-se vindo a assistir à implementação de várias iniciativas nesta área, tais como a acreditação e certificação de serviços e/ou unidades hospitalares; o aparecimento no mercado de um conjunto de ferramentas (modelos de gestão de indicadores de benchmarking, sistemas para o registo de incidentes e gestão de riscos clínicos) desenvolvidos por várias empresas e a criação de estruturas dedicadas à análise de questões relacionadas com a SD e a avaliação e gestão do risco (gabinetes de gestão de risco, departamentos de qualidade), (Sousa, Uva, Serranheira 2011b).

Em 2009 a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade Nova de Lisboa (UNL), realizou um primeiro estudo piloto para conhecer a realidade nesta matéria, onde

31 procurou caracterizar os eventos adversos em três hospitais de Lisboa, em termos de dimensão, impacto e grau de evitabilidade. Neste momento está a decorrer um outro estudo mais alargado, de âmbito nacional, que visa confirmar os resultados do primeiro estudo. Como vimos a SD envolve sistemas altamente complexos. Esses sistemas sofrem de problemas de concepção, são desorganizados e são constituídos por pessoas, que têm as suas capacidades mas também as suas limitações. Todos estes factores desempenham o seu papel aquando da ocorrência de um evento adverso (Tamuz, Thomas; François, 2004; Sousa, Uva; Serranheira, 2010). A SD é hoje considerada como um principio fundamental na prestação de cuidados e uma dimensão critica da avaliação de qualidade, sendo a ocorrência de EAs a sua parte mais visível. Tamuz et al., (2004) definem o nível de segurança dos doentes em função dos “near miss”, eventos adversos e erros notificados, que podem ser monitorizados.