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Henri Bergson, Agostinho e os procedimentos para medir o tempo

3. O dialeteísmo e a possibilidade da ocorrência de efetivas contradições

3.2 Seincman analisa Bergson e Bachelard

A questão que envolve a articulação da melodia, do qual anteriormente tocamos com Bachelard e da relação dialética entre os princípios de repetição e continuidade, é investigada por Seincman:

...a questão da repetição e a diferença no corpo do tempo [...] e da continuidade. A presença de duas progressões distintas [...] realça o problema de articulação, ou seja, de como a consciência lida com as partes de um todo que deveria ser um único estado contínuo e indivisível (SEINCMAN, 2001: 35).

Esta questão sobre a articulação é o modo como a consciência organiza a passagem do tempo e confere sentido a cada uma das partes que compõe a melodia. Se existem partes, foi porque a consciência as partiu, assim como partiu os instantes do tempo. Contudo, mesmo partidas, as conexões entre elas continuam existindo, e Seincman chama estas conexões de “‘pontos de

articulação’, que seriam responsáveis pela impressão de continuidade no descontínuo e de descontinuidade no contínuo. Eles seriam, exatamente, os pontos de convergência entre o passado e futuro (SEINCMAN, 2001: 36)”.

Assim, localiza-se nas conexões a lei de continuidade rítmica, que articula as partes, os elementos uns com os outros. A relação entre as partes se dá no “entre”, pressupondo necessariamente, o movimento, o trânsito, o ritmo. A dialética da consciência e da música obedece às mesmas regras e tem sempre presente a repetição e a diferença, a identidade e contradição. A dialética reguladora se localiza no “entre”.

Seincman afirma que o problema em Bergson é não admitir a descontinuidade na dureé. Dorfles, Langer e Bachelard também concordam com isto. A pausa, o descontínuo, a interrupção favorecem a criação, pois a duração pura não proporcionaria novos atos de criação, mas um primeiro e único. Toda pausa, todo descontínuo e toda interrupção possibilitam novos atos de criação. O ritmo é ressaltado igualmente em Seincman. “O próprio fluir

ininterrupto de nota após nota em uma obra musical é, também, um ato de criação, pois sua impressão resulta da constante tensão entre a espacialização do tempo e a temporalização do espaço” (SEINCMAN, 2001: 37). O “tempo

vivido” elaborado por Bergson não deixa de ser “tempo pensado” elaborado por Bachelard e assim, os momentos vividos são participantes na consciência percorrendo o pensamento, produzindo o enlace entre os instantes, as lembranças, a criação no momento presente e as expectativas futuras. Seincman relaciona as ideias de Bergson em discussão com as ideias de Bachelard:

...se a experiência é filtrada pelos conceitos, e, portanto simbolizada, há uma rede interligando os eventos significativos. Haveria, assim, por um lado, a presença de sínteses simbólicas instantâneas e, por outro, uma impressão temporal oriunda desta interconexão dos eventos entre si. Se o tempo vivido bergsoniano fala, notadamente, de uma memória do passado no presente, o tempo passado, por sua vez diz respeito à memória do futuro e do passado que habita o presente (SEINCMAN, 2001: 39-40).

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A lacuna, a interrupção existe porque há lacunas na consciência, ela não fluiria ininterruptamente. Alternar-se-ia entre o fluir contínuo e o descontínuo. Para Seincman a contribuição de Bergson foi de que o passado constitui a retomada das vivências anteriores no presente; no entanto, a repetição não pressupõe identidade integral, pois no tempo nada é idêntico, e sim semelhante. Um trecho musical pode ser executado com as mesmas notas no compasso seguinte, imediato ao primeiro e ainda assim, não será o mesmo, não será idêntico. A tensão da primeira execução refletirá acumulada na execução posterior e estará presente, dando a este segundo momento uma sonoridade diferente da sonoridade inicial.

O fluir do tempo forma a ilusão de continuidade – como afirmava Bachelard (1988: 39) -, contudo, essa continuidade não possui uma força perene e eterna. Por meio da continuidade, a repetição carrega o passado que se depara com o desconhecido e o novo que mora no futuro. Deste modo, mesmo que o passado possa ser retomado, será no máximo semelhante e não idêntico.

Assim, o que chamamos de repetição não é mais somente o presente de uma ou mais ocorrências similares do passado, mas um conflito de um futuro que, no presente, coloca o ser diante de um duplo. Este fato coloca em cena um outro viés diferente daquele bergsoniano sobre o “tempo vivido”, a partir do qual se constatou que no tempo não há identidade, mas apenas semelhança; quando se trata do segundo enfoque, o do “tempo pensado”, constata-se que a repetição vem recheada de conteúdos provenientes do próprio estranhamento de se perceber que o real é lacunar, fruto de uma construção (SEINCMAN, 2001:42-43).

Seincman afirma com base nas considerações de Bachelard que a repetição nunca é exata, a retomada nunca é total. Bergson pensou nisso quando descreveu que não é possível retomar o conteúdo inteiro. O fio condutor que ligava o presente no passado era o traço de união entre eles e viabilizava o arremesso da nova experiência para o futuro. Bergson pensava, contudo, que até mesmo essas lacunas formavam a duração, como errâncias fortuitas e breves, mas no momento seguinte a duração resgataria seu fluxo. Bachelard alertou para o fato de que, segundo Bergson, a duração realizaria o ser e o erro só poderia ser um acaso infeliz e despropositado.

Seincman analisou ambos em conjunto, percebeu que a duração é fundamental no que diz respeito à importância do fluir da consciência do ouvinte na experiência musical. No entanto, também entende as ressalvas de Bachelard de que o descontínuo interrompe a duração e forma a lacuna. Seincman exemplifica este ponto quando analisa a repetição.

...a repetição é um dado mais paradoxal e problemático do que comumente aparenta. Ela tem de ser vista como o estofo da própria construção e ordenação, como o fator que permite à consciência relacionar, entre si, os instantes ativos, do contrário não haveria a impressão do tempo. E cada obra, cada trecho em particular,

colocar-nos-á diante de uma nova ambigüidade, deste encontro consigo mesmo, deste duplo. Este estranhamento é o gatilho da interpretação (SEINCMAN, 2001: 46).

A repetição é o paradoxo entre unidade e duplicidade. Consigo visualizar nesta citação, o espaço musical onde o paradoxo da repetição se forma ressaltado por Dorfles. Vejo o ritmo que Susanne Langer descreveu ocorrendo em um tempo virtual, com instantes que se relacionam entre si. Observo também a dialética reguladora que se move entre ambigüidades, dando abertura para a interrupção da duração proposta por Bachelard. Posso ver Bergson com a noção de memória que organiza o tempo subjetivo e que lança a vivência recheada do passado para uma interpretação, fundindo a lembrança, a vivência atual e a expectativa. Bergson, entretanto, não admitiria a previsibilidade do futuro, mas concordaria que o estranhamento já se constitui um traço de imprecisão.

A questão da repetição é para esta pesquisa de grande importância, no sentido de defender que a repetição é uma das condições para o surgimento de contradições.