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Henri Bergson, Agostinho e os procedimentos para medir o tempo

2. Críticas à ciência

2.4 Críticas à Bergson

2.4.2 Susanne Langer

Susanne Langer afirma que as artes plásticas fornecem a nós a percepção do espaço visível, e a música por sua vez, nos lança a um “reino

diferente” (LANGER, 1980: 111). A música estaria localizada em um “espaço invisível”, mas inteiramente preenchido de formas, com seus movimentos

próprios, tornando a beleza do mundo audível que se “apodera de toda a nossa

consciência”. O espaço musical é denso, possui movimento e é perceptível.

O estudo da música sempre teve junto a si o caráter abstrato e por esse motivo recebeu entre os estudiosos a definição de área que comporta demasiada transparência e intangibilidade. Langer acentua que as pesquisas científicas buscaram explicar então a música como fenômeno físico, fisiológico e psicológico (LANGER, 1980: 111); bem como seus métodos de composição e das leis matemáticas acerca da freqüência dos tons e da estrutura sonora, no intuito de tornar palpável esta massa musical, o que motivou inclusive teorizações excêntricas a respeito do conjunto de elementos que eram necessários para uma tonalidade adequada e uma harmonia perfeita; (discussões esdrúxulas a respeito do estatuto da música e de quais aspectos uma dada sonoridade deveria ser constituída para que fosse considerada como portadora de valor artístico).

Dentre tantas teorias, Langer considera Heinrich Schenker33 e Basil de

Selincourt 34

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Langer indica a teoria de SCHENKER Heinrich. Tonwille, 5, considerada válida e valiosa para servir de referencial de pesquisa acerca da natureza composta da tonalidade.

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Music and Letters,I, nº. 4 (1920), 286-293.

como referências pertinentes e confiáveis ressaltando que a seriedade da pesquisa em torno da música e da pergunta filosófica “O que é a

música?” (LANGER, 1980: 113) deve conceder a máxima compreensão que for

possível quando detalhar seus elementos, mas não cabe a ela dar qualquer tipo de receita. O valor da investigação e da análise científica “(...) reside

grandemente no fato de que ela sempre permanece uma análise e jamais pretende ter qualquer função sintática. Uma obra de arte é uma unidade originalmente, e não pela síntese de fatores independentes (LANGER, 1980:

Os estudos da música e de uma teoria musical se estenderam por diversas áreas do conhecimento, no entanto, como toda teoria que se estrutura sob a ótica do experimento físico, a música também foi submetida à física do som.

O fato de as proporções tonais figurarem entre as primeiras leis físicas e serem matematicamente expressas, experimentadas e sistematizadas, deu à música o nome de uma ciência, até mesmo de um modelo científico para a cosmologia, desde os tempos antigos até nossos dias (LANGER, 1980:133).

Susanne Langer define que o tom e o som não são a música. A composição formada de sons, basicamente a mobilidade, o movimento dos sons é a música. Uma dança de sons. Assim, “o movimento é a essência da

música” (LANGER, 1980: 115). As formas perceptíveis à audição, que são,

portanto, invisíveis. A natureza do som, segundo Langer difere da natureza da luz. As formas do som, não são como as formas visíveis pela luz, simplesmente pelo fato de que mesmo que as formas do som ocupem o espaço, assim como as formas visíveis que absorvem e refletem a luz35

Susanne Langer explica que o movimento musical é muito diferente do deslocamento físico, e que as vibrações de tons, não apresentam locomoção de fato, são extremamente curtas e o repouso é imediato tão logo a execução cesse. Esta é a explicação para o que se pode chamar de “repouso

sustentado” (LANGER, 1980: 116). Langer pretende com esta exposição

, o som, quando é emitido e ecoado, não altera sua estrutura, como faz a luz. Quando a luz encontra as formas visíveis, altera-se e se faz ver. O som se altera também, mas de modo algum se faz ver. As formas da luz se alteram, mas as formas do som mesmo ao se alterarem não se fazem ver, dando ao som a transparência intrínseca e sua invisibilidade.

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Essa diferença funcional entre luz e som foi observada por Josefh Goddard faz uns cinqüenta anos. “De uma única fonte central, a luz procede continuamente, sendo que essa luz refletida pelas superfícies de objetos de maneira correspondente às características destes... Embora o som musical seja mais ou menos refletido e absorvido enquanto se move entre objetos, o resultado é uma modificação de seu caráter e volume geral – como quando a música é executada numa sala vazia ou numa sala cheia – para não dar-nos impressões de tais objetos”, On Beauty and Expression in Music, p. 25-27 apud LANGER, 1980: 115.

técnica a respeito da mobilidade dos tons, do repouso e do silêncio sonoro, explicar sua compreensão da “duração”, que é o nosso interesse. “Os

elementos da música são formas moventes de som; mas em seu movimento nada é removido. A esfera em que as entidades tonais se movem é uma esfera de pura duração” (LANGER, 1980: 116). A experiência com a música, e com a

duração que Susanne Langer apresenta busca claramente diferenciá-la da experiência quotidiana com o tempo.

(...) essa duração não é um fenômeno real. Não é um período de tempo – dez minutos ou meia hora, alguma fração do dia -, mas é algo radicalmente diferente do tempo em que decorre nossa vida pública e prática. É completamente incomensurável em relação à seqüência dos assuntos comuns. A duração musical é uma imagem daquilo que poderia ser denominado de tempo “vivido” ou “experienciado” – a passagem da vida que sentimos à medida que as expectativas se tornam “agora” e “agora” em termos de sensibilidades, tensões e emoções; e não tem meramente uma medida diferente, mas uma estrutura completamente diferente do tempo prático ou científico. (LANGER, 1980: 116).

O conceito de “tempo virtual” elaborado por Susanne Langer, busca definir o tempo próprio da música, onde esta se desenvolve. Ressaltando que este tempo é diferente do tempo científico e do tempo social. Seu conceito de tempo virtual possui a característica de ser um tempo vital (LANGER, 1980: 116), que de fato é experienciado, o que nos permite afirmar a proximidade com a definição de tempo vivido pela memória elaborado por Bergson. Contudo, a postura de Langer é que este tempo virtual está no espaço, em uma região sonora, pois é de fato audível, colocando-se assim ao lado de Gillo Dorfles.

Susanne Langer afirma que o tempo musical que se desenvolve em um tempo considerado como fluxo, como passagem, é uma ilusão (LANGER, 1980: 128); essa passagem é preenchida pelo conteúdo audível em movimento e esse intervalo de uma coisa a outra é uma experiência tão ilusória quanto o tempo mensurável do relógio.

A música se dá no tempo, assim como a literatura e o teatro se dão no espaço, entretanto, a música é a arte do tempo e também do espaço. Seu lugar existe desde o momento de sua concepção, como inspiração do compositor e está já localizada por assim dizer, na mente de seu autor. O modo como vai

surgindo percorre estágios que dispõem da imaginação, da intuição, do insight até a idéia da peça musical em todas as suas partes. “Os princípios de

articulação da música são tão variados que cada compositor encontra sua própria linguagem, mesmo dentro da tradição que ele casualmente pode herdar” (LANGER, 1980: 130). Deste modo, Langer busca demonstrar o

processo de individuação da peça musical e a presença de elementos36

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Noção que define a “Ideia” musical que se busca demonstrar, de modo que a música encontra sua linguagem, seu modo de expressar. Contudo a Urlinie representa a marca do tipo especial de criação musical (LANGER, 1980: 131).

que conceituem a expressão musical como obra de arte.

Susanne Langer define a essência da música a partir do tempo musical, que por sua vez, se caracteriza como tempo virtual. “Qual, então, é a essência

de toda música? A criação do tempo virtual e sua determinação completa pelo movimento de formas audíveis (LANGER, 1980: 132). A música é uma imagem

do tempo no som, determinada como forma que ocupa o espaço e perceptível à audição. A música é uma produção do espírito humano em um espaço e tempo próprios; díspares do tempo matemático e do tempo social, muito próximos até da noção de espaço e tempo psicológicos, ou como Bergson definiria, do tempo da consciência. A duração musical quase se confunde com a duração da consciência tal sua aproximação dela, e nesse ponto tanto Langer como Dorfles concordam com Bergson. No entanto, a ressalva está na exclusão do espaço segundo Dorfles e na ausência do ritmo segundo Langer, como princípio intrínseco a música, e a vida.

A música em sua composição é expressão da vida.

A essência de toda composição – tonal ou atonal, vocal ou instrumental, mesmo puramente percussiva, se se quiser – é a semelhança de movimento orgânico, a ilusão de um todo indivisível. A organização vital é a estrutura de todo sentimento, porque o sentimento existe apenas em organismos vivos; e a lógica de todos os símbolos que podem expressar sentimento é a lógica dos processos orgânicos. Toda vida é rítmica. (...) Esse caráter rítmico do organismo permeia a música, porque a música é uma apresentação simbólica da mais alta resposta orgânica, a vida emocional dos seres humanos (LANGER, 1980: 133).

O ritmo é um princípio organizativo da vida em sua estrutura biológica. A música é expressão dos sentimentos, dessa parte da vida partilhada pelos seres humanos. Susanne Langer aponta que a periodicidade caracteriza os eventos que regularizam uma recorrência, estipulando padrões orgânicos de funcionamento, como por exemplo, a respiração, a freqüência cardíaca e os processos metabólicos e dão a impressão de que o ritmo possui uma cadência repetitiva como fundamento primordial, no entanto, “o caráter óbvio dessas

repetições tem feito com que as pessoas as considerem como a essência do ritmo, o que elas não são (LANGER, 1980: 133). A ressalva de Langer é no

sentido de que até mesmo o relógio possui ritmo, regularidade e repetição; mas está fechado neste esquema. O que caracteriza o ritmo é a abertura para um novo acontecimento juntamente com elementos do acontecimento anterior. “A

essência do ritmo é a preparação de um novo evento pelo término de um evento anterior” (LANGER, 198: 133).

Penso que Henri Bergson pontuou este aspecto quando definia que os instantes não poderiam ser entendidos como isolados em função da solidariedade ininterrupta entre eles. Um evento se desdobra em outro em detrimento do presente vivido, guardado, e gerado como expectativa, sem carregar consigo o conteúdo inteiro esgotando a experiência e fornecendo a abertura para uma experiência nova. Bergson estava atento a isso, mas não nomeou este aspecto. O ritmo estava presente no conceito de duração de Bergson, e possivelmente o que Susanne Langer busca salientar é a necessidade de maior importância deste fundamento da vida e da música. Possivelmente entenderíamos melhor como Bergson concebia a duração e a própria consciência. A falta, portanto, de uma análise mais aprofundada do ritmo na definição do tempo, deixa uma lacuna fundamental, posto que o elemento rítmico - como foi demonstrado - é intrínseco a vida e a música.

A ciência que admite o tempo como sucessão pouco se dedica a estudar o ritmo nos organismos, de modo que idealizar os objetos paralisados, justapostos em pontos determinados, se torna metodologicamente mais fácil, entretanto, desloca-se o objeto de seu contexto e de seu estado original. Toda experiência é de fato, uma interferência.

Susanne Langer apresenta o princípio da continuidade rítmica como “base

um padrão de mudanças (LANGER, 1980: 134). Este princípio quando rompido

torna inviável assegurar a vitalidade do organismo, de modo que até nas atividades intelectuais e espirituais ele está presente. Vejamos o que Susanne Langer afirma a respeito do modo como esse princípio afeta a “transformação

simbólica das percepções”:

Onde o processo simbólico é altamente desenvolvido, ele praticamente se apossa do domínio da percepção e memória, e imprime sua marca em todas as funções mentais. Mas, mesmo em suas operações mais elevadas, a mente ainda segue o ritmo orgânico que é a fonte da unidade vital: o levantamento de uma nova

Gestalt dinâmica no próprio processo de desaparecimento de uma

anterior (LANGER, 1980: 135).

O princípio da continuidade rítmica é regulador dos processos orgânicos e também inorgânicos, assim, até mesmo o quebrar de ondas - considerado por Susanne Langer um acontecimento inorgânico, de modo que se constitui de um fenômeno mecânico dos oceanos37

Susanne Langer afirma que os processos vitais são geridos pelo princípio de continuidade rítmica e que os reconhecemos nos fenômenos da natureza transformando-os em símbolos provenientes de nossas percepções, - e não da memória. O que é importante aprofundar é a relação desse princípio com o tempo

-, nos traz a nítida compreensão da presença de tal princípio dentro e fora de nós.

Mas o exemplo mais impressionante de ritmo conhecido pela maioria das pessoas é o quebrar das ondas numa rebentação constante. Cada novo vagalhão que se aproxima é formado pelo repuxo que flui no sentido contrário e, por sua vez, na realidade apressa a recessão da onda precedente pela sucção. Não há linha divisória entre os dois eventos. Uma onda quebrando, porém, é um evento tão definido quanto se poderia querer encontrar – uma verdadeira Gestalt dinâmica. (LANGER, 1980: 135).

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Penso que até os oceanos são grandes estruturas que organizam a vida de todo o planeta e se não são vivos estão intimamente ligados a vida. Questão que não será abordada aqui, mas extremamente importante quando se vê a ciência contemporânea sob uma perspectiva holística.

38 O Principio de Continuidade, em sua forma lógica, geral, será abordado posteriormente, no

terceiro capítulo.

o princípio de continuidade rítmica está imanente, os eventos são de tal modo imbricados que não é possível separá-los. Não há linha divisória entre o quebrar da onda e o passo seguinte para formar uma nova onda. São dois eventos em um só, contínuo, que leva consigo o anterior, mas não inteiro, permitindo o novo. Existe uma ligação entre um e outro que é estabelecida pela presença do princípio de continuidade e esta continuidade é organizada pelo ritmo. Langer aponta como o princípio da continuidade rítmica está presente na música:

Tudo o que prepara um futuro cria ritmo; tudo o que gera ou intensifica expectativas, inclusive expectativa de pura continuidade, prepara o futuro (“batidas” regulares são uma fonte óbvia e importante de organização rítmica); e tudo o que cumpre o futuro prometido, de maneiras previstas ou imprevistas, articula o símbolo do sentimento. Seja qual for o espírito especial da peça, ou sua significação emocional, o ritmo vital do tempo subjetivo (o tempo “vivido” que Bergson nos conjura a encontrar na experiência pura) permeia o símbolo musical, complexo, multidimensional como sua lógica interna, que relaciona a música à vida de maneira íntima e evidente por si mesma. (LANGER, 1980: 136).

Para Langer o ritmo é mais do que um divisor de períodos temporais. Ele organiza “as progressões harmônicas, resoluções de dissonâncias, direções de

passagens correntes e ‘tons de tendência’ na melodia” sendo que todos estes

elementos sirvam como “agentes rítmicos”. Mas o ritmo não deixa de ser repetição, e a repetição também é princípio estrutural da vida e da música. A repetição “que dá à composição musical a aparência de crescimento vital” (LANGER, 1980: 136). Ocorre na música, no processo de formação da composição musical, uma observância da permanência da noção de “vitalismo”, que torna o crescimento da obra musical semelhante ao crescimento dos organismos vivos. As obras de arte são, deste modo,

“orgânicas” (LANGER, 1980: 137).

A repetição começa com o compasso, e continua na melodia e em cada frase ou item no qual podemos resolvê-la. O crescimento de uma composição musical pode ser comparado ao de uma planta que floresce, (...) onde não só as folhas se repetem umas às outras, como as folhas repetem as flores, e os próprios rabos e ramos são como folhas não-abertas. (...) Ao padrão da flor corresponde um

outro padrão desenvolvido na colocação e agrupamento das flores ao longo dos ramos, e os próprios ramos dividem-se e sobressaem- se em proporção equilibrada, sob o impulso vital controlador. (...) A expressão musical segue a mesma lei (SELINCOURT: Music and

Duration, 288; apud LANGER, 1980: 137).

Bergson em sua formulação do tempo, segundo Susanne Langer, usou a metáfora da melodia para expressar sua ideia de duração. No entanto, o contínuo temporal permite a noção de ritmo, pelo fato de que o princípio da continuidade rítmica abarca o tempo, o contínuo e o ritmo. No último capítulo apresentarei a lei da continuidade, elaborada inicialmente por Leibniz, e sua relação com o Princípio de Não Contradição, antes disso veremos as considerações de Bachelard a respeito do bergsonismo.