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Henri Bergson, Agostinho e os procedimentos para medir o tempo

3. O dialeteísmo e a possibilidade da ocorrência de efetivas contradições

3.3 Seincman e a composição de Frèderic Chopin: Noturno op.15 n°

Seincman apresenta ainda uma análise muito pertinente sobre a obra

Noturno op. 15 nº 3 (1834), obra que foi composta por Chopin depois da leitura

de Hamlet de Willian Shakespeare. A investigação de Seincman revela o modo como na música os elementos obedecem a repetição, se desenvolvem para o novo e se contrastam.

A composição de Noturno foi feita baseada nas intensas contradições vividas pelo personagem de Hamlet. A música é repleta de elementos que exprimem as angústias, emoções conflitantes e sentimentos perturbadores. Para compreender a música de Chopin baseada em Hamlet, é prudente entender a construção daquilo que Seincman chama de “duplo”, “ambíguo”. O duplo que ao mesmo tempo, confere unidade e fornece a ruptura (SEINCMAN,

2001: 52), é rearranjado pelo ouvinte, que deve buscar a coerência entre essas esferas. Vejamos o exemplo proposto por Seincman:

Vamos imaginar o caso hipotético de uma forma-canção com Trio: a Seção A (que pode ser uma forma-canção binária ou ternária - não importa) estará atuante, na consciência do ouvinte, durante a Seção B (Trio). O mesmo ocorrerá com as Seções A e B na reexposição da Seção A. Portanto, o que geralmente chamamos de forma A B A não é, pura e simplesmente, a ocorrência de um A, seguido de um B, seguido, por sua vez, de um novo A. Isto seria apenas uma descrição de uma forma e não propriamente a forma viva resultante do objeto e sujeito em constante reciprocidade. A B A é, pois, pura descrição, pura espacialidade dissociada do fenômeno estético (em que a memória humana tem participação decisiva): os As como diria Bergson, não são idênticos, mas, no máximo, semelhantes (SEINCMAN, 2001: 53).

O efeito paradoxal entre unidade e ruptura ao qual Seincman se refere, lembra muito a dialética reguladora proposta por Bachelard, bem como o desenvolver rítmico da melodia. A lei que perpassa pelas estruturas da flor da música e do quebrar de ondas, mencionadas por Langer, por sua vez, fora adotadas de Leibniz por Grahan Priest. Todos estes vértices encontram-se num ponto em comum: o tempo que flui ritmicamente e a experiência musical que se produz numa escuta consciente.

O exemplo que Seincman apresenta diz que a retomada de A, posteriormente a B, não significa retomar o mesmo A, e que este primeiro A possui subjacente a si, ele mesmo, fruto de sua vivência. O B posterior, do mesmo modo apresenta subjacente a si, ele mesmo, juntamente com o primeiro A e seu A subjacente. Assim, A e B possuem subjacente a si, eles mesmos. Logo, o último A herdará todo este esquema e seu A subjacente, de sua própria vivência.

Seincman apresenta o seguinte esquema:

A B A

A A + B A + B+ A

Se pensarmos que o tempo é uma justaposição de instantes e não questionarmos a necessidade da consciência e da escuta, muito provavelmente só a primeira linha A B A, fará sentido. Seincman alerta para a importância da memória, que concomitante aos instantes vividos ativamente, produz instantes correlatos aos ativos, que chamo de “latentes”.

Se olharmos apenas a coluna horizontal superior, temos a visão de senso comum: a forma musical como mera sucessão no tempo, um simples A B A. Mas, ao considerar a escuta parte do processo de recepção estética, a equação é, no mínimo, outra: enquanto o primeiro A ocorre, seus próprios elementos, já retidos pela memória, projetam-se nos elementos do presente e daí A/A. Quando B se inicia, o mesmo processo ocorre; além de A/A, haverá a projeção dos próprios elementos de B sobre si mesmo, e daí

B A + B A

Ao ser reexposto, A terá, sobre si, os conteúdos de A/A + B/B + A. Assim, só na superfície é que o primeiro e o segundo As são idênticos, pois:

A ≠ A

A A + B+ A

A B

Mesmo que a estrutura musical e a duração cronológica de ambos os As sejam as mesmas, isso não vai ocorrer na recepção estética (SEINCMAN, 2001: 53-54).

Na descrição escrita os As são os mesmos. Mas na escuta musical não são. O tempo é totalmente outro, quando considerado pelo viés da consciência e da escuta musical. Seincman lembra o exemplo exposto por Bergson, do copo d’água com açúcar. A espera da absorção do açúcar não se dá de forma imediata, nem de acordo com a sucessão cronológica. Esse tempo não é reduzido ao tempo matemático, este é o tempo vivido. Seincman argumenta ainda que Bachelard discordaria de Bergson, dizendo que este tempo é o tempo pensado.

O que interessa aqui é o posicionamento de Bergson frente à experiência com o tempo. O próprio sujeito é objeto da experiência, e a realidade passa pela análise deste sujeito que pode “considerar a si próprio como parte do

fenômeno analisado” (SEINCMAN, 2001: 55). E mais do que isso, enquanto o

fenômeno for considerado a partir da descrição objetiva, sem a participação da consciência e do sujeito, consideraremos o tempo como sucessão sem

entender que os momentos retomados não são idênticos. Só partindo da memória para compreender que a consciência constrói concomitante aos instantes ativos, instantes latentes. Na escuta musical, além dos A’s não serem idênticos, podem ser contraditórios, pois primeiro A/A é ≠ do segundo A/A + B/B + A.

Seincman une os pontos entre Bergson e Bachelard e afirma que: “... o

tempo não é uma cadeia unívoca e contínua, uma durée, mas produto de uma dialética fundamental que permeia o fenômeno da fruição estética. O tempo é pluridimensional, possui várias camadas e cadeias simultâneas” (SEINCMAN,

2001: 60). A identidade é refutada quando introduzida num contexto temporal rítmico. Dentro do tempo, o novo está sempre atualizando o conteúdo retomado. “Assim sendo, o passado é retomado, reatualizado e

ressemantizado: o que fora ouvido como antes e depois, como “isto então aquilo”, torna-se “isso e ao mesmo tempo aquilo” (SEINCMAN, 2001: 66).

Existe a vivência do “isso” concomitante com o “aquilo”. O presente é que oferece essa condição, pois a lei da continuidade se dá no presente, no que chamamos de entre. O presente é a chave para o enigma: o laço entre a lembrança e a expectativa é o continuo viabilizado pelo presente, fugidio, rápido, ritmado entre continuidade e descontinuidade. O presente é o “entre”, claro, está localizado “entre” o passado e o futuro. No presente, portanto, ocorre a repetição, o trânsito da unidade para a duplicidade, logo, da ocorrência das contradições.

Seincman afirma que a discussão sobre o tempo e sua importância na organização social e na construção da linguagem artística, ocorreu por vários motivos: a Revolução Industrial que modificou as relações de produção, consumo e serviço; a Revolução Francesa que levantou as lutas ideológicas e políticas; e o movimento literário conhecido como Sturm and Drung que foi decisivo na arte e na cultura (SEINCMAN, 2001:75). Na raiz dessas transformações estava a intenção de alcançar a manipulação do tempo, ou seja, a conquista do domínio do fluxo temporal.

Gradativamente, o homem do século XIX foi tomando consciência de que a realidade temporal poderia ser manipulada, controlada. Se as normas sociais relativas à monarquia e ao absolutismo podiam ser

derrubadas, por que não o seriam, igualmente, as artísticas e acadêmicas? Se o tempo histórico e social se transformava, não seria possível tal mudança nas obras de arte? (SEINCMAN, 2001: 76).

Surge a possibilidade de mistura de gêneros, algo que era impensável para as escolas tradicionais que impunham a obediência aos padrões clássicos e racionalistas. A motivação deste ímpeto entre os artistas se deve ao marco que a obra de Willian Shakespeare produziu na História, e este movimento conhecido como Romantismo, iniciou-se no século XVIII.

A música do Romantismo deixa de ser regida pelos padrões tonais e formais estabelecidos nos séculos anteriores. Ela se organiza a partir de um discurso mais aberto, ambíguo, que confirma sua realidade temporal pluridimensional.

(...)

O domínio técnico da sintaxe musical permite, agora, que o compositor possa tanto efetuar rupturas na estrutura formal clássica, quanto mantê-la, de acordo com sua vontade. Ele pode gerar a impressão de um tempo contínuo, uma espécie de eterno devir ou, ao invés, de um tempo descontínuo, formado de instantes em permanente conflito (SEINCMAN, 2001: 87).

O tempo pode ser manuseado de modo contínuo e descontínuo, segundo o que Seincman chamou de: “jogo de uma realidade temporal infinita” (SEINCMAN, 2001: 87). A utilização da música para este manuseio com a temporalidade permite o domínio do tempo - antes almejado. Mas um tipo de domínio com ressalvas: considerar o tempo em suas dimensões múltiplas e ter o sujeito ouvinte e consciente, objeto de si mesmo numa construção melódica alternando unidade e diversidade.

As obras de Shakespeare motivaram muitas criações, e os exemplos citados por Seincman passam por Paul Mies, Mendelssohn, Schumann, Beethoven, Schubert, Liszt, Brahms, Mahler, Bruckner, Wagner, Strauss e Chopin. Estes autores buscaram desvencilharem-se das regras do classicismo e dos ordenamentos histórico-filosóficos. A música do Romantismo com este viés abre as portas para novas considerações:

...exatamente por permitir o livre trânsito de uma ideia a outra, sem qualquer respeito pelas fronteiras da lógica tradicional; por isto ignora qualquer limite, em particular os limites do ‘tempo e do

princípio de não-contradição. Ignora os limites do tempo: um fato

vivido hoje pode reavivar uma lembrança da semana passada e um desejo infantil, produzindo com estes ingredientes o sonho de hoje à noite. E ignora o princípio da não-contradição, alicerce de todo o pensamento racional: segundo este princípio, A não pode ser simultaneamente não - A; ou é A ou não é A, excluindo-se toda outra possibilidade45

Essa atmosfera contraditória fez parte da vida do compositor polonês Frédéric Chopin que chegou à cidade de Paris em França, num período de

“ebulição cultural” (SEINCMAN, 2001: 146), repleta das novas tendências

românticas e dos defensores fiéis do classicismo. Chopin expressa a atmosfera efervescente da época em suas obras e a noção de duplo, de duplicidade entre as realidades. Seincman cita a influência de Chateaubriand e de Mme de Stäel, na obra de Victor Hugo

(MEZAN, 1987, 141 apud SEINCMAN, 2001: 114- 115).

Seincman se refere à temporalidade e à espacialidade conforme Bergson, sem pressupor uma estrutura de conexões causais objetivas. A estrutura temporal deve ser pensada como uma malha, onde os eventos são formados por associações carregadas de significados e misturadas de acordo com seus critérios; que podem ser disformes, contraditórios e irregulares, sem as formalidades da sucessão.

Ao comentar a obra Noturno op. 15 n°3 de Chopin, Seincman afirma que ocorre “um equilíbrio entre realidades simétricas e assimétricas, contínua e

descontínua, formal e não-formal, que ocorrem no limite da manutenção de uma unidade e sua dissolução” (SEINCMAN, 2001: 121). Algo como um

“estado-de-coisas paritário” – se posso assim dizer, entre realidades que não “poderiam” coexistir.

46

45

Renato Mezan. Psicanálise, judaísmo: ressonâncias. São Paulo, Escuta, 1987.

46 Chateaubriand (Gênio do Cristianismo, 2ª e 3ª partes) e Mme. de Stäel (Da literatura) em

Victor Hugo. Do grotesco e do sublime (prefácio a Cromwel). Col. Elos n° 5, São Paulo, Perspectiva, 41-42.

Do dia em que o Cristianismo disse ao homem: “Você é duplo, é composto de dois seres, um perecível, o outro imortal; um carnal, o outro etéreo; um prisioneiro dos apetites, necessidades e paixões, o outro levado pelas asas do entusiasmo e da fantasia: aquele, enfim, sempre curvado para a terra, sua mãe, estoutro lançado sem cessar para o céu, sua pátria”; desde este dia foi criado o drama. Será, com efeito, outra coisa este contraste de todos os dias, esta luta de todos os instantes entre dois princípios opostos que sempre estão em presença na vida, e que reivindicam o homem desde o berço até a sepultura? (V. HUGO, 41-42 apud SEINCMAN, 2001: 146-147).

Este drama humano é retratado por Chopin, baseando-se nos conflitos que afligiam Hamlet. Chopin o fez pensando em traduzir musicalmente a reflexão pessoal, e individual de cada sujeito para consigo mesmo, juntamente como o questionamento metafísico que se eleva do eu, que atinge a esfera comum entre todos os seres humanos. Esse caráter filosófico é próprio da postura de Chopin, que encontrou na emblemática frase de Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão”, a inspiração para Noturno.

O famoso monólogo sintetiza, de maneira magistral, a essência da temática filosófica de Hamlet: o limiar entre o real e o irreal, a presença e a ausência, a verdade e a mentira, a razão e a loucura, a lucidez e o obscurantismo, o amor e o ódio, a fidelidade e a traição, o realismo e a representação. (SEINCMAN, 2001: 148).

Seincman afirma que a forma geral da obra é evolutiva, “tal como um A B

A, um A B A C A ou, até mesmo A B C D C B A (SEINCMAN, 2001: 149),

resultado do conflito moral e vacilante de Hamlet, repleto de idas e vindas. Tal como Shakespeare, Chopin buscou ressaltar o mesmo ser vivenciando suas contradições, onde a mudança e a transformação estão presentes em todos os pensamentos e atos. O agir de Hamlet, fruto de seu pensar, estava emaranhado de um futuro apavorante. Em seu íntimo há uma unidade a todo o momento retomada, mas que nunca é a mesma, desdobrada em múltiplas faces. Hamlet oscila: ora é piedoso, ora cruel. Por vezes compreensivo, e em seguida cheio de cinismo. As emoções mudam e lançam Hamlet de um lado a outro, em torvelinho, que beira a razão, tão logo se exalte, estremece em insensatez.

E, realmente, constata-se que, a despeito dos conflitos, cada seção carrega, em si, os elementos do passado que lhe conferiram a identidade: o que dá origem a uma seção já se encontrava, pois, embrionariamente presente na anterior. Deste modo, Chopin unifica a forma geral da obra de dentro para fora: a unidade é obtida por meio de um processo orgânico parcialmente semelhante à técnica de elaboração temática do allegro-de-sonata. Há, pois, um equilíbrio entre a fragmentação e a unidade (SEINCMAN, 2001: 150).

Seincman diz que a obra de Chopin se volta para a discussão da semanticidade, pois, ao ouvir cada uma das seções da peça, pode-se compreendê-las individualizadas, mas os limites entre elas são ambíguos, são gradações que permitem a coexistência do que chamamos nesta pesquisa de “estados-de-coisa-contraditórios”. A continuidade e a descontinuidade encontradas na análise de Seincman a respeito da obra de Chopin é um exemplo do que esta pesquisa defende: as contradições existem sempre que a lei da continuidade estiver presente. Sempre que considerarmos o tempo fluindo ritmicamente. A música e a consciência são os elementos que dão condição para visualizarmos a presença da lei da continuidade, como em

Hamlet de Shakespeare e no Noturno de Chopin.

A unidade e sua dissolução ocorrem pelos graus localizados entre as fronteiras que compõem as partes de um todo. O tempo formado por “pontos de acumulação” é análogo aos compassos musicais de uma peça. Tais exemplos foram utilizados nesta pesquisa como suportes para a ilustração do atenuamento do princípio de Não Contradição em domínios onde a lei da continuidade encontra-se vigente.

Apêndice

György Ligeti e a obra “Continuun”

György Ligeti nasceu na Transilvânia, em 1923, e formou-se em música contra a vontade do pai. De família judia não praticante, sofreu com o sentimento que varreu toda a Europa, o anti-semitismo. Salvou-se dos campos de concentração em trabalhos forçados, mas perdeu parte da família que não teve a mesma sorte. Seus estudos superiores iniciaram no ano de 1944, na Academia de Franz Litsz, quando se mudou para Budapeste. Teve uma formação clássica, mas sempre buscava seu estilo próprio, libertando-se das regras e enquadramentos do pensamento acadêmico (CASNOK: 2003: 140).

Entre os motivos escolhidos para analisar a obra de György Ligeti, Yara Borges Caznok em seu livro Música: entre o audível e o visível (2003), escolheu-o pela postura de Ligeti a respeito da “recepção” musical e a importância dada à escuta juntamente a sensorialidade própria ao homem contemporâneo.

Ligeti possuía uma independência e autonomia de criação e composição que foi construída desde sua formação.

Sua produção esteve sempre endereçada ao homem contemporâneo, que convive tanto com as ciências dos fractais e da teoria do caos quanto com as formas de pensamento de culturas pré-tecnológicas.

(...)

...Ligeti, mesmo não sendo adepto de nenhuma corrente descritivista, programática ou cênica, admite que a audição seja um complexo psíquico-emocional ontologicamente híbrido e sinestésico. (CASNOK, 2003: 132).

A audição é o campo experimental privilegiado ao qual Ligeti se volta, considerando-a como condição peculiar para uma percepção do ouvinte repleta de potencialidades de ordem psíquica e emocional, que se constrói por meio da concepção do real múltiplo. O suporte ontológico é baseado em uma realidade híbrida, ou seja, algo que cresce sustentado por vários elementos hibridizados.

Ligeti pensava no valor fundamental da escuta, mas vai além dela. A consciência de uma experiência musical se forma a partir do conjunto de elementos sensoriais, não exclusivamente auditivos. A multissensorialidade proposta por Ligeti pretende aliar a escuta aos aspectos corporais e mentais que produzem uma experiência estética formada de complexidade. A complexidade e a multiplicidade são aspectos presentes na obra musical, na escuta e na temporalidade. Ligeti valoriza o múltiplo. A sensorialidade é múltipla, a temporalidade é múltipla e a música é múltipla.

A obra Éjszaka (Noite) 1955, segundo Yara B. Casnok tem a forma de um bloco sonoro construído, próximo da imagem de um “empilhamento”, que dá a impressão de que “o conjunto parece não se mover, permanece” (CASNOK, 2003: 133). A obra de Ligeti discute a construção melódica que se desenvolve na relação unidade/duplicidade, aparecer/ocultar.

... a maior “contradição” vem do fato de existirem linhas melódicas que não são ouvidas como tais: o bloco “traga” todos os sons para dentro de si, como se fosse um poderoso imã, e não lhes dá a menor chance de aparecer. Daí um paradoxo, como presentificar algo objetivando seu desaparecimento? As vozes estão, portanto, presentes ou ausentes, ao mesmo tempo? Vale a pena se esforçar para ouvir algo cujo destino é ocultar-se? (CASNOK, 2003: 133).

Casnok argumenta que a proposta de Ligeti é provocar uma nova forma perceptiva de escuta. Ao colocar a disposição do ouvinte uma situação paradoxal, a audição se depara com a necessidade de perceber de um modo ampliado, diferenciado do habitual e somando os elementos perceptíveis de outros sentidos. A música de Ligeti busca atingir o ouvinte como um todo, como sujeito cognoscente, tocando-o integralmente, em seu aparato físico, psíquico e emocional. Uma obra multidimensional necessita de uma recepção multissensorial.

Como explicar que essa “massa” sonora tenha um corpo, uma densidade, uma textura, uma presença visual e uma espacialidade senão pelas sensações globais e totais do nosso corpo?

...a percepção musical não se restringe apenas a ouvir sons. Trata- se de uma nova forma de conceber o ouvir, que abrange uma série de cruzamentos e transferências dos domínios sensoriais: imbrincam-se, contaminam-se e misturam-se diferentes modalidades perceptivas tais como as sensações visuais, táteis, corporais, sinestésicas (de movimento), entre outras, de modo que a polissensorialidade aflore em sua totalidade. (CASNOK, 2003: 133- 134).

Ligeti usava sua técnica para projetos experimentais com o intuito de descobrir até onde sua criação e inspiração poderiam chegar. A música eletrônica foi uma das experiências que por um período Ligeti pesquisou. Com as técnicas da música eletrônica, Ligeti descobriu que era possível pensar em novas formas de recepção.

...a técnica eletrônica lhe permitiu trabalhar com a superposição de inúmeras camadas sonoras que, embora se movimentassem internamente, soam quase estáticas em seu aspecto global. Quanto maior for o grau de movimentação de uma voz ou camada, tanto mais estática ela aparecerá em termos receptivos (CASNOK, 2003: 143-144).

A temporalidade e a espacialidade tornam-se plásticas e voláteis para Ligeti. A flexibilidade viabilizada pela multidimensionalidade da música e a multissensorialidade do ouvinte favorecem para que ocorram “expressões

musicais contrastantes”: uma que se caracteriza pela vivência de estaticidade, do continuun sonoro, e outra que se apreende por seu caráter episódico de evento, de acontecimento descontínuo (CASNOK, 2003 : 144). A ambivalência

entre contínuo e descontínuo é fundamento da proposta ligetiana.

O reconhecimento internacional surgiu com a técnica do brouillage47

47

Brouillage, do verbo brouiller, misturar. O termo vem do vocabulário da eletrônica e significa a superposição de uma emissão radiofônica sobre outra, tornando-as ininteligíveis. Em música, é o resultado sonoro da superposição cerrada de uma quantidade muito grande de vozes que anula a percepção das linhas individuais e das alturas, realçando o timbre do conjunto. Os efeitos de brouillage introduzem o ouvido nos chamados “campos sonoros”, nos quais se percebem massas de sons que se movem e se transformam em seu aspecto global e não em detalhes internos (CASNOK, 2003: 141).

, a mistura de sonoridades desfazendo a noção de onde estão nitidamente os elementos que compõe o conjunto sonoro. O resultado foi a micropolifonia. Durante o período que esteve em Estocolmo (1972) Ligeti participou do grupo

Fluxus e utilizou em suas produções as discussões entre os conteudistas e

formalistas, provocadas por John Cage. O silêncio, as pausas sonoras foram abordadas sob a influência de Cage, e Ligeti se aproveitou dessas discussões de modo crítico e irônico, experimentando a despeito da reprovação das escolas e críticos ortodoxos. Seus trabalhos posteriores e pesquisas buscavam menos densidade e extensionalidade. Casnok afirma ter Ligeti chegado a

“tramas polifônicas mais leves” (CASNOK, 2003: 154), se despedindo do brouillage. “O Continuun para cravo é uma obra exemplar a esse respeito. Nela, revela-se de forma clara a maneira pela qual o compositor desenvolveu a