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É a figura do diabo que liga a seqüência anterior à Sq3 - nomeada Em busca da sombra. Na Sq2 Maria tem a primeira visão de Asmodeu, um homem da cintura para cima e um carneiro da cintura para baixo, feio e manco. Maria o vê na frente de uma fornalha, para onde são levados os feixes de madeira para virar carvão. É para esse demônio que os Meninos Carvoeiros trabalham e para ele que eles venderam sua sombra. Na Sq3 Maria descobrirá que o diabo, “carfute mardito”, não tem apenas aquela primeira feição de metade homem e metade animal, ele também pode ser um lindo lorde cigano com trajes sensuais e caminhar dançante. Ainda nessa seqüência, Maria aprenderá o valor de uma verdadeira amizade ao conhecer a personagem de Zé Cangaia e novamente provará sua coragem ao desafiar Asmodeu.

A Sq3 é importante para o segmento narrativo de Maria. Depois de ter fugido de casa e enfrentado o calor e a sede no País de Sol a Pino, Maria conhecerá duas personagens Zé Cangaia e Asmodeu. Nessa seqüência, aparentemente a personagem de Zé Cangaia não terá muita importância. Sua história será retomada na Sq7 na qual Maria e ele se reencontrarão. Já Asmodeu será um antagonista muito especial que a acompanhará até o final. A Sq3 expõe a razão ou o motivo pelo qual Asmodeu começa a perseguir Maria e não sossegará enquanto não a destruir. Asmodeu desdobrar-se-á em sete personalidades – Asmodeu bonito, Asmodeu sátiro, Asmodeu brincante, Asmodeu mágico, Asmodeu velho, Asmodeu

poeta e Asmodeu original – cada uma com uma aparência diferente para acabar com a felicidade de Maria.

Para a realização da análise estrutural da Sq3 examinou-se o segmento temporal da seqüência a partir de três vertentes narrativas: a de Zé Cangaia, a de Asmodeu e a de Maria, deixando as linhas narrativas do Pai e da Madrasta suspensas, pois seguem por caminhos paralelos - ambos estão na estrada a procura de Maria. O conteúdo narrativo desses caminhos paralelos é preenchido por catálises e informantes, até essas personagens secundárias atingirem seu objetivo, o encontro com Maria. As msqs analisadas serão, portanto, as que relatam o encontro de Maria com Zé Cangaia, em que ela tenta impedir que ele venda a sombra para Asmodeu; a invocação desse diabo; o desafio e a esperteza de Maria ao negociar com Asmodeu, o que configurará um índice importante na luta do bem contra o mal; a recuperação da sombra do amigo; e a partida de Maria.

Maria caminha numa estradinha que vai dar num vilarejo, no dia da Festa de São José, de onde, ao chegar, ela já ouve a cantoria. Nesse povoado ocorre a primeira transformação de Asmodeu, que aparece disfarçado num belo lorde cigano, com jeito de conquistador, que caminha dançando ao som de uma música. Tais informantes descrevem o local e justificam porque há tantas pessoas reunidas. Abre-se, então, uma função catálise combinada com informantes, no ponto em que a linha narrativa de Maria encontra a de Zé Cangaia: a menina acompanha com o olhar os passos do cigano, que se aproxima de Zé Cangaia, um simplório camelô que vende os “apitos de chamar pomba”. Asmodeu bonito está tentando convencer o camelô a trocar a própria sombra por um sanduíche. Maria fica estupefata ao entender o que estão negociando e reconhece o diabo que roubou a sombra dos Meninos Carvoeiros (informação obtida na Sq2). Zé Cangaia conhece Maria quando ela interfere tentando convencê-lo a não aceitar a troca. Essa ação inicia a primeira msq: “Mai num fai uma desgraça dessa, moço!” O diabo retruca: “menina que num fecha o bico num casa com moço rico!” Maria enfrenta Asmodeu bonito: “fecha o bico já morreu, quem manda no que digo sou eu”. Maria não convence Zé e fica apenas observando o diabo roubar-lhe a sombra. A ação de Maria - tentar impedir

que um desconhecido caia em desgraça - revela índices de sua índole. Maria preocupa-se com as pessoas, zelando pela instauração do bem.

Após a abertura da primeira mqs, seguem-se catálises que estabelecem ações menores dentro do percurso narrativo, produzindo o tempo necessário para a abertura do próximo núcleo. Asmodeu bonito que ficara muito irritado com a menina, desaparece e vai tentar atormentar o Pai, que estava à procura de Maria, descontando nele a raiva que já sentia pela filha. O diabo materializa-se agora como Asmodeu sátiro. Ele sorri malévolo ao avistar o Pai, com quem dialoga oferecendo- se para acompanhá-lo e procurando convencê-lo a desistir da busca, enquanto tenta roubar-lhe a sombra. O encontro de Asmodeu com o Pai configura uma intersecção, sob a forma de catálise, entre as linhas narrativas dessas duas personagens, o que não interfere na linha de ações de Maria.

Novas ações catalíticas seguem: Zé Cangaia arrepende-se do negócio e Maria resolve ajudar a recuperar a sombra roubada. A ação desenvolve-se com uma catálise: encontram uma camponesa, que ensina a menina a fazer, na encruzilhada, uma invocação que obrigará o diabo a aparecer. Antes do encontro, porém, retardando a narrativa, a imagem apresenta Maria de cócoras, segurando um chapéu no chão. Os informantes alertam para o fato de ter cocô embaixo do chapéu e não um passarinho como Maria falará ao diabo. Tais ações menores preparam a função núcleo que objetiva recuperar a sombra de Zé. Maria percebera que Asmodeu é curioso. Quando ele aparece, fala-lhe do encanto do passarinho até que o demônio aceita disputar com Maria a sombra de Zé Cangaia, sob a seguinte condição:

A sombra de Zé Cangaia já tá fisgada. É só um prazo pra começá a puxá o corpo e a arma dele na minha linhada. Mai ocê me interessa muito, menina! Premero vô lhe fazê treis pergunta. Despois ocê me fai um desafio. Se ocê ganhá, devorvo a sombra dele. Se perdê, sua sombra é minha. (Hoje é dia de Maria, 2005)

A estratégia usada por Maria – dizer que tem um passarinho embaixo do chapéu - reforça o índice de esperteza da menina. Maria vence o desafio e recupera a sombra de Zé. Os dois se afastam, e Asmodeu, que quer pegar o “passarinho”

debaixo do chapéu, fica furioso quando percebe que foi enganado. Por esse motivo, a heroína ganha um inimigo implacável, Asmodeu, o “coisa ruim”. Então, a função núcleo de fechamento de duas msqs – Maria recuperar a sombra de Zé Cangaia – colabora para o desenvolvimento de outra função núcleo e informante. A informação que segue é de que o diabo ficara extremamente irritado ao ser enganado por Maria e deseja vingança, ou seja, ela acaba de ganhar um inimigo que não medirá esforços para acabar com sua felicidade, uma vez que o venceu por sua esperteza: “Essa ocê levô, mai num perde por esperá. De hoje em diante eu vô tá no seu rasto. Vô ficá de tocaia no seu carreiro, menina!” E, função núcleo – partida de Maria sem Zé – na qual ela retoma sozinha sua jornada rumo às franjas do mar. A abertura dessa função núcleo encontrará seu correlato na Sq7. Maria e Zé Cangaia seguem viagem, mas este deixa Maria na metade do caminho alegando que o lugar dele é ali e que cada um tem sua sina. Na despedida falam sobre a amizade que um sente pelo outro: “Daquelas que já num tem muito uso hoje em dia... é pedra que num gasta ... e é tomém delicado de flor, amizade nossa é palavra que não sei nem dizê, sei senti só”. Tais ações de Zé Cangaia interferirão diretamente no percurso narrativo de Maria: o fato de ele vender sua sombra, recuperá-la com a astúcia de Maria e, principalmente, a decisão de ficar naquele lugar e deixar Maria partir. Essa última ação possibilitará a Maria seguir sua jornada sozinha e, assim, merecer e ter seu ritual de passagem – da infância à idade adulta. Asmodeu observa-os de longe com muita inveja, deseja que Maria sofra. Maria segue o caminho cantando: “alecrim, alecrim dourado...”.