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A Sq1, denominada No sol levante, é introdutória de Hoje é dia de Maria – jornada um (2005), na qual se apresentam as principais personagens da microssérie. A expressão de abertura do texto televisivo “Longe, num lugar ainda sem nome, havia uma pobre família desfeita e era uma vez uma menina chamada Maria“ é um informante que remete o espectador para um tempo e espaço indefinidos. Não há indicativo de ano ou nome do local onde se passa a história da menina. A indefinição cronológica e espacial sugere um illo tempore, pode ter acontecido, ou estar acontecendo em qualquer lugar do Brasil. A expressão é proferida por uma voz feminina, uma narradora que não aparece fisicamente na imagem televisiva, e que configurará um importante índice ao longo da história.

14 As linhas contínuas estabelecem as relações entre as vertentes de ação das personagens e as linhas tracejadas demonstram a abertura e o fechamento de microsseqüências.

A narrativa inicia com a imagem de Maria, menina prendada, que vive com seu Pai, dono de um sítio em decadência, pois, com a morte da esposa e a partida dos filhos, o Pai entrega-se à bebida, descuida da plantação e maltrata a filha. Numa dessas bebedeiras, o Pai sonha com a volta da esposa, dos filhos e do tempo de fartura. Chama por Maria, que obedece ao seu chamado. Ele agarra a menina tentando beijá-la na boca. Maria chora, debatendo-se para livrar-se dos braços do Pai. Ima vizinha viúva e sua filha Joaninha, uma menina gorducha que comia o tempo todo, passavam pelo sítio e ficam espiando a cena. Im Pássaro Incomum que também observava Maria, com o bater de suas asas em seu vôo rasante, assusta o Pai, e a menina escapa e refugia-se num mato próximo. A viúva segue Maria e dá-lhe um favo de mel. Tal acontecimento resulta no casamento do pai da menina com a viúva. Depois do enlace, na ausência do Pai, a Madrasta passa a perseguir Maria conferindo-lhe tarefas árduas da lida doméstica e da roça, que culminam com a morte da menina. O Pai encontra Maria, que revive. Enquanto, indignado, o Pai briga com a Madrasta, Maria foge de casa rumo às franjas do mar, levando sua chavinha.

Na Sq1, acima reproduzida, aparecem três linhas ou vertentes narrativas: a de Maria, a do Pai e a da Madrasta e Joaninha. A evolução discursiva das personagens processa-se por meio de microsseqüências (msq) constituídas por funções núcleo, catálises, índices e informantes (ou informações) que compõem a história. Tais linhas estruturam-se na sucessão dessas unidades narrativas que organizam as ações a partir de núcleos solidários, complementados pelas demais funções. A sucessão das ações da Sq1 articulam as funções núcleo em quatro episódios: a agressão do Pai, o casamento do Pai com a viúva, a morte de Maria e sua volta à vida. Quanto às funções: catálises, índices e informantes – serão analisadas a partir dos seguintes tópicos: Maria pede proteção à Nossa Senhora e acende uma vela, o Pássaro Incomum salva Maria, uma borboleta amarela pousa sobre o corpo da menina.

A primeira função núcleo a ser descrita e analisada apresenta a figura do Pai que, bêbado, agride sua filha. Em volta desse núcleo giram catálises, índices e informações. Pelos informantes sabe-se que o Pai é dono de um sítio, onde vivia

feliz com a mulher e os filhos. Mas algo perturbou essa ordem, como refere o Pai: “o mundo sartô fora dos eixo”. Perde a esposa e os filhos partem para trabalhar nas plantações dos japoneses. O Pai torna-se bêbado e descuida da plantação. Tais informações apresentam-se sob a forma de analepses, nas cenas iniciais da microssérie e é por meio de um monólogo do Pai que se toma conhecimento das causas da decadência da propriedade e da transformação da personagem.

Cadê vancês, meu fio?! Vorta já! Vorta cuidá do nosso sitiozinho mó dele vortá pra queles tempo de fartura ... quando tristeza era coisa rara de vê e o mal inté que campeava por permissão de Deus, mai num regia o viver nosso .... Vorta, meus fio, e tudo ... Vorta, minha ... Vorta, minha muié ... O que foi feito d'ocê, meus óio d'água. (Hoje é dia de Maria, 2005)

À agressão à Maria, núcleo que abre a primeira msq, segue-se o imbricamento de um índice e uma catálise: Maria acende uma vela para Nossa Senhora da Conceição e pede proteção para ela e para o pai. Enquanto reza, Maria segura a chavinha que ganhara da Mãe (objeto mágico), e que vai abrir um tesouro que se esconde no caminho das franjas do mar. A oração é um índice do caráter bom da menina, que entende a agressão do Pai e pede proteção para ambos à santa de sua devoção. Essa catálise estabelece o espaço de tempo necessário para a próxima ação – repete-se a agressão do Pai à Maria, mais grave pois tenta violentá-la – função núcleo que vai encaminhar a tentativa de solução do conflito entre pai e filha, o casamento do Pai com a viúva. Antes, porém, distendendo a narrativa, surge um Pássaro Incomum que ataca o Pai, livrando Maria do perigo. A ação do Pássaro configura o imbricamento de duas funções: uma catálise, pois representa uma solução provisória, e um índice da natureza misteriosa do Pássaro que, desse momento em diante, torna-se companheiro de Maria.

Quando Maria foge do Pai, seguem-se dois novos núcleos que, sem intercurso de outras funções, aceleram o ritmo da narrativa, um dos núcleos abre e outro logo fecha essa msq: Maria pede que seu pai case com a viúva e eles se casam. A cena da agressão fora assistida pela viúva que se aproximou de Maria e lhe ofereceu mel. Tal catálise é também índice, pois está revelando intenções por parte da viúva, que oferece mel para a menina com o intuito de acalmá-la e mostrar que quem oferece mel não tem desejo de agredir. Maria aceita a oferta e,

deliciando-se com um pedaço de favo, escuta atenta o que a viúva lhe diz: que o pai deve arrumar uma companheira para sossegá-lo e para ajudar na lida da casa. De tal argumentação resulta o casamento do Pai com a viúva.

Puis é isso ... Im home feito o nhor seu pai ... ainda tão moço ... num havera de ficá viúvo nesses tanto de tempo ... Havera de arrumá uma cumpanhera mó de acarmá o facho ... E adespoi vancê, uma crilinha ainda tão fracotinha, pra dá conta suzinha de cuidá dos arranjos dum sitião que nem esse, tá certo? (Hoje é dia de Maria, 2005).

Realizado o casamento, Maria novamente pede a proteção de Nossa Senhora, para a qual acende uma vela que diz ser sua alminha (índice). A Madrasta escuta esse segredo escondida (índice). A ação de acender a vela, que passa a significar a alma de Maria, é outro índice importante que se torna catálise no desenrolar da história. O Pássaro, a vela e a chavinha remetem a narrativa ao universo maravilhoso dos contos de fadas.

Abre-se, então, outra microsseqüência com a função núcleo da partida do Pai para contratar um empréstimo visando a recuperar o sítio. Na ausência do Pai, Maria é quem realiza todas as tarefas domésticas – ações catalíticas intermediárias que apresentam também a característica de informantes. Essas ações catalíticas estabelecem relações com a linha de ações da Madrasta, revelando, sob forma de índices, aspectos sombrios do seu comportamento e caráter. Tal msq permanece aberta até o retorno do Pai. Nesse meio tempo outros núcleos marcam a abertura de nova msq: Maria não realiza uma tarefa difícil imposta pela Madrasta (Maria adormece e os passarinhos bicam todas as frutas); seu desenvolvimento: (a Madrasta agride Maria, ocasionando-lhe a morte); e seu fechamento: (a menina volta à vida quando o Pai a encontra com a ajuda dos meios mágicos, o capim, e a canção entoada por Maria).

As catálises interpostas referem que Maria deveria cuidar das jabuticabas e espantar os passarinhos para não comerem as frutas maduras, pois, segundo a Madrasta, sua filha Joaninha não gostava de fruta bicada (informação). O ato de acender a vela, com valor de índice (unidade integrativa), representa uma catálise, (unidade distributiva), ao se inverter a ação – apagar a vela – concorrendo para o

desenvolvimento da narrativa. Ao se apagar a chama, a alma da menina morre, ela desfalece no lugar onde caiu e uma borboleta pousa em seu peito. Nesse lugar cresce um lindo e verde capinzal que vai sinalizar onde se encontra o corpo de Maria.

O Pai volta e não encontra Maria – função núcleo que se caracteriza pelo fechamento de msq aberta no momento da partida e por abrir uma nova msq cujo correlato é o encontro com Maria - a Madrasta mente, dizendo que a filha havia fugido (catálise e informante). O Pai sai com uma garrafa de cachaça (catálise e índice); enxerga uma borboleta amarela que dança na sua frente e resolve segui-la; o Pai aproxima-se do local onde Maria está e escuta uma cantiga reconhecendo a voz da filha: “Meu querido, nhor pai, não me cortes os cabelos, minha mãe me penteou, minha madrasta me enterrou, pelo figo da figueira que o pássaro bicou, Chô! Passarinho!” (catálise e índice); o Pai arranca os capins e encontra Maria (núcleo de fechamento da msq - Pai volta). A chama da vela junto à imagem de Nossa Senhora volta a brilhar e Maria revive. Tal acontecimento traz imbricadas duas funções: catálise pois diz que Maria vive depois que a chama se acende, e índice porque aproxima a microssérie da realidade dos contos de magia. A função núcleo que relata a morte de Maria encontra seu correlato quando o Pai a encontra e ela vive.

O Pai leva Maria para casa e discute com a Madrasta. Essa catálise e informante estabelece a relação da função núcleo que abre a msq final desta parte (que fica em aberto até o fim da narrativa) com todas as ações anteriores: Maria então resolve partir e ir procurar seu tesouro. Seguem-se várias informações: Joaninha escuta Maria dizer que vai em busca do tesouro; o Pai percebe que Maria fugiu; a Madrasta diz que o sol vai matá-la pois nessas estradas nunca faz noite e amaldiçoa Maria: “ocê vai morrê esturricada”. Maria foge rumo às franjas do mar com sua chavinha. A função núcleo que abre a msq – fuga de Maria – e o que dela decorre, serão tema das seqüências subseqüentes.

Na Sq1 as personagens secundárias Pai, Madrasta e Joaninha executam ações que só poderão ser consideradas funções núcleo, na medida em que

interferem na história de Maria e nas principais ações dessas personagens secundários que culminam no encontro com ela. Quanto ao Pai, o núcleo que abre a narrativa – a agressão à Maria – tem sua função correlata de fechamento na sexta seqüência, pois sua atitude provocará um sentimento de culpa e ele partirá em busca da filha, para pedir perdão.