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6. Estudo 3: Proposição de modelo conceitual para explicar o perfil neuropsicológico de

6.1.2. Sequelas associadas ao tratamento radioterápico em crianças com

O SNC em desenvolvimento é bastante vulnerável à ação da radioterapia, razão pela qual esta estratégia terapêutica acarreta danos significativos ao funcionamento cognitivo. No caso de crianças com meduloblastoma de fossa posterior há, inicialmente, um processo de lesão cerebral mecânica focal que atinge principalmente as estruturas cerebelares. Trata-se de um processo expansivo, comumente associado ao aumento da pressão intracraniana, à

hidrocefalia e a processos inflamatórios, sucedidos por possível perda tecidual e celular provocada pela ressecção tumoral.

Este encadeamento de eventos já exige a atuação de mecanismos de reorganização maturacional e, isoladamente, é capaz de produzir um desvio importante no curso do desenvolvimento. Todavia, diante de um tumor com alto risco de recidiva e alto potencial metastático, o tratamento é complementado com quimioterapia sistêmica e altas doses de radioterapia crânio-espinhal. Esta nova fonte de danos atinge principalmente os mecanismos maturacionais envolvidos na mielogênese/mielinização, havendo numerosas evidências de prejuízos à substância branca em pacientes com meduloblastoma a partir de dados de ressonância magnética quantitativa (Aukema et al., 2009; Hua et al., 2012; Law et al., 2011; Ojemann et al., 2013; Palmer et al., 2012; Reddick et al., 2014; Riggs et al., 2014).

Por essa razão, a já árdua tarefa de reorganização maturacional a ser empreendida pelas estruturas nervosas se torna ainda mais complexa, impondo-lhes um grande desafio em termos de adaptação e plasticidade. Em casos de lesão, a plasticidade atua como um mecanismo de reparação que permite ao cérebro se reorganizar através da remielinização, da reorganização dos circuitos e/ou da compensação neural e funcional (Dennis et al., 2013).

Uma vez que a substância branca cumpre um papel essencial na promoção de novas conexões, tanto no desenvolvimento típico quanto em casos de lesão, as sequelas da radioterapia sobre a substância branca criam um ambiente hostil à atuação da plasticidade neural, de modo que as próprias chances de compensação neural e funcional são reduzidas através da inibição da regeneração axonal e da remielinização (Cantelmi, Schweizer & Cusimano, 2008; Follett, Roth, Follett & Dammann, 2009; Rodgers, Trevino, Zawaski, Gaber & Leasure, 2013). Adicionalmente, tendo em vista que a radioterapia produz um dano cuja distribuição é difusa, por vezes o tecido nervoso saudável preservado é escasso, de modo que

as possibilidades de deslocamento de uma função comprometida para outras regiões corticais via plasticidade pode ser limitada (Anderson, Spencer-Smith & Wood, 2011).

Dessa forma, lesões como as que ocorrem entre os sobreviventes de meduloblastoma acarretam não apenas efeitos imediatos, de curto ou médio prazo, mas ao comprometer a substância branca existente e a sua formação futura, prejudicam a adaptabilidade e o próprio processo de reorganização do sistema nervoso em desenvolvimento, cujos efeitos tardios podem incidir sobre funções que ainda não se desenvolveram (Chapman & McKinnon, 2000). A substância branca possui alta atividade metabólica e baixa estabilidade nos primeiros estágios maturacionais, de modo que os danos produzidos pela radiação são fortemente mediados pela idade ao diagnóstico e pela dosagem administrada. Estudos afirmam que, quanto mais precoce a submissão à radioterapia de crânio, bem como quanto maiores as dosagens administradas, maiores são as complicações cognitivas resultantes (Anderson & Kunin-Batson, 2009; Moxon-Emre et al., 2014).

Devido ao seu forte impacto sobre o SNC imaturo, atualmente os protocolos de tratamento voltados para crianças menores de três anos ao diagnóstico são estruturados de modo a evitar o uso da radioterapia através da inserção de altas doses de quimioterapia até que a criança atinja uma idade em que o uso da radiação seja mais seguro e menos danoso às estruturas cerebrais em desenvolvimento (Duffner, 2010; Palmer et al., 2007). Adicionalmente, têm-se empreendido esforços em busca da redução das dosagens da radioterapia, notadamente através da redução das margens de administração na fossa posterior e da proteção dos loci de neurogênese, com obtenção de melhores resultados cognitivos (Brodin et al., 2014; Marsh, Gielda, Herskovic & Abrams, 2010; Moxon-Emre et al., 2014; Tiwari, Phansekar, Panta & Huilgol, 2011; Vogelius et al., 2012).

A despeito dos esforços para reduzir a toxicidade da radioterapia, um grande percentual de crianças submetidas à radiação de crânio experimenta atrasos acadêmicos e

dificuldades de aprendizagem. A radiação craniana afeta o ritmo de desenvolvimento cerebral após o tratamento através da interrupção da produção da mielina e das conexões neurais que normalmente acontecem ao longo do crescimento da criança (Law et al., 2015; Palmer et al., 2007; Palmer et al., 2013; Saury & Emanuelson, 2011).

Os déficits cognitivos apresentados por estas crianças, em geral, tendem a se manifestar progressivamente – uma vez que prejudicam os substratos cognitivos que respaldam o desenvolvimento das funções psicológicas superiores – e costumam envolver a capacidade intelectual e o desempenho acadêmico (especialmente a atividade matemática), a memória, a atenção, as funções executivas e a velocidade de processamento (Law et al., 2015; Palmer et al., 2007; Palmer et al., 2013; Saury & Emanuelson, 2011).

Estudos demonstram que a perda de substância branca provocada pela radioterapia é generalizada ao longo de todo o tecido cerebral, com efeitos deletérios em regiões hipocampais, reconhecidas pelo seu importante papel enquanto lócus primário de neurogênese (Nieman et al., 2015; Rodgers et al., 2013). O impacto do tratamento sobre a mielinização, vascularização e a supressão da proliferação de células parece estar no cerne das alterações cognitivas encontradas em pacientes submetidos à radioterapia de crânio (Brinkman et al., 2012; Duffner, 2010; Palmer et al., 2012; Rieken et al., 2011; Watanabe et al., 2011).

Uma vez que, em condições normais, a função da bainha de mielina é garantir a velocidade na transmissão sináptica, os prejuízos à substância branca provocados pelo uso da radioterapia resultam em declínios importantes na velocidade de processamento (Aukema et al., 2009; Palmer et al., 2012; Reddick et al., 2014). Tal prejuízo resulta no comprometimento da aquisição de novas aprendizagens e habilidades cognitivas em um ritmo semelhante e comparável ao de crianças saudáveis de mesma idade e escolaridade, produzindo contínua defasagem em relação às normas etárias e podendo levar a declínios intelectuais progressivos

(Mabbot et al., 2008; Maddrey et al., 2005; Noggle & Dean, 2013; Palmer et al., 2001; Palmer et al., 2007; Palmer, 2008).

Tendo em vista que atualmente existe consenso a respeito da neurotoxicidade do tratamento antineoplásico direcionado ao SNC, estudos mais recentes têm empreendido esforços em busca da compreensão dos mecanismos neurofisiológicos subjacentes às lesões e às perdas cognitivas decorrentes do câncer e de seu tratamento (Ki Moore, Hockenberry & Krull, 2013). Nessa direção, diversos pesquisadores têm utilizado sofisticadas técnicas de imagem para a investigação de alterações microestruturais na substância branca após o tratamento. A técnica mais utilizada para este fim é a Imagem por Tensor de Difusão (em inglês: Diffusion Tensor Imaging – DTI), que consiste em um método quantitativo de imagem por ressonância magnética que permite a investigação da integridade da substância branca, utilizando como parâmetro as características de difusão da água nos tecidos cerebrais (Hua et al., 2012; Ojemann et al., 2013).

A principal medida derivada do uso da DTI é a Anisotropia Fracionada (AF), que se baseia na premissa de que a difusão da água em tratos de substância branca é normalmente direcional ou anisotrópica, devido à estrutura ordenada dos axônios e bainhas de mielina. Em casos de desenvolvimento típico, a AF aumenta em um padrão não-linear à medida que uma criança se desenvolve, correspondendo à progressiva mielinização axonal e ao consequente desenvolvimento cognitivo (Aukema et al., 2009; Hua et al., 2012; Palmer et al., 2012). Em casos de lesão de substância branca, por outro lado, esse padrão é invertido, cedendo lugar a decréscimos importantes nas medidas de AF (Hua et al., 2012; Ojemann et al., 2013; Palmer et al., 2012).

Nessa direção, Law et al. (2011), baseados em resultados de DTI, verificou que a AF era significativamente menor em pacientes com tumores cerebrais tratados com radioterapia quando comparados com crianças saudáveis e crianças submetidas apenas à cirurgia em

diversas áreas de substância branca, notadamente nas áreas posteriores do cérebro e nos tratos que ligam o hemisfério cerebelar direito e o córtex pré-frontal dorsolateral via tálamo. Esse estudo concluiu ainda que estas alterações reduzem a eficiência na comunicação entre o cerebelo e os lobos frontais – levando a déficits na memória de trabalho – e que a idade ao diagnóstico e o tempo decorrido após o tratamento levam a piores resultados em termos de integridade de substância branca (Law et al., 2011).

Em outra investigação através dos mesmos métodos de imagem, Palmer et al. (2012) exploraram as relações entre a microestrutura da substância branca em tratos adjacentes ao corpo caloso e a velocidade de processamento em pacientes com tumores de fossa posterior. Os pacientes foram avaliados 36 meses após o tratamento quimioterápico e radioterápico e obtiveram medidas de AF significativamente menores em todos os feixes de fibras investigados. Tais medidas apresentaram correlação positiva com a idade da criança ao diagnóstico. Mais especificamente, três feixes de fibras apresentaram medidas de AF em correlação positiva com o escore global de velocidade de processamento: corpo caloso, radiação pós-talâmica e cápsula externa. Assim, os resultados sugerem que, quanto mais baixa a idade ao diagnóstico, maior é o risco de redução de AF no corpo caloso, indicando prejuízos de substância branca em importantes fibras comissurais, perda que se associa intimamente a declínios na velocidade de processamento. Os autores sugerem que os efeitos tóxicos da radiação craniana sobre o corpo caloso podem resultar em danos à mielinização pré-existente, na interrupção da mielinização em curso e na emergência de isquemia e infarto (Palmer et al., 2012).

Estudo conduzido por Riggs et al. (2014) também foi investigado o impacto do tratamento do meduloblastoma sobre funções de memória e aprendizagem – medidas através de instrumentos padronizados – e sua relação com danos à substância branca em estruturas cerebrais associadas à aprendizagem e memória, notadamente o hipocampo e o fascículo

uncinado. Os participantes do grupo clínico apresentaram volumes significativamente menores de substância branca quando comparados com crianças saudáveis. Adicionalmente, verificou-se que os pacientes sobreviventes de meduloblastoma apresentaram AF mais baixa no fascículo uncinado e menores volumes hipocampais quando comparados às crianças saudáveis. Verificou-se ainda que a AF do fascículo uncinado esquerdo e o volume do hipocampo direito apresentou importante correlação positiva com medidas de memória (Riggs et al., 2014).

Os estudos sugerem que os tratos de substância branca dos lobos frontal e parietal, do hipocampo, do corpo caloso e das conexões cerebelo-frontais parecem ser mais suscetíveis a danos causados pelo tratamento antineoplásico, notadamente o tratamento radioterápico (Blomstrand et al., 2012; Palmer et al., 2012). Dado que tais estruturas são essenciais ao adequado funcionamento cognitivo e cumprem papel importante no desenvolvimento e na execução de funções complexas, o seu comprometimento pode resultar em grandes dificuldades intelectuais e de aprendizagem, bem como em prejuízos em nível social e afetivo.

6.1.3. Relações entre o meduloblastoma, o modelo da substância branca e a hipótese