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4. Estudo 1: Caracterização da capacidade intelectual de pacientes pediátricos diagnosticados

4.2. Tumores de Fossa Posterior: caracterização, tratamento e impacto cognitivo

Em crianças, os tumores de SNC são mais comuns na região infratentorial ou fossa posterior – nomenclatura utilizada para designar a região localizada abaixo do tentório ou tenda do cerebelo, sendo esta a estrutura mais atingida por tais neoplasias (Furrer & Suzuki, 2003; Hanzlik et al., 2015). Na fossa posterior, dentre os tipos de tumores mais comuns encontram-se os meduloblastomas, tumores embrionários de linhagem neuroectodérmica, e os astrocitomas pilocíticos, tumores de origem neuroepitelial (Hanzlik et al., 2015; Mabbott et al., 2008; Vaquero et al., 2008).

Os astrocitomas geralmente estão associados a curso clínico relativamente benigno – apresentando taxa de sobrevida de aproximadamente 90%. A lentidão mitótica de suas células, associada à sua natureza histológica discreta e bem circunscrita, favorece a ressecção

cirúrgica completa e a dispensa de tratamentos anti-neoplásicos complementares (Aarsen et al., 2009; Becker et al., 2010; Hanzlik et al., 2015).

Os meduloblastomas, por sua vez, são tumores associados a curso clínico maligno, com histologia caracterizada por alta celularidade e grande potencial mitótico, elevado poder infiltrativo e forte propensão à disseminação através do líquor e ao longo do neuro-eixo. Tais fatores acarretam, em geral, dificuldades para se obter a ressecção completa do tumor e a elevação da possibilidade de recidivas, caraterísticas que levam à necessidade de intervenções terapêuticas complementares: quimioterapia sistêmica e radioterapia crânio-espinhal acrescida de reforço na fossa posterior ou no leito tumoral (36 Gy nas vias crânio-espinhais, seguida de dose adicional de reforço em fossa posterior, resultando num total de aproximadamente 54 a 56 Gy) (Aquilina, 2013; Hanzlik et al., 2015; Massimino et al., 2011; Klesse & Bowers, 2010; Schmidt, Brunetto, Schwartsmann, Roesler & Abujamra, 2010). Ressalta-se, entretanto, que em crianças menores de três anos ao diagnóstico, a quimioterapia é utilizada como forma exclusiva de tratamento, sendo administradas altas doses com vistas ao controle da doença sem o recurso à radioterapia, ou retardando o seu uso, quando este for indispensável à sobrevida da criança (Duffner, 2010; Furrer, 2003; Klesse & Bowers, 2010)4.

Tais estratégias terapêuticas têm sido bem-sucedidas no controle da doença e na garantia da sobrevida da criança. Contudo, tanto a lesão neoplásica e seus efeitos expansivos, quanto a terapia adjuvante administrada de forma isolada ou combinada, encontram-se na condição de potenciais agentes neurotóxicos, podendo acarretar importantes alterações ao curso de desenvolvimento cognitivo da criança (Butler & Haser, 2006; Duffner, 2010; Gudrunardottir et al., 2014; Moxon-Emre et al., 2014; Nathan et al., 2007; Palmer et al., 2007; Palmer et al., 2013; Rieken et al., 2011). Por tal razão, o foco dos profissionais de saúde nos

4 Em geral, o tipo de tratamento a ser adotado é determinado por uma conjunção de fatores clínicos importantes,

dentre os quais se destacam a classificação de risco da doença, a idade da criança, a natureza da lesão, sua localização, presença/ausência de metástase e o volume de tumor residual após a ressecção cirúrgica (Klesse & Bowers, 2010; Massimino et al., 2011).

últimos anos tem sido a busca pela compreensão, prevenção e/ou minimização das sequelas comumente experimentadas por essa população nos domínios psicoafetivos, sociais e cognitivo-acadêmicos, tentando encontrar o delicado equilíbrio entre a garantia da eficácia terapêutica, por um lado, e a garantia da qualidade de vida das crianças sobreviventes, por outro (Butler & Haser, 2006; Duffner, 2010; Gudrunardottir et al., 2014; Hazin et al., 2011; Moxon-Emre et al., 2014; Nathan et al., 2007; Palmer et al., 2007; Rieken et al., 2011).

Em geral, tais tumores acarretam: 1) déficits relacionados à localização em fossa posterior, como disfunções motoras e prejuízos cognitivo-afetivos e executivos (estes últimos reconhecidos recentemente) e; 2) déficits decorrentes da administração da terapia adjuvante, em se destacando disfunções na visoespacialidade, visoconstrução, atenção, memória e velocidade de processamento (Law et al., 2015; Levisonh, Cronin-Golomb & Schmahmann, 2000; Palmer et al., 2013; Saury & Emanuelson, 2011; Palmer et al., 2007; Riva & Giorgi, 2000; Steinlin et al., 2003). É importante ressaltar que as alterações cognitivas resultantes podem variar de uma criança para outra, uma vez que sua natureza e extensão emergem a partir da interação entre o tipo de lesão, a sua localização e o contexto maturacional do sistema nervoso central, intimamente relacionado à idade e nível de desenvolvimento apresentado pela criança.

No que diz respeito ao primeiro grupo de déficits, destaca-se que vêm sendo acumuladas evidências de que as regiões cerebelares possuem distintas especializações funcionais: uma região sensório-motora, localizada em regiões específicas do lobo anterior, e uma região neurocognitiva e afetiva, localizada em partes específicas do lobo posterior, de modo que, a depender do local lesionado, padrões distintos de alteração podem emergir (Mariën & Beaton, 2014). Lesões no hemisfério cerebelar direito predominantemente estão associadas a alterações em funções de linguagem e memória verbal, enquanto lesões do hemisfério esquerdo cerebelar são associadas a dificuldades na realização de tarefas não-

verbais e de memória visual, achados que se justificam pela natureza cruzada das vias cerebelares (Bugalho, Correa & Viana-Baptista, 2006; Di Rocco et al., 2010; Riva & Giorgi, 2000).

Déficits em funções cognitivas superiores, tais como alterações psicoafetivas e executivas de caráter pré-frontal, também têm sido relatados como consequência de lesões cerebelares (Aarsen et al., 2009; Beebe et al., 2005; Bugalho et al., 2006; Levisohn et al., 2000; Mariën & Beaton, 2014; Miller et al., 2010; Morris et al., 2009; Riva & Giorgi, 2000; Stargatt, Anderson & Rosenfeld, 2002; Steinlin et al., 2003). A existência de conexões recíprocas do cerebelo com áreas associativas terciárias, dentre as quais se destacam as conexões cerebelo-frontais, estariam subjacentes aos sintomas executivos observados e às alterações nas demais funções complexas (Bodranghien et al., 2015; Guerra, 2008; Mabbott et al., 2008; Mariën & Beaton, 2014; Moore III, 2005; Murdoch, 2010; Riva & Giorgi, 2000; Stargatt et al., 2002).

O cerebelo é parte de um sistema neural distribuído que possui conectividade recíproca com os lobos frontais, através dos circuitos cérebro-cerebelares de substância branca. Destaca-se a importância do trato cerebelo-tálamo-cerebral como alça de feedback primária a conectar o cerebelo ao córtex frontal, comunicando os núcleos cerebelares profundos aos núcleos talâmicos através dos pedúnculos cerebelares e do mesencéfalo às regiões corticais anteriores, notadamente o córtex pré-frontal. Adicionalmente, estudos de imagem revelam que esses tratos de substância branca são ativados em tarefas de memória de trabalho, de modo que tanto o cerebelo quanto o córtex pré-frontal interagem para a produção deste domínio cognitivo (Knight et al., 2014; Law et al., 2011).

O estudo de Law et al. (2011) buscou investigar se a integridade estrutural do cerebelo e do córtex frontal se relaciona com a memória de trabalho. Para tanto, investigou 41 crianças sobreviventes de tumores de fossa posterior submetidas apenas a neurocirurgia (grupo 1) ou a

neurocirurgia seguida de quimioterapia sistêmica e radioterapia crânio-espinhal (grupo 2). Os resultados revelaram que os grupos se diferenciaram significativamente no que diz respeito à integridade da substância branca no trato cerebelo-tálamo-cerebral ou, mais precisamente, no trato que parte do hemisfério cerebelar direito e se conecta à esquerda ao tálamo e às regiões frontais. Essa conexão apresentou maior comprometimento em pacientes tratados com radioterapia de crânio, os quais também apresentaram escores rebaixados no domínio da memória de trabalho (Law et al., 2011). Impacto semelhante foi apontado no estudo de Palmer et al. (2013), que observou comprometimento atencional e de memória de trabalho junto a pacientes submetidos a radioterapia de crânio, estando mais vulneráveis aqueles submetidos a dosagens mais altas, com mais tempo fora de tratamento e cujo escore de base (previamente ao tratamento) era mais alto.

Além das evidências acima mencionadas, a participação do cerebelo em funções cognitivas e afetivas complexas teve seu reconhecimento reforçado a partir da constatação da existência de dois quadros clínicos relacionados a lesões cerebelares: a Síndrome da Fossa Posterior (SFP) e a Síndrome Cognitivo-Afetiva do Cerebelo (SCAC).

A SFP é um quadro clínico agudo, presente em aproximadamente 25% das crianças submetidas à ressecção de tumores localizados na região mediana do cerebelo, notadamente meduloblastomas – cujos sintomas, em geral, emergem entre 24 e 48 horas do período pós- operatório e duram, em média, sete a oito semanas (Gudrunardottir, Sehested, Juhler & Schmiegelow, 2011). Caracteriza-se por alterações cognitivas complexas, cuja principal manifestação é o chamado mutismo cerebelar (Catsman-Berrevoets & Aarsen, 2010; Miller et al., 2010), acrescido de distúrbios de movimento (ataxia, hipotonia, dismetria), apraxia oromotora/oculomotora e um amplo espectro de alterações afetivas e comportamentais, como labilidade emocional, irritabilidade, choro, apatia, dentre outros (Catsman-Berrevoets &

Aarsen, 2010; Morris et al., 2009; Pitsika & Tsitouras, 2013; O ’halloran, Kinsella & Storey, 2012).

A SCAC, diferentemente da SFP, consiste em um quadro de manifestação tardia e caráter mais duradouro (Catsman-Berrevoets & Aarsen, 2010), caracterizado majoritariamente por sintomatologia complexa, a saber: 1) prejuízos às funções executivas (planejamento, flexibilidade, fluência verbal, raciocínio abstrato e memória de trabalho), organização e memória visoespacial, déficits de linguagem (como agramatismo e disprosódia) e; 2) sintomas psicoafetivos, tais como mudanças de personalidade com embotamento afetivo e comportamento desinibido e/ou inapropriado (De Smet, Paquier, Verhoeven & Mariën, 2013; Lassaletta, Bouffet, Mabbott & Kulkarni, 2015; Schmahmann & Sherman, 1998; Vaquero et al., 2008).

Para além das disfunções decorrentes da localização cerebelar, crianças com tumores malignos de fossa posterior, como o meduloblastoma, costumam apresentar adicionalmente sequelas relacionadas à administração do tratamento antineoplásico complementar à neurocirurgia, composto por quimioterapia sistêmica e radioterapia crânio-espinhal, sendo esta última associada aos maiores déficits encontrados nas crianças sobreviventes. A quimioterapia, e principalmente a radioterapia, seriam responsáveis por importantes lesões microestruturais difusas à substância branca, cuja maior repercussão cognitiva consiste na redução da velocidade de processamento de informações (Aukema et al., 2009; Mabbot et al., 2008; Palmer et al., 2012; Reddick et al., 2014; Riggs et al., 2014).

Em crianças em condições normais de desenvolvimento, acredita-se que a capacidade intelectual, notadamente a inteligência fluida – definida como a habilidade de raciocinar em situações novas e pouco estruturadas que requerem autonomia intelectual, o reconhecimento e a formação de conceitos, a compreensão de implicações, resolução de problemas,

extrapolação, reorganização ou transformação de informações5 (Flanagan & Ortiz, 2001, como citado em Primi, 2002) – progride como resultado de uma cascata de aquisições cognitivas, notadamente nos domínios da velocidade de processamento e da memória operacional (Fry & Hale, 2000). Sendo a velocidade de processamento o primeiro e o principal domínio cognitivo afetado pela ação da radioterapia de crânio, sua redução implica em uma inversão na direção desse curso maturacional natural, cedendo lugar a uma progressiva redução da capacidade intelectual, a qual, segundo alguns estudos, pode chegar a quatro pontos de QI anuais (Palmer, 2008; Palmer et al., 2013).

O estudo de Hazin et al. (2011) apresenta dados nessa direção. Investigando transversalmente a capacidade intelectual de 20 crianças sobreviventes de tumores de fossa posterior, verificou que crianças com meduloblastoma fora de tratamento por três anos ou mais apresentaram resultados inferiores em todos os domínios das Escalas Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC-III), quando comparadas com crianças fora de tratamento por menos de três anos (com diferenças estatisticamente significativas nos índices Resistência à Distração e Velocidade de Processamento). Os autores sugerem que tal dado evidencia o caráter progressivo do impacto da radioterapia sobre a capacidade intelectual (Hazin et al., 2011).

Sabe-se que os efeitos da radioterapia sobre o funcionamento cognitivo se encontram intimamente relacionados à dose administrada. Investigações recentes vêm encontrando também relações importantes entre a dose da radioterapia, o volume cerebral irradiado e a capacidade intelectual. O estudo de Moxon-Emre et al. (2014) revelou que pacientes tratados com doses reduzidas de radioterapia crânio espinhal e reforço com volume restrito ao leito tumoral apresentaram trajetórias estáveis de desenvolvimento intelectual, enquanto crianças

5 Construto que contrasta com a concepção de inteligência cristalizada, entendida como a habilidade de aplicar

definições, métodos e procedimentos de solução de problemas aprendidos previamente (Fry & Hale, 2000; Primi, 2002).

tratadas com doses mais elevadas de radioterapia e reforço administrado sobre maiores volumes da fossa posterior apresentaram importantes declínios na capacidade intelectual (Moxon-Emre et al., 2014).

O estudo de Ris et al. (2013), também aponta nessa direção. Investigando longitudinalmente a capacidade intelectual de 110 pacientes com meduloblastoma de risco moderado (submetidos à dose de 23,4Gy de radioterapia crânio-espinhal seguida de quimioterapia), verificou declínios significativos nos QI’s, os quais eram mais acentuados quanto mais nova a criança na data do diagnóstico e quanto mais altos fossem os escores iniciais de capacidade intelectual. Adicionalmente, o estudo evidenciou que pacientes que apresentaram mutismo cerebelar mostraram risco maior de declínios na capacidade intelectual medida através do QI (Ris et al., 2013).

O estudo longitudinal de Merchant et al. (2014) demonstrou associações entre a dose de radioterapia sobre regiões específicas – tais como lobos temporais e hipocampo – e declínios na capacidade intelectual que, em alguns casos, atingiram quatro pontos anuais. Os autores reforçam ainda a correlação negativa entre a taxa de declínio observada e a idade da criança no momento da submissão à radioterapia. Tais resultados levaram os autores a sugerir mudanças nos protocolos de tratamento através da redução da dose de radioterapia, bem como do volume administrado, ou mudanças na distribuição das doses administradas (Merchant et al., 2014).

Atualmente, é possível compreender melhor a natureza e a extensão das alterações apresentadas pelas crianças, bem como os mecanismos fisiopatológicos a elas subjacentes (Aukema et al., 2009; Mabbot et al., 2008; Palmer et al., 2012; Reddick et al., 2014; Riggs et al., 2014). Segundo Palmer (2008), a capacidade intelectual e as habilidades acadêmicas seriam marcadores distais dos prejuízos cognitivos observados em crianças com meduloblastoma. A redução na velocidade de processamento, que guarda íntima relação com

os efeitos desmielinizantes da radioterapia, deflagraria uma cascata de déficits que culminaria em prejuízos intelectuais no domínio da inteligência fluida (Palmer, 2008).

Nesse sentido, o domínio da capacidade intelectual vem sendo largamente estudado junto a esta população como ponto de partida para a compreensão das alterações apresentadas enquanto efeitos globais, fornecendo dados de rastreio capazes de respaldar investigações futuras sobre domínios cognitivos específicos. Dado o panorama acima mencionado, e diante da necessidade de construção de dados que reflitam a dimensão brasileira e nordestina, o objetivo do presente estudo é a investigação do impacto dos tumores de fossa posterior e de seu tratamento sobre a capacidade intelectual de crianças e adolescentes.