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Ser líquido: a responsividade fridiana diante do prenúncio de tempos pós-coloniais

Diante das questões que se entrecruzam para dar cor e forma ao caminho que ora resolvemos percorrer, na intenção de melhor compreender o sujeito8 Frida, situado sócio-historicamente, compreendemos que é necessário identificar as práticas discursivas da pintora como marcas de uma constituição e construção modernas e, como diria Bauman, “leve e líquida”. Essa característica, indicada nos posicionamentos revelados nas práticas epistolares da artista, alinha-se à desconstrução dos processos “modernos e pós-modernos” (BAUMAN, 2001, p.11).

Para melhor esclarecer nossas afirmações, recorremos à voz baumaniana ao apontar para o momento em que há uma ruptura com uma tradição colonial e tal processo surge com uma guinada da modernidade. Vejamos na afirmação a seguir:

Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse intenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação”. (BAUMAN, 2001, p. 9)

Esse estado de “liquefação” que o teórico pontua é o momento em que a metáfora da liquidez se torna mais clara e adquire um sentido que nos é muito caro: a “fluidez”. Muitos irão dizer que ser “líquido” e ser “fluido” podem assumir posições sinonímicas ou iguais. No entanto, por acreditamos que não existe sinonímia neutra, que uma escolha lexical em detrimento de outra revela uma posição axiológica, é que usamos, aqui, a “fluidez” baumaniana com um sentido mais amplo e que nos atende de prontidão. Essa fluidez representa um escoamento, um estado de constante movimentação, plasticidade. Não é algo estanque encapsulado em aquários ou potes, mas um conceito de eterna construção e desconstrução. Fica mais claro o que almejamos com isso na fala de Bauman (2001, p. 8):

8 Tratamos aqui da noção de sujeito segundo a concepção bakhtiniana, a qual compreende os seres de

Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem- se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com os sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são alterados – ficam molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de “leveza”. Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê- los como mais leves, menos “pesados” que qualquer sólido. Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos (BAUMAN, 2001, p. 8). Vemos, portanto, na assertiva de Bauman, posições férteis e que corroboram nosso pensar sobre o ser híbrido e fluido que era Frida Kahlo. Pensamos que essa característica “líquida”, que também coloca a artista em um lugar amparado pelas bênçãos e maldições da modernidade, é complementada pela característica da “fluidez”, uma vez que a compreendemos como movediça, plástica, em constante movimentação. É um ser que vislumbrava relampejos de um futuro em que a identidade de seu povo contaria com suas contribuições.

Engajada nas lutas políticas, junto a Diego e suas convicções socialistas, Frida, ao passo que lutava pela dissolução de tradições sólidas e arcaicas, construía uma arte de vanguarda em que representava uma identidade mexicana intrinsecamente ligada aos costumes culturais, às vestes, às cores, à fauna e à flora do México. Em sua trajetória, ela foi “derretendo os sólidos”, desvencilhando os costumes e as “obrigações irrelevantes” que amarravam os pés e as mãos de uma nova ordem moderna. Essa era uma necessidade que Bauman (2001, p. 15) vai apontar:

Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. “Derreter os sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações “irrelevantes” que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das obrigações éticas; ou, como preferia Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o “nexo dinheiro”. Por isso mesmo, essa forma de “derreter os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar – nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às

regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles.

Em outras palavras, como aponta Weber apud Bauman (2001), o “derretimento dos sólidos” inicia sua revolução no campo da economia, livrando-a dos embaraços políticos que, tradicionalmente, a cegavam, mas transborda até o campo “micro” da ética e da cultura. Essa nova ordem não é, por assim dizer, livre de fôrmas. Ela também tem seus estratagemas que definem motes. No entanto, o que a diferencia da ordem tradicional é que os padrões da modernidade não são estanques. Eles se chocam entre si e se contradizem nos seus comandos conflitantes, de tal forma que não possuem mais, de acordo com Bauman (2001, p. 16), “boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir”.

Seguindo o pensamento baumaniano é que propomos sopesar a construção sociocultural, que respondia ao “mundo da vida” de Frida, como uma espécie de paleta embebida pelos tons cromo fórmicos repletos de ideologias e valores, imbricados na dinâmica social do México e de outros países em que ela viveu.

Por conseguinte, ao versar sobre tais conceitos, Bauman (2001), ainda fala sobre o movimento de migração que os padrões sociais tomaram para além da vida política e ideológica. Eles foram “reclassificados” e seguiram os itens e roteiros do inventário das tarefas individuais. O sociólogo polonês, além disso, aponta:

Em vez de preceder a política-vida e emoldurar seu curso futuro, eles devem segui-la (derivar dela), para serem formados e reformados por suas flexões e torções. Os poderes que liquefazem passaram do ‘sistema’ para a ‘sociedade’, da ‘política’ para as ‘políticas da vida’ – ou desceram do nível ‘macro’ para o nível ‘micro’ do convívio social. (BAUMAN, 2001, p. 14)

Essa é uma realidade, do ponto de vista sociológico, na qual o conceito de cultura e modernidade, aqui defendido por nós, circunscreve-se. Ademais, Bauman (2001, p. 14), a respeito do fenômeno da modernidade líquida, complementa:

A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância

constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.

A interação presente em toda prática discursiva que envolvia Frida e sua produção epistolar é, por sua vez, uma fragmentação de suas várias faces. Frida esforça- se para manter toda fluidez do seu ser, construído nas aspirações da pós-modernidade, em formas que a serviam muito bem e as quais ela sabia manipular muito bem. Esse esforço vai se revelar nos momentos de dor e tristeza que, normalmente, cercavam a pintora. Contudo, em todo momento, percebemos que ela dá vazão para essa liquefação dos conceitos sólidos que buscavam lhe engessar e, ao mesmo tempo, lutava pelas formas que diziam muito mais sobre ela mesma.

Para além das contribuições que tais afirmativas baumanianas têm dado ao nosso trabalho, utilizaremos, agora, a contribuição para construção humanizadora da visão de “modernidade líquida” diante dos “sólidos” preceitos tradicionais. Aqui, afirmamos que, com base nessas considerações, nos alinharemos a tais noções para compreender melhor, nas narrativas epistolares fridianas, a “profunda mudança que o advento da modernidade líquida produziu em sua condição” de ser humano e um ser de linguagem.

Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento da ‘modernidade fluida’ produziu na condição humana. O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da política- vida, muda aquela condição de modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível; ou – se não for – como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz (BAUMAN, 2001, p. 15).

Finalmente, e não considerando que, aqui, será o final desta discussão, almejamos esclarecer a construção histórica, cultural, política, artística e afetiva que constituiu o sujeito Frida Kahlo. A relevância que tais noções teóricas têm para nossa pesquisa é incomensurável, tendo em vista que todo diálogo presente na teoria basilar deste estudo – Bakhtin e o Círculo (ADD) – se volta para uma construção histórica e social na noção de sujeito. Ademais, os estudos transculturais têm dado o tom conceitual tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático. Enxergar Frida e suas práticas discursivas pelo olhar dessas teorias tem nos dado uma luz sob o fenômeno cultural e antropológico que cercava suas lutas e embates, pessoais e sociais.