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Muito do que se vê e ouve não só se restringe à mata, estradas ou encruzilhadas. A fauna fantástica abrange todos os ecossistemas. Mares, açudes e rios não estão restritos a esses seres, pelo contrário, podem ser também seu habitat natural. De Elói de Souza à Serra Caiada, foco das análises em torno dos escritos que até aqui vêm se desenrolando, não é diferente. Visagens e aparições são recorrentes, nas quais o sertanejo se envolve pelo mistério advindo das experiências que tem com o sobrenatural. Ouvindo mergulhos “invisíveis” na margem das águas, sentindo o toque de alguma criatura estranha em seus pés dentro dos rios. Se torna necessário nomeá-la, avisar de sua presença para terceiros e entender que a convivência pode ser pacifica ou conflituosa, dependendo da circunstância.

Assumem ora o sexo feminino ora masculino. No primeiro caso, geralmente, o artifício usado pelas criaturas para o contato ou para colocar medo é através da sedução, quando menos percebem as vítimas já estão em apuros. No segundo caso a assombração se consagra, logo de cara, através da força física, da brutalidade, sem rituais que intermedeiem o predador da presa (que nesse caso é o próprio ser humano).

A Cotaluna, a exemplo, é uma figura feminina, descrita por Cascudo como uma entidade especificamente pertencente ao rio Gramame, Paraíba, porém o que se percebe é que é apenas o nome que liga a criatura àquele lugar específico, isso fica claro com os demais exemplos, em que o que os diferencia são apenas nomes e certas particularidades mínimas.

Abaixo estarão listadas e analisadas assombrações, narrativas e características referentes à fauna fantástica localizada nas águas do sertão, além do relato de um dos entrevistados e sua experiência com o “sobrenatural aquático”. Sobre a Cotaluna temos:

É o fantasma do rio Gramame, em João Pessoa, Paraíba. Pelo inverno é uma sereia, metade mulher, metade peixe, sem cantar, mas arrebatando os descuidados banhistas e mutilando-os [...] É uma mulher branca, com cabelos negros, olhos sedutores [...] Mulher bonita, com a extremidade ictiforme [...] Durante os meses de estio, Cotaluna é [...] mulher inteira, atraente, sensual, com aparições raras no dorso da água clara e fina [...] Não promete riquezas nem possui palácios fluviais. Seu encanto é imediato, físico [...] Embriaga os sentidos e o desejo da posse explica a loucura que fere seus namorados. Há quem tenha vivido amorosamente com a Cotaluna e depois voltado. Volta sem memória e sem vontade. (CASCUDO, 2001, p. 165)

São admiráveis as anotações que descrevem esse mito. Temos aqui uma criatura que tem comportamentos que variam até de acordo com as estações do ano. Mais ainda, há relatos de vítimas que foram capturadas, mas que reapareceram depois de certo período, narradores que dizem ter tido possivelmente uma espécie de relação amorosa.

Podemos comparar o caso da Cotaluna com uma lenda da ilha de Fernando de Noronha, para mostrarmos que, apesar das diferenças de nomes e determinadas singularidades, as narrativas se mostram muito parecidas quanto a elementos mais gerais. Vivendo nas praias paradisíacas da ilha, a Alamoa é famosa por assustar nativos:

Duende femimino [...] de Fernando de Noronha. Mulher branca, loura, nua, tentando os pescadores ou caminhantes retardados. Transforma-se num esqueleto, endoidecendo-os. Sua residência era o Pico, elevação rochosa inacessível. Às sextas-feiras a pedra do Pico se fende e na chamada porta do Pico aparece uma luz. A alamoa vaga pelas redondezas [...] (CASCUDO, 2001, p. 11-12)

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

Assim como as duas criaturas citadas acima, a Mãe-D'água também usa dos mesmos artifícios quando procura por sua presa, aparentando, ainda, ter traços corporais semelhantes:

Mãe-d’Água [...] vive no fundo do rio, [...] atrai os moços, aparecendo a estes sob o aspecto de uma moça bonita [...] e os fascina com cantos, promessas, e seduções de todo gênero, convidando-os a se lhe entregarem e irem gozar com ela uma eterna bem-aventurança no fundo das águas, onde ela tem seu palácio e a vida é um folguedo sem termo. Quem a viu uma vez nunca mais pode esquecê-la. Pode não se lhe entregar logo; mas fatalmente, mais cedo ou mais tarde, acaba por se atirar ao rio e nele aforgar-se, levado pelo ardente desejo de lhe unir. (CASCUDO, 2002, p. 161)

Segundo Cascudo (2001, p. 348) “em todo o Brasil conhece-se por Mãe-D’água a sereia [...] alva, loura, meio peixe, cantando para atrair namorado, que morre afogado querendo acompanhá-la para bodas no fundo do mar”. Se pode perceber que nesse caso o autor nem a chama de duende feminino, nem fantasma das águas; o termo utilizado é o de “sereia”, ao que

alude diretamente ao mito da Iara, do qual o próprio Cascudo diz ser o nome indígena e literário da Mãe-D’água (CASCUDO, 2001).

Figura 6 - Representação da Iara

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

No grupo masculino dos seres que compõem a fauna fantástica dos rios, lagos e mares, está o Caboclo-D’Água, que o folclorista descreve como uma criatura fantástica, mais conhecida por habitar o rio São Francisco. Violento, arisco e de grande força, ele é responsável por amedrontar pescadores e barqueiros que cursam essas águas, atuando como uma espécie de fiscal local, averiguando embarcações, acompanhando-as e fazendo investidas contra aqueles que vão de encontro às suas “normas”. Domina os movimentos dos rios, podendo provocar ondas, redemoinhos fluviais e iniciar correntezas que levem os barcos para o fundo das águas sem que seus condutores desconfiem o que poderia ter causado tanto rebuliço, porém está disposto a uma relação pacífica em troca de oferendas que venham a lhe conceder:

Criatura fantástica que vive no rio São Francisco. Favorece tudo aos amigos [...] e persegue ferozmente os pescadores e barqueiros com quem antipatiza, virando canoas, erguendo ondas, derrubando as barreiras, afugentando pescarias. Mora nas ribanceiras mais profundas, ermas e sossegadas. [...] é visto ao luar, caminhando por alvas e prateadas coroas; [...] espia o canoeiro ou o viandante descuidado [...] O tipo Caboclo-d'água que recolhe o maior número de depoimentos é o seguinte: baixo, grosso, musculoso, cor de cobre, rápido nos movimentos e sempre enfezado. [...] os barqueiros [...] oferecem fumo. (CASCUDO, 2001, p. 88-89)

Figura 7 - Representação do Caboclo-D’Água

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

Inserido nesse mesmo grupo, está o Ipupiara, conhecido por pescadores e todos aqueles que dependem de alguma forma das águas do Nordeste para sobreviver, é inimigo declarado do sertanejo e dos índios, nativos aos quais os relatos de desbravadores coloniais já denunciava o perigo que esse ser lhes representava. Em suas incursões, assim como o Caboclo-D’água, o Ipupiara virava as embarcações, afogava navegantes e transeuntes, matava-os e assombrava-os de toda forma. A diferença entre os dois é que com o Ipupiara não havia nenhum tipo de acordo ou pacto. Nenhum agrado lhe convencia em cessar sua cólera contra aqueles que atravessavam

seu caminho, segundo Cascudo (2001) todas as atrocidades cometidas por ele eram realizadas sem a “permuta de favores”:

Ipupiara, o que reside ou jaz na fonte; o que habita no fundo das águas. É o gênio das fontes, animal misterioso, que os índios davam como homem marinho, inimigo dos pescadores, mariscadores e lavandeiras. É um dos mais antigos mitos brasileiros, registrado pelos cronistas coloniais. Em maio de 1560, o padre José de Anchieta escrevia: ‘Há também nos rios outros fantasmas, a que chamam Igputiara, isto é, que mora, n’água, que matam do mesmo modo os índios’. Gabriel Soares de Sousa, em 1587, dizia: ‘...não há dúvida senão que se encontram na Bahia e nos recôncavos dela muitos homens marinhos, a que os índios chamam pela sua língua Urupiara’. (CASCUDO, 2001, p. 283)

Mais detalhado do que essa descrição é o relato do jesuíta, Fernão Cardim, que descreve o terror vivido por alguns índios em detrimento das visitas do Ipupiara à uma região baiana. O clérigo afirma em seus escritos que se compadecendo do desespero vivido por um dos nativos indígenas, o seu senhor decidiu acompanhá-lo até o local do avistamento. O índio acabou morrendo pelas mãos da criatura de qualquer maneira, por ter se “descuidado” enquanto navegava junto ao seu fidalgo:

Estes homens marinhos se chamão na língua Igpupiára; têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem nelle morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morrerão já, e perguntando-lhes a causa, dizião que tinhão visto este monstro; parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm olhos muito encovados. [...] Em Jagoaribe sete ou oito léguas da Bahia se têm achados muitos; em o anno de oitenta e dois indo um Índio pescar, foi perseguido por hum, e acolhendo-se em sua jangada o contou ao senhor; o senhor para animar o índio quis ir ver o monstro, e estando descuidado com huma mão fora da canoa, pegou nelle, e o levou sem mais aparecer, e no mesmo anno morreu outro índio [...]

Em Porto Seguro se veem alguns, e já têem morto alguns índios. O modo que têem para matar he: abração-se com a pessoa tão fortemente beiojando-a, e apertando-a comsigo que a deixão toda feita em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta dão alguns gemidos como de sentimento, e largando-a fogem; e se levão alguns comem-lhes somente os olhos, narizes, e ponta dos dedos dos pés e mãos, e as genitálias [...] (CARDIM, 1925, p. 89 apud CASCUDO, 2002, p. 151)

Figura 8 - Representação do Ipupiara

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

Na entrevista feita com o José Bento, ele fala a respeito de um susto que teve ao caçar próximo às águas do Rio Jundiaí (que corta, tanto as cidades de Senador Elói de Souza, quanto a de Serra Caiada). Em certo momento ele comenta que um “troço” fez um rebuliço dentro da água, como se tivesse mergulhado em um ponto, e emergido mais à frente de onde estava (fenômeno denominado por ele de buraco d’água) com o seu companheiro e os cachorros:

Outro dia eu fui mais um caba caçar, pra banda do rio, e os cachorro acuaram com medo de um troço assim bem pertinho da gente, e lá vem pra banda da gente não sei o que foi, que entraram num buraco d’água, você sabe o que é buraco d’água? É a água fazendo buraco assim que vai sair com 100 braças por dentro do chão, lá na frente, sabe?! A água entra e faz aquele rombo...em riba de serra é danado pra dar isso. Aí os cachorros acuaram bem pertinho de nós e nós pensando que era alguma coisa, de repente entrou um troço com uma catinga danada, e saiu lá na frente. Nós pensando que era uma tacaca, olhamos pro buraco d’água e não vimos mais nada, ficamos logo aperreados. A gente não foi pra perto de buraco nenhum não, fomos embora, porque isso aí tinha um negócio que não tinha futuro pra agente não. Marmota quando o cara vê,

sai de perto! Se o cara vê e continuar vai findar levando um cacete. Por causa disso que cachorro apanha que só a mulinga6.

O que fora identificado como Ipupiara, Caboclo-D’Água, Cotaluna e etc., é batizado de “troço” ou “marmota” pelo entrevistado. Mesmo não apontado um ser fantástico específico, o episódio relatado pelo caçador mostra que algo de sobrenatural pairava sobre aquele lugar naquele momento, e é por esse mesmo motivo que ele decide se evadir daquele local, pois, segundo suas palavras, “isso aí tinha um negócio que não tinha futuro pra a gente não”. Até a “catinga” ou seja, o forte odor, foi algo percebido e, também, causador de estranhamento, pois num primeiro momento o cheiro forte lembrou o da tacaca (mamífero de pequeno porte, também conhecido como timbú ou gambá), mas depois, comprovando a ausência desse animal, suspeitou-se de que algo além do mundo material estava atuando ali. Para o José Bento, aquilo foi recebido como um sinal dado por uma criatura, que acabou mergulhando e assustando os cachorros, levando-o a conclusão de que a caça e/ou pesca não seria tolerada naquele momento. Entre os desejos de um sertanejo assombrado, testemunha ocular de uma visagem, o respeito e o medo se confundem em um mesmo sentimento, somado à necessidade e vontade de se distanciar do local fatídico.

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