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Ser(tão) mágico: a extinção da fauna fantástica no Rio Grande do Norte

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Academic year: 2021

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CURSO DE HISTÓRIA

ARTHUR RODRIGO FRANÇA DA SILVA

SER(TÃO) MÁGICO:

A extinção da fauna fantástica no Rio Grande do Norte

NATAL/RN 2019

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SER(TÃO) MÁGICO:

A extinção da fauna fantástica no Rio Grande do Norte

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto, para obtenção do título de Bacharel.

NATAL/RN 2019

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Silva, Arthur Rodrigo França da.

Ser(tão) mágico: a extinção da Fauna Fantástica no Rio Grande do Norte / Arthur Rodrigo França da Silva. - Natal, 2019.

80f.: il. color.

Monografia (graduação) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Sebastião Leal Pereira Vargas Netto.

1. Narrativas orais - Monografia. 2. Imaginário - Monografia. 3. Fauna fantástica - Monografia. 4. Extinção - Monografia. I. Vargas Netto, Sebastião Leal Pereira. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94:398.41(813.2) CCHLA

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SER(TÃO) MÁGICO:

A extinção da fauna fantástica no Rio Grande do Norte

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de Bacharel.

Aprovado em: ___/___/___.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto Orientador

Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia Avaliador

Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos Avaliador

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Aos meus pais, pelo carinho e admiração que têm por mim. Sem a determinação de vida deles, sem o empenho em me dar o melhor que eles podiam, sem a educação e os ensinamentos que me foram transmitidos, nada disso seria possível. Eu não seria o que fui, o que estou sendo e o que serei ao longo da vida. Para Nena e Ney, deixo com carinho, um trecho de música do grupo Os Novos Baianos: “Eu sou o caso deles, sou eu que esquento a vida deles...”

Aos meus avós, todos, sem eles o exercício da memória não estaria presente como um dos grandes interesses da minha vida. Cada palavra, história, música e conversa que eu tenho com todos me causa deslumbramento. Não sabem eles, mas em grande medida são os grandes responsáveis pela minha formação acadêmica como Historiador. Ouvir suas histórias sempre me transportou para lugares, paisagens e realidades distantes. A Dona Zilda, que apesar de não ter sido entrevistada para esse trabalho, é uma referência maior que qualquer acadêmico que eu citei aqui. A Seu Zé Bento, por ser um dos homens mais fortes e corajosos que já conheci. A Dona Graça, pelo amor incondicional que tem por mim. A Seu Nilo, que mesmo não estando mais entre nós, me faz exercitar a memória sempre, afinal, “Trajaninho” e “Canguru” foram meus primeiros apelidos, e só ele me chamava assim.

A meu irmão Thiago. O sangue que corre nas nossas veias é o mesmo. Sei da minha responsabilidade enquanto irmão mais velho e faço de tudo para construir com ele o conhecimento e a sabedoria que precisamos para viver nesse mundo meio complicado. Vai dar certo!!!

A todos os familiares que não foram citados, saibam que cada um de vocês são responsáveis na minha formação.

Aos meus amigos, a vida não seria a mesma sem os laços afetivos de cada um. Em especial Carmen e Baiano, vocês são pessoas com quem eu pude contar nos piores e nos melhores momentos da minha vida. As conversas intermináveis, as lágrimas e os sorrisos, tudo isso vale a pena com vocês.

Aos colegas de curso e de universidade, pelas vivências, brincadeiras, festas, peladas, estudos e sofrimento compartilhado. Cada gole de cerveja não foi em vão.

A Érika Serpa, por reservar uma parte do seu tempo e retratar episódios de sua vida em entrevista. Sua contribuição foi imensurável.

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A Alana, pela parceria, paciência, carinho e por despertar em mim sentimentos que vão além do amor. Pela prova de como o universo tem sempre algo de bom reservado para nós.

A Cezar Berje, profissional de enorme talento, uma luz em meio a escuridão que paira sobre quem valoriza e se debruça no mundo artístico-cultural. Muito obrigado pela solidariedade ao conceder suas obras. Elas transbordaram os limites acadêmicos do meu trabalho, transformando-o em uma obra de arte com sua assinatura. Gratidão.

A todo o quadro docente do Departamento de História, vocês formaram um indivíduo cada vez mais iluminado.

A Haroldo Loguercio, por acompanhar eu e os demais bolsistas do OCUPA-RN com enorme atenção e solicitude. São professores como você que fazem a diferença.

Ao meu orientador, Sebastião Vargas. Que além de professor se tornou um amigo, um companheiro. Obrigado por suas orientações e conselhos, e pelas vivências que tivemos juntos. Para mim você foi um grande “mestramigo”.

Aos projetos OCUPA-Primeira Etapa: Vozes, debates e manifestos no RN; História e

Literatura oral: os relatos sobre os seres míticos (do século XX ao XXI). Sem ele eu não

aprenderia o que aprendi em história oral, na arte de ouvir e de pesquisar, nem valorizado a Extensão Universitária como um dos futuros do desenvolvimento social através do rompimento dos muros da academia. Ao projeto de pesquisa intitulado Transformações na cultura popular

e no meio ambiente: o processo de extinção da fauna fantástica e dos entes sobrenaturais no Rio Grande do Norte, cujo incentivo reverberou diretamente na construção dessa monografia.

Por fim, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ser uma verdadeira mãe. Me patrocinando e investindo para que eu estivesse entre os melhores. Tudo isso através do suor de milhões de brasileiros aos quais eu também agradeço enormemente. Obrigado !

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Para que serve a utopia?

Ela está lá no horizonte – diz Fernando Birri. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

-Eduardo Galeano, em “As Palavras Andantes” (1994).

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A existência de entidades sobrenaturais convivendo entre nós sempre foi uma realidade ao longo da história humana. Lendas e mitos permeiam o imaginário e, através dele, invadem e se instalam nos mais diversos lugares, onde as narrativas orais lhes dão ainda mais vida. No Rio Grande do Norte isso não é diferente. Seres fantásticos formam uma verdadeira fauna, com características e habitats próprios. Apesar disso, parece haver uma diminuição dos relatos sobre esses seres mágicos, algo já esboçado por escritores como Luís da Câmara Cascudo na década de 40. Desse modo, essa pesquisa pretende, em um primeiro momento, fazer breves apontamentos sobre o imaginário, as narrativas orais, e como ambos atuam na construção da realidade. Depois, a partir de entrevistas e do cruzamento delas com o levantamento bibliográfico, mapear os seres fantásticos existentes e evidenciar seu processo de extinção nas cidades de Serra Caiada e Senador Elói de Souza.

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The existence of supernatural entities living among us has aways been a reality throughout human hiistory. Legends and myths permeate the imaginary and, through it, invade and settle in to many place, where oral narratives give them even more life. This is not different in Rio Grande do Norte. Fantastic creatures form a true fauna, with their own characteristics and habitats. Despite this, there seems to be a decrease in reports of these magical beings, something already outlined by writers like Luis da Câmara Cascudo in the 1940s. In this way, this research intends, in a first moment, to make a brief notes about the imaginary, the oral narratives, and how both act in the construction pf reality. Then, from interviews and their crossing with the bibliographic survey, to map the fantastic animals and to evidence their extinction process in the cities of Serra Caiada and Senador Elói de Souza.

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Figura 1 - Representação da Mula-sem-Cabeça ... 28

Figura 2 - Representação do Caipora ... 29

Figura 3 - Representação do Curupira ... 34

Figura 4 - Representação do Lobisomem ... 38

Figura 5 - Representação da Alamoa ... 41

Figura 6 - Representação da Iara ... 43

Figura 7 - Representação do Caboclo-D’Água ... 44

Figura 8 - Representação do Ipupiara ... 46

Figura 9 - Representação do Guajara ... 48

Figura 10 - Representação do Anhangá ... 51

Figura 11 - Representação do Fogo-Fátuo ... 53

Figura 12 - Representação do Boitatá ... 54

Figura 13 - Representação da Alma de Gato ... 56

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INTRODUÇÃO ... 11

1 ENTRE A NARRATIVA E O IMAGINÁRIO ... 18

1.1 “AVISTAMENTO”: O SOBRENATURAL NA SUA LÓGICA COLETIVA... 19

2 OS SERES FANTÁSTICOS: LEVANTAMENTO ... 26

2.1 SERES DAS MATAS ... 29

2.2 SERES DAS ÁGUAS ... 40

2.3 SERES DISFORMES (OU MULTIFORMES) ... 47

3 SERES, VIVOS: RELAÇÃO E EXTINÇÃO ... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 68

REFERÊNCIAS ... 69

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INTRODUÇÃO

O fascínio pelos elementos da cultura popular começou desde cedo. Na minha infância passava tempos prolongados na casa dos meus avós, no interior do estado. Acompanhar o cotidiano da residência e das pessoas era inevitável. Levar comida para os porcos, ajudar nos afazeres do dia a dia, ir para a roça, entrar em açudes e rios a procura de peixes, caçar durante o dia e fachear durante a noite, enfim, tudo isso me encantava a ponto de não querer sair daquele lugar. Mas existe um elemento ainda mais significativo nisso tudo: o ato de escutar.

Era comum eu estar no meio da roda de conversa de pessoas mais velhas. Amigos e conhecidos dos meus avós, por vezes, me cativavam mais do que a inquietude aventureira dos primos da mesma faixa etária que a minha. Entre jogos de baralho, fogueiras de São João e reuniões de calçada, eu estava lá, atento, observando e absorvendo aquele arcabouço de experiência que emanava diante dos meus olhos e ouvidos. Em determinados momentos a minha atenção transformava-se em uma dedicação quase exclusiva para apreender melhor o que eu estava escutando. Isso se dava quando eu escutava histórias de assombração.

Me admirava ouvir relatos de pessoas que se deparavam com situações inusitadas, inexplicáveis, e muitas vezes até perigosas, onde o sobrenatural prevalecia como fonte de justificativa. Mais ainda, me admirava saber que essas situações aconteciam com frequência e que os semblantes ficavam sérios quando essas histórias eram contadas. Tudo aquilo era fato consumado para eles, e pela minha cabeça nunca passou a intenção de desconstruir os acontecimentos mágicos sob a égide estrita da razão, na verdade eu já tentava compreender aquela lógica.

O mundo sobrenatural sempre esteve presente em todas as sociedades que existem ou existiram ao longo da história humana. Alguns elementos foram mais absorvidos que outros, e por isso, perduram até os dias atuais. Santos, espíritos, deuses e orixás convivem entre si, em detrimento das religiões, cada qual com seus métodos de crença coletiva. Em relação a esta se pode dizer, sem muita profundidade, que não são compostas somente de religiões. Acreditar em algo não pode ser reduzido à fé. Crenças podem apontar em direções que não sejam especificamente aos rituais e cultos religiosos - convergindo assim a ideias como a do azar, sorte, mau-olhado, mau agouro – e, mesmo assim, proporcionar formas de comportamento, de atitudes e de realidades. Nas matas do sertão as crenças aparecem, dentre outras, em um conjunto de seres misteriosos, que estão à espreita daquele que descumprir as relações de

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boa-vizinhança. O respeito e o medo são, aqui, sentimentos que afloram com facilidade entre os moradores dessas regiões.

Nesse sentido, esta monografia tentará falar a respeito da “fauna fantástica” no estado do Rio Grande do Norte. O termo foi adotado da obra Geografia dos Mitos Brasileiros, do folclorista Luís da Câmara Cascudo, que em 1947, tinha preocupação em deixar registrado o máximo possível de crenças populares existentes no Brasil, antes que elas deixassem de fazer parte do horizonte de tradições. A “fauna fantástica” caracteriza-se pelo conjunto de seres mágicos que residem na natureza: o Curupira, a Mãe-da-Lua, o Lobisomem e etc. Além de perambularem pela floresta, eles também mantêm relações (ora hostis, ora diplomáticas) com os seres humanos. A crença na existência desses seres por parte do sertanejo do interior do estado é tão forte, que as entidades institucionalizam formas de comportamento aos caçadores, pescadores e demais transeuntes que se aventuram no sertão, principalmente em ocasiões em que o contato é mais propício: como as noites de lua cheia, por exemplo. Dialogando com as preocupações de Câmara Cascudo, pode-se dizer que há um processo de extinção da “fauna fantástica” no estado? É partindo dessa hipótese que se caracterizarão os caminhos percorridos ao longo desse trabalho de conclusão de curso.

Não pretendo aqui, em nenhum momento, contradizer, muito menos desmistificar as crenças alheias. Do ponto de vista acadêmico é necessário o exercício da alteridade e o reconhecimento do lugar de fala. Para os nativos isso se trata de uma realidade, e se quisermos compreender fenômenos significativos paras as comunidades, é necessário adotar como nossa, em certa medida, a realidade deles. Por fim, é necessário compreender que os “monstros não eram uma representação, e sim um fato. Não eram mistério, mas concretude. Sua materialidade, para nós hoje (...) um sonho, fazia parte daquele senso do possível ou do saber empírico” (DEL PRIORE, 2000, p. 15).

O maior intuito desse trabalho é tentar comprovar que há um processo de extinção da fauna fantástica no estado potiguar, tendo em vista o caráter meritório dado pelos moradores locais à crença nessas entidades e no poder que delas emana. Para isso, tenho como objetivos específicos demonstrar como as narrativas orais e o imaginário podem atuar na construção coletiva do real; fazer uma espécie de levantamento dos seres que “habitaram” a região a ser estudada e mostrar a mudança de realidade ocorrida entre gerações diferentes.

Ademais, a relevância desse tipo de tema me remonta à obra Assombrações do Recife

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a respeito dos objetos de estudo aqui expostos. O autor parece perceber, na sua obra, a ausência de estudos relacionados a um tema que leve em conta o imaginário, as crenças, e a relação disso com o senso de realidade, lacuna que de fato, não foi preenchida desde a primeira edição desse livro, nos meados da década de 70. Não seria digno de estudo um tema que analisasse a relação de indivíduos com as crenças que lhes inspiraram atitudes, impuseram medos, regras, e proporcionaram até relatos de luta corporal? (FREYRE, 2000). Perceber e identificar um processo em que se vê a redução de uma prática/crença não seria sintomático para estudos sobre mudanças e transformações culturais no campo da história? Usar o folclore como um assunto infantilizado não seria perder as múltiplas possibilidades de análise do tema nas áreas da psicologia social, da cultura, história, sociologia, etnografia e antropologia? O processo de desaparecimento da “fauna fantástica” se configuraria como uma inestimável perda para o patrimônio cultural?

Para que seja possível responder a perguntas como essas é necessário entender um pouco sobre a importância da oralidade na construção de vínculos sociais identitários, bem como também perceber que o real e o sobrenatural convivem juntos, numa relação sensível e fluida.

Desse modo, o primeiro capítulo, intitulado Entre a narrativa e o imaginário, tenta discorrer a respeito da tradição oral como uma prática que fortalece os vínculos sociais através da identidade, por exemplo; e também como o imaginário é determinante para o estudo de crenças, nas quais os seres fantásticos são aqui os protagonistas. Obras como Magia e Técnica,

Arte e Política de Walter Benjamin (2012), Flor do não esquecimento: culturas e processos de transformação de Pereira e Gomes (2002) e Acreditavam os Gregos em seus mitos? de Paul

Veyne (1984), foram essenciais para o entendimento sobre o conceito de “experiência”; da oralidade como pilar para a coletividade; e o imaginário como caminho para a construção de realidades, respectivamente.

O segundo capítulo, intitulado Os seres fantásticos: levantamento é fruto de uma investigação realizada nas obras Geografia dos Mitos Brasileiros e Dicionário do Folclore

Brasileiro, ambas do escritor Câmara Cascudo (e os principais livros usados para a conclusão

desse trabalho), onde foram extraídos os principais personagens do folclore, separados quanto aos biomas (terrestres, aquáticos) e à forma (disforme e multiforme), observados quanto a sua zona de atuação (recorrência) e aproximados aos relatos coletados a partir dos dois colaboradores, estes que foram extremamente necessários para essa monografia. Outra obra

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usada no segundo capítulo, e não menos importante, foi Lendas e Superstições, do paraibano Ademar Vidal, que serviu como material complementar, ampliando o conhecimento sobre características específicas de algumas entidades mapeadas. Nessa parte do trabalho se tornou necessária uma classificação dos seres em terrestres, aquáticos e aqueles em que não se tem certeza acerca de sua forma. Foi mais uma divisão visando facilitar o entendimento dos espaços de atuação dos seres e as semelhanças que eles apresentam em seus “biomas naturais”, do que uma classificação engessada e robusta, típica da tradição folclorista.

O terceiro e último capítulo se chama Os seres, vivos: relação e extinção, e retoma um pouco do que foi discutido nos capítulos anteriores, voltando-se para as entrevistas e os entrevistados, mostrando uma mudança de perspectiva e o conflito entre duas gerações diferentes, ou seja, as rupturas e continuidades que a história cravou ao longo do tempo na região delimitada a partir do tema no qual essa obra se debruça.

Pode-se dizer que a historiografia do século XX desenvolveu-se em grande parte devido à definição da História como “o estudo do homem no Tempo”, sugerida por Marc Bloch (apud BARROS, 2006), confrontando diretamente a tradição que perdurou até o final do século XIX, na qual a História caracterizava-se como “registro do passado humano”. Essa mudança rompe com a ideia de que o objeto de estudo da ciência histórica é somente o passado enquanto uma série de fatos ocorridos sequencialmente, abrindo novos caminhos metodológicos de pesquisa ao partir de analises que giram em torno das “ações e transformações humanas (ou permanências) que se desenvolvem ou se estabelecem em um determinado período de tempo, mais longo ou mais curto” (BARROS, 2006, p. 461). Complementando essa perspectiva, inclui-se o Espaço como elemento crucial para compreender os fenômenos históricos, ou seja, a História, necessariamente, é o estudo do Homem no Tempo e no Espaço. Este último, não precisa necessariamente ser um espaço geográfico. O espaço social pode ser incluído aqui como uma esfera de atuação para o historiador enquanto cientista. A política e o imaginário são exemplos de espaços sociais onde a temporalidade é um vetor de influência determinante.

A partir disso, o espaço delimitado para este trabalho é o imaginário visto na ótica dos municípios de Senador Elói de Souza e Serra Caiada, ambos localizados no Agreste Potiguar1. Comumente chamada pelos locais apenas como “Elói de Souza”, essa cidade foi criada oficialmente em 19582, desmembrando-se de Serra Caiada, da qual faz fronteira atualmente. Já

1Informação disponível em:

<https://riograndedonorte.openbrasil.org/2013/08/geografia-do-rio-grande-do-norte.html>.

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esta última foi elevada à categoria de município um pouco antes do que a sua vizinha, em 1953 deixa de ser distrito de Macaíba e passa, oficialmente, a denominar-se como cidade3. Na atualidade, o setor terciário é a base de suas economias, mas esse não era o panorama nas primeiras décadas posteriores às respectivas fundações. A economia basicamente girava em torno da agricultura (de subsistência), pecuária e tudo o que se pudesse aproveitar da natureza. A delimitação desse espaço ocorreu a partir de duas justificativas. A primeira se relaciona com o laço afetivo que tenho pelas duas cidades, onde minha infância foi marcada pelas vivências e aprendizados advindos de amigos e familiares que moram na região. Foi acompanhando a labuta dos meus avós e tios maternos (caminhando com eles na roça, nas matas e açudes), observando técnicas simples (mas não menos relevantes) de caça e pesca e ouvindo histórias assombrosas decorrentes das experiências de vida desses sujeitos, que senti a necessidade de escrever algo que protagonizasse essas duas cidades pequenas, que muitas vezes passam despercebidas pelos potiguares, mas que carregam consigo a riqueza da bagagem cultural de pessoas anônimas, relevantes para a construção de reflexões sobre tradição. O espaço demarcado tem páginas em branco quanto à abordagem acadêmica se refere a questões histórico-culturais.

A segunda e última justificativa se apoia na noção de região, sugerida pelo historiador José D’Assunção Barros (já citado alguns parágrafos acima) no artigo intitulado História,

Espaço e Tempo: Interações Necessárias, onde ele explica a região como: “uma unidade

definível no espaço, que se caracteriza por uma relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios” (BARROS, 2006, p. 463). Assim, as duas cidades que hoje são fronteiriças, eram uma só até 60 anos atrás. Os moradores mais velhos, e que viveram da caça, pesca, agricultura e criação animais, conhecem as duas regiões, e alguns moraram também em ambas. Como são cidades vizinhas, usei de critérios culturais para a escolha do espaço, por considerá-las um território sobre o qual são perceptíveis certas práticas comuns, certos modos de vida e padrões de comportamento. Assim, as crenças e a existência de entidades sobrenaturais ao longo das duas cidades, são fenômenos que se configuravam como fato consumado para os nativos, e ajudaram na viabilização da construção da monografia.

Ao longo de todo o trabalho estão inseridas uma série de ilustrações feitas pelo designer gráfico Cezar Berje. Elas estão contidas na obra Abecedário de personagens do folclore

brasileiro, da jornalista e escritora Januária Cristina Alves. A autora reuniu uma coleta de

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dados acerca dos personagens mais relevantes do folclore nacional, valendo-se de grandes nomes da área como Câmara Cascudo e Silvio Romeiro, por exemplo. Cezar Berje preenche essa obra com um trabalho original, que deixa o registro imagético de personagens nunca ou pouco retratados em formas e cores, colocando nas ilustrações os elementos mais significativos e representativos de cada um dos personagens. Sob forte influência musical da cena black metal, sua arte se caracteriza, em grande medida, por elementos relacionados à magia, monstros, ocultismo e imaginário. Desse modo sua arte se fez necessária para exprimir imagens da temática aqui apresentada.

A metodologia utilizada baseia-se no levantamento bibliográfico relacionado ao tema, com o uso de livros e demais obras nesse sentido, além de utilização de plataformas digitais como SciELO4 e os repositórios digitais da USP, UFRN, UFC, UFPB e PUC Goiás. Feito isso, os dados obtidos foram cruzados com as entrevistas.

Para as entrevistas, o método foi o da história oral, baseando-se na obra A voz do

passado: História Oral de Paul Thompson. Por dar importância à memória, principalmente

àquela de sujeitos anônimos, independentemente do número de entrevistados, pois muitas vezes a memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência de fatos coletivos (THOMPSON, 1992). Um trabalho com essa temática que não abordasse métodos relacionados à consulta da memória não resultaria em nada mais do que meras suposições, portanto ir a campo foi extremamente necessário. E para isso, as duas entrevistas realizadas contaram com o recurso de gravação de voz, onde posteriormente se pode transcrevê-las.

Os entrevistados foram o José Bento (meu avô) e Érika Serpa. O primeiro é um senhor de 85 anos de idade, que viveu grande parte da sua vida trabalhando na agricultura, além de, constantemente, usar da caça e a pesca como formas de subsistência. Reside atualmente na cidade de Senador Elói de Souza, mas também morou na cidade vizinha, bem como na comunidade “Riacho dos Macacos”, que se localiza na fronteira entre ambas. Érika Serpa é uma jovem de 24 anos, estudante do curso de história da UFRN, bisneta de agricultores que residiram na cidade de Serra Caiada. A escolha dos dois foi estratégica para os objetivos pretendidos. São pessoas que têm uma ligação com o espaço delimitado e, além disso, pertencem a diferentes gerações, cada qual carregada de óticas e experiências diferentes em relação ao tema proposto.

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Por fim, o trabalho parte da década de 40, quando estavam sendo lançadas/finalizadas as obras de Câmara Cascudo e Ademar Vidal aqui utilizadas. Cuja preocupação em preservar valores e saberes materiais e simbólicos da cultura popular era nítida. Manifestavam apreensão de que esses bens estavam sendo ameaçados e desconfigurados pela expansão progressiva de mídias massivas, hábitos culturais e valores importados de outros horizontes sociais. Angústia atestada quando Cascudo admite que “não será possível dizer-se que esse material permaneça como há vinte anos. O sertão respira pelas mil bocas das estradas e paga o conforto da eletricidade com o esquecimento das estórias antigas e saborosas” (CASCUDO, 2002, p. 25). Desse período em questão, chegaremos até os limites do século XX, utilizando da história do tempo presente como respaldo metodológico, tendo em vista a proximidade cronológica documental e, principalmente, a proximidade temporal das testemunhas (orais) que aqui tomarei como referência indispensável (DELGADO; FERREIRA, 2013).

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1 ENTRE A NARRATIVA E O IMAGINÁRIO

A tradição oral é um elemento alicerça relações sociais, desde o campo até as cidades. Ela viabiliza a construção e a significação de identidades, pertencimentos e serve como ferramenta aglutinadora nos mais variados territórios espalhados em suas particularidades e características próprias. Assim o é, pois, a arte de contar histórias exige equilíbrio e sincronia entre narrador e ouvinte, sendo a proximidade física dos indivíduos e a organização espacial realmente necessárias para a realização de todo o processo. Ou seja, a tradição oral, no seu sentido pleno, reclama o calor humano, a solidez das relações e a sensibilidade coletiva dos cidadãos que compõem uma comunidade da qual essa prática se assenta como pilar identitário (BENJAMIN, 2012).

Um dos elementos que compõem essa prática são as histórias de monstros e assombrações que tanto permeiam o imaginário daqueles que vivem em sítios e vilarejos distantes nas zonas rurais, que dependem da caça, pesca e agricultura familiar, mantendo uma relação direta e bilateral com a natureza na qual estão inseridos e que dela tiram boa parte do sustento. São narrações surgidas a partir de uma caçada, da pesca ou de uma simples caminhada realizada pela mata fechada do sertão, “e é nesse trajeto que se percebe a riqueza dessas criações/vivências” (VASCONCELOS, 2001). É no seio do espaço em que vive que o sertanejo desenvolve as narrativas fabulosas, dá forma às mesmas (incrementando alegorias, hipérboles e outros elementos que as torne ainda mais atrativas e cativantes), organiza e transmite adiante. Ele parece interagir com o seu espaço de forma a transformar uma topografia inanimada em um ser com vida própria (VASCONCELOS, 2001). Pode se dizer que essas práticas são as soluções encontradas para significar e se identificar com a natureza e seus espaços, diante das múltiplas transformações e modificações das quais são submetidos:

São, comumente, histórias sobre lobisomens, caiporas, sacis e outros seres relacionados com uma suposta vida selvagem, e contam também encontros com entidades de “reinos encantados”, como príncipes e princesas [...]. O que se tem evidenciado são as diferentes maneiras que os sertanejos têm de se relacionarem com seu espaço de vida, numa peleja de adaptação ou de transformação da natureza do semi-árido. uma prática que ora se deixa entrever, ora se disfarça nas linhas, nas pausas, nos semblantes, nos gestos largos ou recatados de suas narrativas. (VASCONCELOS, 2001, p. 304).

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Podemos afirmar que a existência desses seres fantásticos, acompanhadas das narrativas orais que os legitimam, são fatores cruciais para o desenvolvimento desse trabalho, tendo em vista que nosso foco se concentra nesse processo de mudanças culturais, onde a contação de histórias vem deixando de ser uma prática mais vigorosa e, com ela, os seres míticos parecem estar sucumbindo.

1.1 “AVISTAMENTO”: O SOBRENATURAL NA SUA LÓGICA COLETIVA

As crenças em assombrações, construídas e disseminadas pela oralidade, são responsáveis pela produção de atitudes, imaginários, modos de convivência e padrões da vida cotidiana, de tal modo que pessoas simples chegam a admitir a participação do sobrenatural em suas vidas, sob forma de visagens (FREYRE, 2000). Elas interpretam aparições, decifram os comportamentos dos seres sobrenaturais e traduzem as circunstâncias pelas quais é necessária a tomada de ação para viver em harmonia com as formas de vida que pairam entre o mundo real e o irreal. Assim, precisam compreender a subjetividade particular de cada ser específico, pois cada qual apresenta temperamento, comportamento e personalidades diferentes. Em relação a isso, Vidal, quando fala a respeito da Flor-do-Mato, explica:

Acabava de entrar o velho Desidério. Sempre gosto de ouvi-lo nas suas histórias de caçador. [...] contou que havia sido bem sucedido na sua última caçada, isto somente porque resolvera agradar Flor do Mato. E explicou com sua voz descansada: - Quando eu vou caçar na mata levo sempre algum pedaço de fumo pra agradar Flor do Mato. Estou fazendo isso de certos tempos pra cá. É agrado o que posso fazer. Bem que me diziam: sem esse agrado ela persegue o freguês. Tira varas de marmelo e dá surras mortais nos cachorros. (VIDAL, 1950, p. 287).

Também existem, por exemplo, normas referentes aos horários em que a ocorrência ou a probabilidade de se deparar com esses seres fantásticos é maior ou menor, o que resulta em uma espécie de turno específico para a incidência dos fatos. Determinadas horas, como seis da noite, meia noite ou três da manhã são predominantes entre os diversos relatos e histórias de assombrações. A noite é fator hegemônico nas narrativas orais, e nesse sentido Vidal também fala a respeito:

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Saliente-se a importância da noite na composição das histórias. A lua e as estrelas quase nunca se acham esquecida, salvo quando a escuridão abarca para oprimir os ambientes e os indivíduos, tornando-os mais favoráveis ao medo e fazendo com que o mistério enriqueça não só pelas sombras como pelos bruxos nos movimentos livres. As trevas favorecem essa liberdade. Durante o dia pode-se dizer com segurança: muito pouco, mesmo quase nada, enquanto que de noite – tudo, as almas do outro mundo é quando costumam aparecer para os mal-assombrados. A bicharia fantástica anda mais facilmente se não houver luz. E o lobisomem não foge à contingência de seu intenso viver noturno: prefere sempre o escuro de breu à claridade do luar. De modo que a noite é cumplice indispensável na formação direta das lendas. (VIDAL, 1950, p.22).

Câmara Cascudo ressalta essa característica ligada ao aparecimento de assombrações e sua relação com os horários. As “horas abertas” estão para nortear o sertanejo acerca da iminência dos perigos que, nesses momentos, ganham expansões quase ingovernáveis. Quando não se previnem, veem, escutam, sentem o medo ocupar o corpo, pois acabam-se as defesas, e ganham liberdade as forças malévolas, os entes ignorados pelo nosso entendimento (CASCUDO, 2002):

As horas abertas são aquelas em que as coisas más podem agir. Demônios e fantasmas atuam livremente [...] ao escurecer e nas ultimas trevas, aparecem pelas encruzilhadas a Porca dos Sete Leitões, os negrinhos misteriosos, o Cavalo-sem-cabeça, visagens brancas e vagas, com função exclusiva de assombrar, silvos, apitos, rumores sem explicação. Meio-dia, meia-noite [...] são horas misteriosas para o povo. Horas de aparições e de bruxedos. [...] é quase de fé que nas encruzilhadas se vê coisa ruim, encontram-se pelas estradas umas coisas más. (CASCUDO, 2001, p. 274).

Como se pode ver, há aqui, uma espécie de sentido no sobrenatural, que se repete ao longo de outras diversas narrativas da tradição oral. Não se tratam de meras explicações casuais feitas por pessoas amedrontadas diante do pavor de um barulho estranho na mata no breu da noite, ou de um vulto ligeiro que subitamente lhes ocorreram na varanda do sítio, mas sim de uma lógica ordenada, galgada por mecanismos simbólicos que resultam num universo particular de crenças, fazendo completo sentido no tocante às questões essenciais da vida cotidiana do sertanejo.

A partir disso, podemos recorrer às afirmações de Paul Veyne, em Acreditavam os

Gregos em seus mitos?, onde analisa as narrativas míticas ou sobrenaturais dos gregos como

mecanismos que instituem realidades. Para ele, o real é constituído pela imaginação, lugar onde também são moldadas as religiões ou literaturas, como também as políticas, os

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comportamentos e as ciências. Ele se embasa da lógica na qual os gregos atribuíam aos seus mitos, para desenvolver a tese sobre as modalidades de crença (crer na palavra dada – nas narrativas, crer por experiência própria). E assim sugere em sua obra, a necessidade de falar sobre “verdades” – em relação ao seu objeto de estudo – ao invés de “crenças”. Pois as verdades, para fazerem sentido, precisam caminhar através dos campos da imaginação, e essa caminhada é formulada ao longo de processos históricos, para ao final, se estabelecerem como tal:

Não estamos fazendo uma ideia falsa das coisas: é a verdade das coisas, que, através dos séculos, é estranhamente constituída. Longe de ser a experiência realista mais simples, a verdade é a mais histórica de todas. Houve um tempo em que os poetas ou historiadores discorriam livremente sobre as dinastias reais, com o nome de cada potentado e sua árvore genealógica; não eram falsários nem agiam de má fé: eles seguiam o método então normal para alcançar verdades. (VEYNE, 1984, p. 9-10)

Cabe colocar aqui, como de igual importância, os comentários acerca do papel da imaginação ao longo da história. Diz Veyne:

Não quero dizer de forma alguma que a imaginação anunciaria as futuras verdades e que deveria estar no poder, mas que as verdades já são imaginações [...].

Esta imaginação, pode-se ver, não é a faculdade psicológica e historicamente conhecida por esse nome; ela não amplia nem em sonhos nem profeticamente as dimensões do frasco onde estamos presos: ao contrário, ela levanta barreiras e, fora desse frasco nada existe. [...]. nesses frascos moldam-se as religiões ou as literaturas, tanto quanto as políticas, as condutas e as ciências. [...]. Os homens não encontram a verdade. Fazem-na, como fazem sua história [...]. (VEYNE, 1984, p. 10)

Portanto, os homens não encontram a realidade, por um simples acaso do destino ou pela intrigante curiosidade empírica característica do espírito humano, mas fazem-na, moldam-na e a constroem, de modo que ela os recompense ou dê sentido ao seu lugar no universo (VEYNE, 1984). A veracidade dos seres e dos fenômenos é atestada em termos da convivência das relações que se permitem estabelecer. Os critérios para determinar a existência de qualquer criatura devem ser buscados nos sentidos que elas carregam e na adequação que os homens fazem para inseri-las em seu horizonte simbólico (KAPPLER, 1994).

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Aos dois entrevistados para essa monografia (principalmente ao que teve experiências reais com o sobrenatural) converge os breves comentários acerca da materialidade sobrenatural, colocadas pelo historiador Alfredo Bosi na obra Dialética da Colonização, propondo a possibilidade de construção de uma teoria geral da cultura brasileira - a qual ele mesmo diz ser uma tarefa ainda longe (ou impossível) de se definir - constrói uma linha de pensamento acerca da indivisibilidade do simbólico/sobrenatural/imaterial (existente na cultura, na tradição e em práticas populares) com o material/físico/real, cujo o sentido complementa significativamente esse presente trabalho. Segundo Bosi (1992) o exercício da construção de uma teoria geral da cultura popular deveria levar em conta elementos materiais, simbólicos e imagéticos, tendo em vista o caráter indissociável dessas esferas no cotidiano do homem do campo. São os alimentos, o vestiário, as práticas de cura, as ferramentas agrícolas e as de caça e pesca, o fumo, o modo de sentar, modo de cumprimentar, as crenças, os hábitos religiosos, simpatias e etc., que se confluem em um mecanismo uníssono para dar sentido à vida e ao seu lugar no mundo:

A enumeração é acintosamente caótica, passando do material ao simbólico e voltando do simbólico para o material, pois o intento é deixar bem clara a indivisibilidade, no cotidiano do homem rústico, de corpo e alma, necessidades orgânicas e morais.

[...] a vida do corpo, a vida do grupo, o trabalho manual e as crenças religiosas confundem-se no cotidiano [...] de tal modo que quase se poderia falar em ‘materialismo animista’ como filosofia subjacente [...]. Materialismo, enquanto o homem [...] conhece, por força das suas origens diárias, o uso da matéria, lida com a terra ou instrumentos mecânicos, que são seu único meio de sobrevivência [...]. Mas esse mundo da necessidade não absolutamente desencantado [...]. Há [...] uma relação tácita com uma força superior, relação que se desdobra em várias entidades anímicas, dotadas de energia e intencionalidade, como os santos, os espíritos celestes, os espíritos infernais, os mortos;

Assim, um cabal empirismo ou realismo no trabalho [...] se conjuga com um universo potencialmente mágico, ora fasto, ora nefasto, construído de acasos, azares, sortes, simpatias, maus-olhados, pés direitos, pés esquerdos, e se concretiza nos objetos que a crítica racionalista se acostumou a considerar supersticiosos: imagens, fotos, figas, amuletos, medalhas, bentinhos, pedras, ervas, animais, que compõem o sistema simbólico do animismo [...]. (BOSI, 1992, p. 324-325)

O que se capta como importante, nos apontamentos feitos por Bosi logo acima, é a forma como ele expõe o mundo construído pelos indivíduos a grupos dentro da cultura popular (mas que aqui aplicaremos a um raio de ação mais reduzido, remontando apenas a uma tradição específica, que é a existência de entidades místicas e todas as práticas e comportamentos que

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nelas estão envolvidos). A fundamentação que o historiador propõe é a de que, no cotidiano do sertanejo, os limites entre o físico e o imaginário são voláteis, as esferas materiais e simbólicas são mais ou menos indistintas, e o “materialismo-animista” seria uma expressão adequada para concatenar essas esferas de percepção de mundo. O “materialismo” é representado pelos usos e aplicações do dia-a-dia, os materiais de trabalho necessários para a subsistência, as técnicas. Enquanto o “animismo” é a noção lógica aplicada àquilo que está localizado no âmago do imaginário, e que acaba por estabelecer uma “relação tácita”, palpável e física com fenômenos sobrenaturais.

É de acordo com essa lógica do sentido que o sertanejo tece o tapete de sua realidade

sobrenatural. Ele cria, recria, desenvolve, elucida e transmite as histórias de acordo com as

suas experiências. Constrói para si – a partir de suas vivências e através do ato de contar - e para os demais da comunidade, uma gama de símbolos e valores, que precisam ser aceitos, assimilados e compartilhados por outros para que se torne um fato relevante dentro das práticas culturais daquele espaço a partir do âmbito coletivo. Assim, pode-se dizer que a tradição oral é um fenômeno indissociável da coletividade, tendo em vista que sua pedra fundamental envolve o falar e o ouvir. Pereira e Gomes (2002) explicam que oralidade supõe mediação exercida a partir de um indivíduo em direção aos seus ouvintes. Seu aspecto decisivo é o de que o narrador a emprega para relacionar-se com o grupo, a fim de estimular a troca de bens simbólicos. A ênfase nessa troca se justifica pelo interesse de preservar algo que é compartilhado com uma comunidade afetiva formada por amigos, parentes, vizinhos, enfim, pela coletividade próxima do contador. Nela o afeto se faz presente, pois através das histórias contadas o ouvinte é levado para dentro de si, sustentado pelo o que é dito e capturado por experiências de vida consonantes. O vínculo do narrador com a coletividade decorre do fato de que a legitimação do primeiro depende, em grande parte, do sistema de relevância do grupo que o elege como agente importante para aquela ordem social. Outro ponto é o cruzamento de episódios que validam essa afetividade. É no instante em que esses episódios se cruzam que o ouvinte se reconhece no narrador, o Eu estabelece um elo, um vínculo com o Outro, fato que permite com que o conto aconteça em sua plenitude. Essa força agregadora abre caminho para os percursos de identidade, em que a memória e a transmissão de episódios individuais funcionam como chave para a formação de valores coletivos (OLIVEIRA PIRES, 2006).

Quando não há a presença de fatores como esses em uma determinada comunidade (tratamos aqui de espaços da zona rural, sejam eles pequenas vilas, alguma cidadezinha do interior) outras lógicas se sobrepõem para ocupar vácuos. Mas isso já se trata de outra questão

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que pode ser analisada em trabalhos seguintes, com dimensões mais abrangentes. O que interessa aqui é identificar e fazer a comprovação de que elementos da cultura popular vêm se tornando obsoletos dentro de práticas basilares para a construção de identidade e solidificação do espírito coletivo no meio desses espaços e de seus respectivos habitantes, em um determinado momento histórico. A fauna fantástica é o que interessa de fato nessa monografia, ela reúne os seres que perambulam pelo imaginário popular e, que trazidos para a dimensão física, transfiguram-se em realidade diante do homem do campo. Fala-se em Lobisomens, Caipora, Flor-do-Mato, Mãe-da-Lua e uma infinidade de outras criaturas que influenciavam aspectos comportamentais, sociais e artísticos dos lugares em que habitam.

São formas de vida que encantavam, amedrontavam e estavam presentes no cotidiano, no caminho de volta para casa através de uma estrada de barro, escondidas em uma árvore durante a noite de caça, atravessando algum rio em uma pescaria, voando pelo céu nas noites de lua cheia, anunciando a partida de um ente querido ou a chegada da seca, estabelecendo contato com a população nativa, cedendo permissão para que entrassem na floresta e assim por diante. Em torno delas, se contavam histórias, narrativas, causos, ou qualquer que fosse o meio de transmissão pela fala, e assim era instituída uma criatura com seus poderes e características próprias. Como Vidal evidencia, quando fala acerca da Mãe-da-Lua, pássaro que recebeu atributos mágicos no sertão:

Na mata existe um pássaro conhecido por Mãe da Lua. O povo criou a imagem material do mito. É pássaro noturno, parecido com o bacurau. Tem boca larga, bonita e durante o dia, se esconde nos tocos de pau. O cântico que sai da sua garganta é rápido e muito igual, sem a menor variação, mas, não obstante delicioso, cheio de uma tristeza que não se descreve. Dá a ideia de gargalhada de doente mistura com o canto dos namorados. Nas noites de luar se amiúda a Mãe da Lua no seu dolente cantar. Como que se mostra seduzida pelo astro que esplende no alto, boiando em céu azul e, às vezes, entre nuvens. É pássaro sagrado. Todos demonstram ter por ele um respeito exagerado. Os caçadores evitam matá-lo. Seria azar certo: a caça jamais se deixaria pegar. (VIDAL, 1950, p. 377)

A partir dos avistamentos, contatos imediatos com os entes, a experiência logo merecia ser transmitida para os vizinhos, conhecidos e familiares. Os acontecimentos eram compartilhados “durante uma reunião familiar, de vizinhos, do pátio externo das residências – no terreiro – ou no interior das casas de farinha, geralmente durante o descanso da noite” (VASCONCELOS, 2001). Assim um caçador poderia saber os lugares pelos quais poderia passar na floresta sem ser importunado pela Caipora, ou então entender que em certas horas

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do dia ou em alguns dias do ano a melhor opção era não entrar na mata, da mesma forma que uma dona de casa saberia o momento em que uma estrada de barro seria tomada por assombrações e assim decidiria atravessá-la um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, dependendo da urgência da situação.

Ouvindo e participando das vivências de populações e comunidades tradicionais – aquelas muitas vezes consideradas marginais, rústicas e primitivas - espalhadas pelo Rio Grande do Norte, Luís da Câmara Cascudo foi autor de elevada importância para o presente trabalho, sua contribuição se revela a partir dos levantamentos acerca das superstições e, principalmente, nos mapeamentos e nomenclaturas que encontrou e sistematizou em consequência de suas experiências no interior e no litoral do estado. Obviamente não se pretende cometer os deslizes classificatórios, tão característicos dos movimentos folcloristas, dos quais realocam os habitantes com suas práticas culturais à meros objetos de estudo. Mas recorrer a obras como Geografia dos Mitos Brasileiros e Dicionário do Folclore Brasileiro foi fator essencial para entender a ocorrência das lendas e assombrações que eram realidade na época de suas pesquisas e como elas eram distribuídas espacialmente ao longo das cidadezinhas do sertão potiguar.

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2 OS SERES FANTÁSTICOS: LEVANTAMENTO

No livro Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo (2001) – acompanhado dos amigos e intelectuais que o ajudaram na elaboração da obra – revela, sob a forma de verbetes classificados em ordem alfabética, o mundo folclórico das figuras populares, indígenas, da culinária e de temas que atravessam os limites físicos de existência material, estes últimos que também se tornam fatores essenciais no cotidiano dos diversos personagens que compõem e vivenciam a cultura do povo. A partir do levantamento dos elementos classificatórios existentes nesses escritos é possível fazer as associações necessárias para lançar luz sobre a vigência do imaginário que flui pela mentalidade do sertanejo, como também os seres que fazem parte dessa fauna fantástica e compõem essa realidade que transpõe o mundo material.

No verbete “Conto Popular”, o escritor potiguar é bastante sucinto no que se refere a esse significado, informando assim que se trata do “conto folclórico, a estória [...] e que ocorre no contexto do maravilhoso e até do sobrenatural. É a estória de Trancoso, conto de fadas, da carochinha etc.” (CASCUDO, 2001, p. 156). Ele ainda revela sua admiração por essas práticas ao dizer que elas são de grande importância no sentido de expressão de psicologia coletiva no panorama da literatura oral do país (CASCUDO, 2001, p. 16). Mas o mais interessante é observar a ordenação, feita pelo autor, dos tipos de contos populares que existem, dos quais ele classifica em cinco, alegando sua divisão em grupos primários simples segundo os temas a que estão ligados, são eles:

Contos de Encantamento: correspondem aos contos de fadas, estórias da

carochinha, caracterizado pelo elemento sobrenatural, miraculoso, maravilhoso; Contos de Exemplos: são contos de fundo moral, havendo sempre a intenção educativa; Contos de Animais: fábulas tendo o animal como o personagem principal; Contos Religiosos: caracterizam-se pela presença ou interferência divina; Contos Etiológicos: explicam a origem do objeto, seja animal, vegetal ou mineral. (CASCUDO, 2001, p. 157).

A classificação metodológica dos tipos de contos populares é uma proposta bastante interessante, mas desliza quando mostra pretensão de engessar e padronizar comportamentos culturais, que em sua essência são plurais, multifacetados e voláteis. O que vale ressaltar aqui é que uma mesma história pode se enquadrar em uma ou mais classificações (quando não, em todas) no que se refere à sua temática, e não somente presa a um único elemento. Em uma

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mesma narrativa podemos encontrar elementos sobrenaturais, envolvendo animais, na qual são explicadas suas origens ao mesmo tempo em que se pretende transmitir uma moral, um ensinamento. O exemplo mais prático para demonstrar o quão abrangentes podem ser esses contos tradicionais, comprovando sua multiplicidade de valores, acima de qualquer enquadramento científico, é o da Mula-sem-Cabeça, descrita inclusive na mesma obra em questão. Assim, escreve Cascudo:

É a forma que toma a concubina do sacerdote. Na noite de quinta para sexta-feira, transforma-se num forte animal [...] e galopa, assombrando quem encontra. [...] A violência do galope e a estridência do relincho são ouvidas ao longe. Às vezes soluça como uma criatura humana. O encanto desaparecerá quando alguém tiver a coragem de arrancar-lhe da cabeça o freio de ferro. [...] Quando o freio lhe for retirado, reaparecerá despida, chorando arrependida, e não retomará a forma encantada enquanto o descobridor residir na mesma freguesia. (CASCUDO, 2001, p. 402)

Nesse conto se pode notar a presença do encantamento, que evolui para o maravilhoso, na medida em que a figura feminina se transforma em outro ser. A mula, ser transformado, tem características animais bem como humanas: apresenta patas e pelos, mas o lamento é fiel ao de uma mulher. A etiologia em torno da Mula-sem-Cabeça faz referência à relação amorosa entre uma mulher e um sacerdote (Padre), fato que é considerado como heresia pela Igreja, ou seja, a mulher se transforma em mula como uma espécie de castigo por ter se relacionado com um Padre. Isso demonstra que os contos de encantamento, de exemplos, de animais, religiosos e

etiológicos, aparecem simultaneamente numa mesma história, e evidencia a amplitude que a

prática da transmissão oral pode alcançar, podendo ser considerada um mecanismo com diversas facetas diante do que é vivenciado em torno das comunidades, e não encaixado como um quebra-cabeça de peças fixas, mas de peças que se organizam ao sabor do que é pretendido para variadas situações com discretas mudanças de acordo com o espaço em foco.

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Figura 1 - Representação da Mula-sem-Cabeça

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

A importância do Dicionário do Folclore Brasileiro para esse trabalho está localizada nas nomenclaturas e verbetes que Cascudo seleciona para formar o que existe de mais autêntico e característico das práticas culturais do país e, além disso faz também a identificação das muitas criaturas que habitam tanto o imaginário e, porque não, a realidade dos homens e mulheres das zonas rurais. O que pode ser considerado mais pertinente é a listagem que se pôde fazer dos nomes e características principais dos seres fantásticos mais recorrentes, principalmente da região nordestina, no imaginário e na literatura oral, os quais são facilmente identificados em comparação com o que se ouviu nas entrevistas realizadas, talvez alguns com uma característica levemente diferente, um detalhe a mais ou a menos, mas inegavelmente se tratam de das mesmas criaturas, igualmente relatadas.

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2.1 SERES DAS MATAS

Figura 2 - Representação do Caipora

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

A despeito disso tomemos o exemplo do Caipora:

É o curupira, tendo os pés normais. [...] residindo no interior das matas, nos troncos das velhas árvores. De defensor de árvores passou a protetor de caça. Em qualquer direção pelo Brasil, o Caipora é um pequeno indígena, escuro, ágil, nu ou usando tanga, fumando cachimbo, doido pela cachaça e pelo fumo, reinando sobre todos os animais e fazendo pactos com os caçadores. [...] aparece com a cabeça hirta, olho em brasa, cavalgando o porco [...] e agitando um galho de japecanga. Engana os caçadores que não lhe trazem fumo ou cachaça, surra impiedosamente os cachorros. Na Bahia é uma cabocla quase negra ou um negro velho [...] Por onde emigra, o nordestino vai semeando suas figuras e crenças. O caipora, popularizadíssimo no sertão, no agreste e na praia, vai alargando a área geográfica do seu domínio. O Caipora, com o contado do focinho, do porco, da vara de ferrão, do galho de japecanga ou da ordem verbal imperativa, ressuscita os animais mortos sem sua permissão, apavorando os caçadores. (CASCUDO, 2001, p. 98).

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Temos aí um ser/entidade personificado em pequena silhueta, por vezes com traços indígenas, por vezes com fenótipo negro, o que varia de acordo com uma série de fatores, desde o espaço até o indivíduo que presencia o fato, sendo útil lembrar dos estudos de Burke (2010, p.59) ao dizer que “a cultura surge de todo um modo de vida, é de se esperar que a cultura camponesa varie segundo diferenças ecológicas, além das sociais; diferenças no ambiente físico [...] estimulam diferentes atitudes”. Diante disso é possível dizer que em muitas narrações os nomes se diversificam, assim como o comportamento e o temperamento atribuído ao ser, mas a proximidade entre as características básicas se sobressai, o que nos revela que as histórias sofrem configurações, são atravessadas por diversos vetores e filtros, influências daqueles que contam ou daqueles que “viveram pra contar”, mas há um pilar resistente, no qual podemos dizer que se trata de um “esqueleto narrativo”, em que a essência da história e a proximidade de pontos em comum com os relatos nos leva a concluir que dois ou mais casos diferentes falam de uma mesma criatura. No início do verbete acima citado, o autor fala que a Caipora é o Curupira, sendo que a diferença do primeiro pro segundo é o sentido dos pés: enquanto a Caipora tem os pés voltados para frente, o Curupira os tem voltados para trás, no mais, são caracterizados por fazerem as mesmas artimanhas, terem as mesmas preferências e se movimentarem de maneiras parecidas.

Ver o Caipora na mata era um sinal, para os caçadores, de que aquele dia não iria render bons frutos, a não ser que em troca levassem consigo algum tipo de oferenda, principalmente as que fossem do feitio da criatura (CASCUDO, 2002). Ela estabelece uma espécie de relação com o homem do campo, em que o escambo de favores é essencial para se manter a cordialidade, concedendo abundância de animais quando da caçada por exemplo. Caso contrário não havia a consumação do intento: os animais pouco apareceriam durante uma noite inteira, a floresta se tornaria deserta no tocante à presença dos bichos. Tudo por conta do poder que essa entidade detinha por sobre o lugar que habita. Para apoiar todo esse escopo descritivo em relação ao Caipora, Cascudo usa do relato de outros autores e contadores de histórias em seus escritos:

[...] Esses entes habitam as florestas ermas donde saem à noite a percorrer as estradas. Infeliz daquele que se encontra cara a cara com o Caipora. Nesse dia tudo lhe sai mal, e outro tanto lhe acontecerá nos dias seguintes, enquanto estiver sob a impressão do terror que lhe causou o fatal. (ROHAN, 1889, n.p apud CASCUDO, 2002, p. 120)

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A despeito da relação que o Caipora estabelece com os caçadores, temos:

Tem comércio com caçadores famosos que dão-lhes presentes de fumo, cachaça e baieta em troca da quantidade [...] que deseja matar [...].

Uma vez estabelecido o convênio, o feliz caçador tem caça à vontade e usa discricionariamente desse privilégio. Os que não o possuem, encontram o caapora e sua manda, perdem o seu tempo, palavra e chumbo.

Isso acontecendo, pode o caçador imprudente e inexperto retirar-se. É debalde. A caçada está perdida. (AMBRÓSIO, 1934, p. 71 apud CASCUDO, 2002, p. 121)

Mais detalhado ainda, é o relato de um agricultor, homem do campo, que detém muitas vezes a experiência empírica das coisas que no meio rural ocorrem e se propagam. Diz um certo agricultor Severino Pereira de Lima:

A Caipora é dona da caça [...] O caçador que ela protege deve levar de presente fumo [...[ Detesta pimenta. O caçador auxiliado por ela mata toda versidade de caça que vier em bando. Não atira, porém, em animal isolado nem sobre o ultimo do bando, porque talvez seja a Caipora transformada em bicho, guiando-os para o afilhado. (LIMA, 19??, n.p., apud, CASCUDO, 2002, p. 121)

Para efeito de comparação, no verbete Curupira, Cascudo fala:

Um dos mais espantosos e populares entes fantásticos das matas brasileiras. [...] O Curupira é representado por um anão, cabeleira rubra, pés ao inverso, calcanhares para a frente. A mais antiga menção de seu nome fê-la o venerável José de Anchieta, de São Vicente, 30 de maio de 1560: “É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios e que os brasis chamam Curupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhe de açoites, machucam-nos e matam-nos. São testemunhas disso os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oferenda, rogando fervorosamente aos Curupiras que não lhes faça mal”. [...] Demônio da floresta, explicador dos rumores misteriosos, do desaparecimento de caçadores, do esquecimento de caminhos, de pavores súbitos, inexplicáveis [...] Sempre os pés voltados para trás e de prodigiosa força física, engana caçadores e viajantes, fazendo-os perder o rumo certo, transviando-os dentro da floresta, com assobios e sinais falsos. [...] Do Maranhão para o sul até o Espírito Santo, o seu apelido constante é Caipora. [...] Na cidade ou nas capoeiras vizinhas imediata não existem Curupiras. Habitam mais para longe,

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não é motivo de preocupação porque os Curupiras não gostam de lugares muito habitados. Gostam imensamente de fumo e de pinga. [...] roceiros deixam esses presentes nas trilhas que atravessam, de modo a agradá-los ou pelo menos distraí-los. Na mata os gritos longos e estridentes dos Curupiras são muitas vezes ouvidos pelo caboclo. Também imitam a voz humana, num grito de chamada, para atrair vítimas. O inocente que ouve os gritos e não se apercebe que é um Curupira e dele se aproxima perde inteiramente a noção do rumo. (CASCUDO, 2001, p. 172-173).

Manipulador da floresta, essa criatura consegue controlar tudo que pertença ao ambiente natural: animais, pequenas pedras, galhos, folhas, arvores inteiras. Tudo o que é sertão pode ser regido a partir de sua vontade. Assim ele dá seguimento ao cotidiano da floresta, “vigiando árvores, dirigindo manadas de porcos-do-mato, arrancadas de veados e pacas, assobiando estridentemente, [...] o mais vivo dos deuses da floresta tropical [...]” (CASCUDO, 2002, p. 109).

Para demonstrar como se daria um possível encontro entre um indivíduo qualquer e o Curupira, Câmara Cascudo recorre a um relato – ao qual ele denomina “documentário”- extraído da obra Canaã, do escritor e diplomata maranhense Graça Aranha, na qual um indivíduo está atravessando uma região de mata qualquer, quando de repente é assombrado por uma visagem, entrando até em luta corporal com a mesma. Todo o susto e as peripécias feias pela entidade pode ser considerado como um paradigma do que esse ser fantástico é capaz. Diz o narrador:

Lá no fundo da mata havia uma aberta e me parecia que um vulto caminhava pra mim. Não dei importância ao sujeito e disse comigo: - Há de ser o filho do Zé Marinheiro, que se recolhe, porque o pai não o deixa ir à festa. De repente, ouço um assobio fino que vinha de trás. Pensei: - É algum camarada que vai se divertir e me chama. Voltei a cabeça e não vi ninguém. Assuntei de novo, nada. Continuei a andar...outro assobio me passava, cortando os ouvidos, outro, outro, de toda a parte se apitava, do fundo do mato, da boca da estrada, por cima das árvores. - Que bandão de corujas por esta noite... Há de ser agouro. - Tive assim um arrepio de frio, e para me sossegar quis me valer do encontro com o filho do Zé Marinheiro. Mas olhei firme para frente e não vi ninguém. - Onde se meteu o diabo do pequeno? - Os assobios iam me rodeando sempre, eu já estava com a cabeça tonta, o coração me batia a galope. Outra vez vi o pequeno a minha frente; reparei bem, porque ele estava perto e vi que não era o filho do português. - A modo que não conheço este caboclinho. Nós estávamos assim a umas cem braças um do outro, quando o pequeno se sumiu de novo. Os assobios de coruja não largavam. Eu resmunguei: - Que faz esse sujeitinho que desaparece de vez em quando? Isto não é coisa boa. - E ele torna a repontar. Então gritei com voz de susto, bem alto para intimar o cabra: - Olá, amigo, que conversa é essa? Você me fazendo visagens? - Não digo nada; boca para que falaste? A mataria toda passou a assobiar como Demônio, e eu comecei a ficar apavorado com a matinada. O caboclinho estava agora a umas dez varas de mim. O sangue me fervia, a

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cabeça me queimava. Não digo nada; o certo é que avancei para o pequeno com raiva de cego. - Ah! Seu Diabo, tu me pagas. - Armei o pau para cima...Mas quando eu me vi, estava seguro pelos pulsos. - Larga! Berrei. O caboclinho com olhos de sangue encarava. - Larga! - e eu sempre seguro. Fiquei como um garrote ferroado. Avancei para o cabra com mais zanga do que quando me atraquei com Antônio Pimenta, uma feita numa vaquejada. Lembrei-me de quanto boi valente deitei por terra, e agora ali zombado por um caturra! Nós lutamos para baixo, para cima; eu dava de cabeça na cara do bicho, metia-lhe os pés na canela, e ele sempre duro, o mal-encarado! Com o cabo de poucos minutos, eu ouvi um berro de estrondo, um berro de onça; ah! Pensei que o malvado me deixava. Mas foi pior, porque outros berros se repetiram, caitetu vinha batendo queixo, gatos bravos miavam; ouvi cascavel tocar seu chocalho... Com poucas eu estava no chão com o caboclo em cima de mim. Toda a bicharia se agitava no mato e caminhava para nós; as arvores mesmo se curvavam abafando, os gaviões descia, os urubus cheiravam minha carniça... Eu senti um medo mole e abandonei as forças. Comecei a tremer de frio, o suor me alagava a roupa, e eu disse: - Vou morrer meu São João. E os olhos se me fecharam como de morto... Levei um tempão desacordado sentindo os bichos me rodeando, comandados pelo endiabrado... Depois de tudo foi caindo o sossego; os meus pulsos estavam desembaraçados; um grande calor me fervia o corpo; abri os olhos devagarinho... tudo parado... tudo tinha desaparecido, a lua era clara como o dia. Eu estava afadigado de tanta luta... a língua estava seca e dura que nem de papagaio. Abri os olhos, e não vi mais nada, nem o caboclo, nem os bichos brabos. Mas tive então um grande medo e tratei de abalar dali. Passei a mão em roda de mim, caçando minha garrafinha de restilo e as toras de fumo. Para espertar não há nada melhor que um gole de cana e uma masca... Mas não encontrei nada; cacei, cacei. Nada. Pus a excogitar que toda a pendenga que o caboclo me fez, foi para me bater a garrafa. Velho tio Pereira me veio à cabeça com suas palavras: - Currupira te assombra. Para tu te veres livre, dá, logo que o avistes, cachaça e fumo. E eu vi que naquela noite tive trabalho com Currupira. Levantei-me de um pulo. Quis correr para a ramada de Maria Benedita, o samba devia estar aceso àquela hora. Olhei para a frente e a estrada ia acabar longe, muito longe. Tive medo de novo encontro. Voltei pra trás; vinha como um preto bêbado, cai aqui, cai acolá; saí no campo esbarrando com o gado; os olhos me ardiam, todo o meu sangue batia para saltar de dentro, a boca estava grossa, eu trazia uma sede de jabuti... mas lá vim assim mesmo navegando até a porta do rancho. Não tive conversa, atirei-me vestido na rede que com meu corpo sacudia como uma canoa no Boqueirão... (ARANHA, s.d, p.102 apud CASCUDO, 2002, p. 110-111)

Temos duas criaturas, cada qual com um nome diferente, mas com traços muito próximos: baixa estatura, ora características indígenas ora negras, vivem na mata, assombram os caçadores e transeuntes que atravessam a floresta e apreciam tabaco e cachaça. Nesse caso, a diferença mais discrepante existente entre uma e outra é a nomenclatura que recebem de acordo com cada região, onde “do Maranhão para o sul até o Espírito Santo, o seu apelido constante é Caipora” (CASCUDO, 2001).

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Figura 3 - Representação do Curupira

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje. São Paulo, 2019.

As ricas e detalhadas informações que são transmitidas na nota sobre o Curupira reforçam essa noção de que as discretas variações das características em torno de um ente fantástico são detalhes que, devem ser levados em conta, mas que não são necessariamente determinantes para defini-lo, afinal caberá ao narrador que desenvolve o seu conto, identificar aquilo que ele viu ou ouviu falar. Essa característica é marcante nos relatos que giram em torno de mais ou menos uma mesma entidade. Conforme disseram Pereira e Gomes (2002, p. 98) “as diversidades das versões de um mesmo relato são, por si mesmas, uma condição que aponta para a perspectiva de que a fronteira dos valores e das formas se constituem com plasticidade”. Enfim, podemos dizer que não existem muros concretados que cercam as comunidades e impedem que as narrativas se alterem ou se configurem de formas variadas; elas por vezes – como nesse caso – podem falar de um mesmo assunto em lugares e regiões diferentes (região norte e nordeste, por exemplo), mas apresentam uma roupagem diferente de acordo com as particularidades de cada local, com seu universo de bens simbólicos próprios.

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Cascudo envereda-se até os idos coloniais para mostrar que, já naqueles tempos, se falavam no Curupira/Caipora e no pavor que se tinha em relação a possíveis encontros com o que foram denominados “demônios” da floresta. Nessa viagem do tempo que ele faz, trazendo à luz um relato do padre espanhol José de Anchieta, pode-se perceber a relação com que os nativos tinham com a tal entidade: era preciso agradá-la, entregar-lhe certos caprichos, que nesse caso eram o fumo e a bebida, para que assim, pudessem atravessar tranquilos as matas sem serem interceptados. De fato, os seres fantásticos são reais diante daqueles que os tomam como verdade para si. Eles perambulam, pastoram, têm gostos e preferencias, se comunicam – de forma positiva e/ou negativa, e segundo a assertiva de Pereira e Gomes (2002) são considerados “corpos históricos”, pois se materializam diante dos habitantes das comunidades: deixam rastro, fazem barulhos, dão risadas, assoviam, trançam a crina dos cavalos, imitam a voz humana.

A Florzinha, ou Flor-do-Mato, também é um outro ser que apresenta características bem parecidas com os dois últimos citados logo acima. A peculiaridade que a diferencia dos demais, segundo as definições do Dicionário, refere-se ao seu possível sexo biológico:

Um dos nomes da Caipora-fêmea [...] tem os mesmos atributos de guiar a caça e gostar de fumo. Favorece ao pobre caçador quando, por sua vez, se vê beneficiada de alguma coisa. Não o sendo, fica irada e se vinga escondendo a caça, afugentando-a para longe, gostando de brincar, debicando ou fazendo com que o homem se canse e nada consiga. Depois assobia, vaiando. Chega até a dar boas e gostosas gargalhadas de deboche... Para fazê-la mansa, para fazer flor (boa e ajudando a gente), é necessário levar no bornal uma lembrança, que se bota num pé de pau e ela vai buscar. (CASCUDO, 2001, p. 234).

A Mãe-do-Mato, nome que já deixa clara a sua posição de matriarca, é protetora incondicional da floresta. Usa de avisos, mesmo que discretos, para se comunicar com aqueles que perturbam a ordem cotidiana da mata nativa. Os viajantes, ou caçadores que montam acampamento quando estão em seus serviços, quando sabem da existência de aparições desse ser fantástico na localidade, ficam alertas, escondem instrumentos de trabalho e outros objetos, uma forma de prevenção e medo, para que não sejam surpreendidos, nem que irritem aquela que protege o lugar das ambições do homem:

Nos acampamentos dentro das matas, os trabalhadores ao se encaminharem para o serviço, desatam as redes ou desarmam as camas, com medo de que a

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