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Os seres aqui reunidos foram enquadrados em uma categoria, de certo, fluida. São criaturas fantásticas que não apresentam forma definida, aquelas nas quais não se sabe ao certo a forma que tomam quando aparecem, mas aparecem, e, do mesmo modo das categorias anteriores, não ficam de fora do imaginário e do medo do sertanejo. Algumas disseminam-se através do elemento fogo, como a Coroacanga. Outras emanam do interior de espécies naturais, especialmente aves, como é o caso da Rasga Mortalha. E ainda, há os que se apropriam do corpo biológico de animais da fauna nativa para consumar sua missão na terra, sendo Anhangá um grande exemplo.

No Dicionário do Folclore Brasileiro há o Guajara, definido por Cascudo como uma espécie de duende. Nesse caso, suas características físicas são realmente incertas, e o que se

sabe sobre ele é, somente, sua capacidade onímoda, podendo assumir formas animais bem como também imitar fenômenos da natureza:

[...] manifesta-se nas noites de inverno, raras vezes nos dias de verão, imitando vozes de animais, ruídos de caçador, pescador [...] fingindo cortar árvores, assombrando os viajantes [...] perturbando a tranquilidade normal. A tradição comum torna-o invisível, determinando o pavor pela diversidade de simulação. Açoita os cães, que podem sucumbir depois do suplício. Grita, acompanha o viandante. (CASCUDO, 2001, p. 266)

Figura 9 - Representação do Guajara

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

O José Bento, em entrevista, relata uma ventania que lhe atravessou enquanto estava de tocaia a espera de um tatu – chamado comumente na região de peba. O fato, para ele inexplicável, reverberou como um aviso, um sinal ou uma advertência que veio além do plano físico, fazendo com que o levasse, desde esse dia, a não mais caçar à maneira de emboscada, principalmente quando a presa fosse o animal em questão. Como se os medos e, por conseguinte, os “monstros” trazidos à vida, em situações análogas, o levasse a analisar o ocorrido na esfera do imaginário/maravilhoso, como que impondo-lhe suas regras e critérios

(DEL PRIORI, 2000). Mesmo não sabendo explicar o nome, ou nem mesmo imaginando a possibilidade de nomear o que de fato pode ter acontecido, podemos fazer uma relação do Guajara, com a assombração vivenciada pelo caçador, quando ele diz:

[...] eu tava acolá pastorando um peba num formigueiro, eu tinha achado onde ele entrou, e fui pastorar, de seis horas da noite eu fui pra lá. E de lá deu umas dez horas, era noite escura. Eu acendi a luz lá junto do formigueiro pra eu poder quando ele fosse sair. De umas dez pra onze horas, o peba botou assim a metade pro lado de fora, ficou assim tomando faro pra cá pra acolá, voltou pra trás [...] apareceu umas três vezes mas não saía [...] aí quando deu onze horas da noite, pra onze e meia, começou um bocado de plástico, lá não tinha nem sinal de plástico, mas começou uma “latomia” lá de plástico “trá, trá, trá”, aí eu “que molesta é isso?!”, e eu lá esperando e nada. Quando foi daqui a pouco, pegou um redemoinho à meia noite [...] tinha um bocado de pé de algaroba assim na minha frente assim, o vento veio e passou por cima d’eu e ajuntou pra banda das algaroba, arregaçando tudo. Era galho de pau caindo, um arregaçado mais feio do mundo [...] aí eu fui lá na luz, botei a foicezinha nas costas e vim embora pra casa!7

Depois do ocorrido, determinou para si:

Nesse dia pra cá, do dia que eu fui caçar o peba e deu esse redemoinho, à meia noite, arregaçando o que era de pau...eu de lá pra cá abandonei, não fui nunca mais na minha vida, não fui mais nunca pastorar peba de noite. Eu fiquei com um medo danado viu?! Sim, e quando foi no outro dia?! Amanheceu o dia, eu acordei de manhazinha, eu disse “eu vou espiar se aquele peba saiu de lá”. Quando eu cheguei lá não tinha plástico, os pau tava do mesmo jeito, não tinha nada quebrado [...]8

Com esse relato, além de mais uma vez endossar a ideia do quão real essas experiências se fazem para quem as testemunhas (VEYNE, 1983), podemos também reforçar o fator “horário” como determinante e influente a partir do ponto de vista do narrador. A todo momento, por exemplo, o José Bento recorre às horas para poder se reportar a cada episódio importante ocorrido nessa noite, e meia-noite, inclusive no decorrer de toda a entrevista, é sempre um aspecto recorrente em sua fala. São, as já referidas horas abertas, colocadas por Luís da Câmara Cascudo, ou então as horas mortas, descritas por Ademar Vidal (1950) como sendo aquele período noturno em que os portais que ligam esse mundo a outro se abrem, possibilitando a passagem dos seres da terceira margem para o mundo físico e material.

7Entrevista concedida ao autor em 14/01/2019. Transcrição em Anexo 1.

Um ser fantástico semelhante ao Guajara é o Anhangá, definido como uma forma inconstante, um espectro, vulto, visagem, sem aparência definida, mas que comumente se reveste no corpo de um veado (CASCUDO, 2001). Segundo Gonçalves Dias (s.d, p. 102 apud CASCUDO, 2002, p. 97), trata-se de uma “entidade inteiramente espiritual, responsável por todos os males selvagens”. Couto de Magalhães (1876, p. 128 apud CASCUDO, 2002, p.98) o definia como uma espécie de deus, responsável pelas caças que cedia ao ser humano, assim, para ele o “Anhangá é o deus da caça no campo; Anhangá devia proteger todos os animais terrestres contra os [...] que quisessem abusar de seu pendor pela caça, para destruí-los inutilmente”. Magalhães dá outras informações específicas, sobre a forma assumida pelo Anhangá e a que está sujeito o indivíduo que se deparar com esse ser fantástico:

O destino da caça do campo parece ser afeto ao Anhangá. A palavra Anhangá quer dizer sombra, espírito. A figura com que a tradições o representam é de um veado branco, com olhos de fogo. Todo aquele que persegue um animal que amamenta, corre o risco de ver o Anhangá, e sua vista traz febre e às vezes a loucura (MAGALHÃES, 1876, p. 136 apud CASCUDO, 2002, p. 98)

No Rio Grande do Norte, duas estórias relacionadas ao Anhangá são brevemente comentadas em Geografia dos Mitos Brasileiros. Confirmando, assim, aparições deste ser em território potiguar. Uma delas fala sobre um caçador que evitava os “dias santos”, como respeito à bicharia fantástica que habita o sertão:

Um caçador profissional, muito conhecido nos sertões do Rio Grande do Norte e da Paraíba, percorridos ininterruptamente, chamado Mandaí, atirava maravilhosamente, mas não caçada em noite de sexta-feira, especialmente havendo luar. Explicava que aquele era o dia da caça e não do caçador. Durante aquela noite o caçador se apavoraria, fatalmente. Apareceria um veado-branco com os olhos de fogo e que mastigava o cano da espingarda como se fosse cana-de-açúcar. Não é preciso muito raciocínio para mostrar que o Anhanga, protetor, está definitivamente identificado na população do nordeste brasileiro [...] (CASCUDO, 2002, p. 102)

Já um outro relato ocorreu no bairro de Morro Branco, em Natal, onde Cascudo (2002, p.102) afirma que “há uma lenda em que um marinheiro (estrangeiro) morreu de pavor, perseguido por três veados que ele não conseguiu matar”. O Anhangá ora não tem corporificação, é alma, pesadelo, é o medo sem forma, ora toma aspecto de veado, com olhos de fogo, protetor dos animais, respeitado pelos caçadores (CASCUDO, 2002).

Figura 10 - Representação do Anhangá

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

Assim, relaciona-se aqui, dois tipos de assombrações, o Guajara e o Anhangá, dos quais, mesmo não sabendo ao certo a forma que tomam ou o seu modus operandi, foram “batizados”, lhes deram nomes, o que nos leva a dizer que a recorrência de episódios envolvendo ambas é tão comum, que foi preciso denominá-las de algum modo como forma de identificação. Mesmo o José Bento não sabendo ou, pelo menos, não citando um desses nomes colocados por Cascudo, é perceptível que o caçador entendeu que aquela situação de medo em que se viu envolvido estava acontecendo porque algo (ou alguma coisa) não estava concordando com o que ele tinha planejado para o destino daquele animal que vigiava, e por isso mesmo seria necessário cessar esse tipo de atividade, principalmente no período noturno, desfecho esse reforçado quando no dia seguinte ele voltou ao local do ocorrido e verificou que as árvores, arbustos e galhos estavam intactos, como se nada do que ele presenciou na noite anterior tivesse ocorrido de fato.

Em relação à presença do elemento fogo como fenômeno pertinente às visagens e assombrações que atravessam, disformes ou multiformes, todos os espaços do sertão, destaco aqueles mais relevantes. O primeiro é a Coroacanga ou Cumacanga, descrito por Cascudo

(2001) como um misterioso fenômeno que ocorre a noite, comumente às sextas-feiras. Segundo o autor, assim procede:

Altas horas da noite, em plena escuridão, uma bola de fogo faísca no alto das árvores, dardeja no cimo das palmeiras e anda em ziguezague pelos campos, espalhando faíscas [...] e amedrontando os seres e as coisas. É a Coroacanga. O estranho acontecimento se dá geralmente nas noites de sexta-feira. (CASCUDO, 2001, p.161-162)

Ainda de acordo com o autor, o povo acredita se tratar de uma cabeça feminina que vaga perdidamente. Pode ser fruto de um pacto entre uma mulher e deuses malignos ou então, um mal causado em detrimento de um relacionamento amoroso da mesma com um padre e, sendo afligida pela maldição, sua cabeça sai do corpo durante o sono e vaga noite adentro, sem destino (CASCUDO, 2001,2002).

O segundo fenômeno é o Fogo-Fátuo, tido como uma chama que vaga incansavelmente, por sua vez em uma corrida noturna e reluzente, no entorno de cemitérios e pequenos adros espalhados pelas vilas e pequenas cidades, é uma “chama azulada que é vista saindo dos túmulos, dos cemitérios [...], muitos acreditam que seja a alma dos mortos, alma do outro mundo, assombração” (CASCUDO, p. 238). A este mito, liga-se inseparavelmente o do Boitatá, muitas vezes entendido como uma serpente de fogo, que pune aqueles que incendeiam de forma indiscriminada a floresta, podendo ser também chamado de fogo corredor:

[...] Não se vê outra coisa senão um facho cintilante correndo [...]; ataca rapidamente [...]. Mboitatá protege os campos contra aqueles que os incendeiam; como a palavra o diz, mboitatá é cobra-de-fogo; as tradições figuram-no como uma pequena serpente de fogo [...]. Às vezes transforma-se em um grosso madeiro em brasa [...] que faz morrer por combustão aquele que incendia inutilmente os campos. O nome mais popular é Boitatá. No Brasil, em maioria absoluta das informações, o Boitatá é uma alma penada, purgando

os pecados. No sertão do nordeste brasileiro conhecem-no também como fogo corredor. (CACUDO, 2001, p. 73-74)

Figura 11 - Representação do Fogo-Fátuo

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

Luís da Câmara Cascudo segue através da etimologia da palavra que batiza a lenda para poder explicá-la, trazendo luz a informação da presença de uma “cobra-de-fogo". Ainda mais, o Boitatá é associado ao Fogo-Fátuo (Fogo corredor). Apesar das pequenas particularidades que podem diferenciá-los, essa associação fica confusa. Ora a labareda é só uma tocha flutuante, ora uma serpente que brilha em detrimento dos olhos que devora, ora defende os campos contra incêndios, ora ceifa a vida de todos que encontra a sua frente:

A lenda do Boitatá existe em todo o Brasil, do norte ao sul; [...] mata todos os animais, mas não os come inteiramente: come somente os olhos [...]; tantos olhos que devora, que fica cheia de luz de todos esses olhos: o seu corpo transforma-se em ajuntadas pupilas rutilantes, bola de chamas, clarão vivo. [...] o que é, para a imaginação do povo, esse animal luminoso: é o fogo-fátuo [...] - o pequeno penacho luminoso, que aparece [...] à noite, sobre os pântanos e nos cemitérios [...] Boitatá é fogo-fátuo, luz inquieta, incerta e fugitiva. (CASCUDO, 2002, p. 146-147)

Afinal, Boitatá e Fogo-Fátuo são, em resumo, o mesmo fenômeno, o mesmo ser, criatura; “inquieta e incerta”, que cruza o sertão e o destino dos sertanejos que nele vivem. Deparando-se com ele, há três possibilidades possíveis de comportamento: ou evitá-lo, ou persegui-lo por curiosidade, ou deixá-lo seguir o seu curso, sua sina. Cada qual dessas possibilidades, segundo Cascudo, carrega consequências diferentes:

Dizem que o viajante, quando encontra, deve ficar parado, imóvel, de olhos fechados, sem respirar; então, o fogo-fátuo desaparece. Mas, quando o viajante o persegue, ele foge, intangível, e tanto mais corre quanto mais procura apanhá-lo o perseguidor; e quando, ao contrário, o homem foge, Boitatá persegue-o, inferna-o, ataranta-o, enlouquece-o [...] (CASCUDO, 2002, p. 147)

Figura 12 - Representação do Boitatá

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

Os três últimos seres enquadrados nesse grupo são pássaros da fauna natural, e estão aqui listados por possuírem facetas e dimensões sobrenaturais, tais como hábitos misteriosos, canto assustador ou por prenunciarem desgraça. “As aves, corujas, mochos, urutaus, têm fama de agoureiras” (CASCUDO, 2002, p. 386). Em torno delas foi construída uma narrativa mística que as cobriu com o manto da superstição. De fato, são espécies reais, mas que carregam

consigo uma segunda face; obscura, misteriosa, enigmática, inexplicável, desconhecida em forma, mas muito bem sabida em faculdade.

A Rasga Mortalha é uma espécie de coruja (Tyto Alba), de hábitos noturnos, voo pesado e baixo. Corujas já são conhecidas no sertão como animais que carregam um mal sinal:

[...] pelos seus hábitos misteriosos, seus voos imperceptíveis, a impossibilidade de vê-las durante a luz meridiana, suas rapinagens noturnas, especialmente o canto melancólico, profundo e tenebrosos, guardam o segredo duma repulsa que não conhece limites nem idiomas. (CASCUDO, 2002, p. 386)

Em O Dicionário do Folclore Brasileiro, Cascudo (2002) as descreve como anunciadora de morte quando sobrevoa a casa de enfermos, “avisa desgraças pela simples audição do canto lúgubre”. Segundo ele, a Rasga Mortalha que cantar sobre a casa de algum enfermo decreta fatalmente o destino daquele pobre indivíduo. Em um artigo intitulado A

coruja como símbolo de morte em “as corujas” de Moreira Campos, Dantas e Freire (2017)

analisam a obra do escritor cearense de contos, e em determinado momento seguem pelas descrições que giram em torno da lenda da Rasga Mortalha. De acordo com eles, os animais têm efetiva participação no conjunto de simbologias utilizadas ao longo das construções sociais humanas e, com tudo o que foi escrito até aqui, isso fica claro. No caso da Rasga Mortalha, essa simbologia é tão pulsante, que a narrativa desenvolvida para lidar com a sua profecia é a de que a mesma deve ser exterminada para que os doentes não morram:

Tem voo brando, impressentido, num cair de asas leves, como num sopro de morte. De repente dá-se conta de sua presença, das asas de pluma, sem ruídos. [...] As corujas rasgam mortalha a noite toda na copa alta das árvores [...] Em qualquer parte, na noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalhas, agourenta, cortam o silencio, sacudindo a vigília dos doentes [...] É preciso exterminar as malditas, que rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na sombra densa das árvores [...] ficam rasgando no alto das velhas árvores ou na torre da capela [...] elas surgem sempre impressentidas, como num sopro de morte: alteiam-se leves [...] (CAMPOS, 1969, p. 49-50 apud DANTAS; FREIRE, 2017, p. 15)

A Alma de Gato é analisada sob a ótica de uma penumbra misteriosa, mas não silenciosa. Cascudo diz ser uma lenda em torno do Tincoã (Piayacayana), ave de demografia bem distribuída pelo Brasil, especialmente na região nordeste, na qual, na obra Geografia dos

Mitos Brasileiros, ele atribui a especificidade da lenda aos estados do Rio Grande do Norte e

Paraíba. Afirma que há uma marcada antipatia sertaneja a despeito desse pássaro, e que a presença dele nas proximidades de uma casa, sítio ou fazenda qualquer, gera aflição aos moradores locais (principalmente às crianças, por serem mais frágeis e vulneráveis), mesmo que os mesmos saibam do seu comportamento pacífico enquanto animal, mas o que ele “traz consigo” é o que o torna temido:

Não foi possível ainda materializá-lo. Atua unicamente pelo prestígio do nome, pela força da invocação, pelo poder da lembrança. Nele tudo é indistinto. Não tem forma, nem cor, nem processo para apanhar, maltratar ou raptar as crianças. Possivelmente nessa indeterminação alucinante reside a melhor explicação do assombro.

[...] no Brasil, todos os seres fabulosos tinham atitude e posição definidas. Alguns mais do que outros, mas todos guardavam linhas gerais de contorno bastantes para a caracterização identificadora no meio da espantosa fauna. O Alma de Gato é complexo, proteiforme, múltiplo, infixo. É rumor, é pressão, é som, é aragem, é movimento, é clarão. É uma entidade invisível e presente. O Alma de Gato passeia pelas inteligências [...] de Paraíba e Rio Grande do Norte com a grandeza disforme, imprecisa e tremenda, de perpétua ameaça. (CASCUDO, 2002, p. 213-214)

Figura 13 - Representação da Alma de Gato

A “indeterminação alucinante” é a expressão que melhor representa os seres que nesse grupo estão reunidos, e a Alma de Gato não escapa à definição. Vale-se atentar ao fato do risco que correm as crianças, de acordo com o que foi citado logo acima. Nelas é que se concentra o medo diante desse ser que se transfigura entre som e luz (clarão), com hábitos e comportamentos que alcançam a metáfora e se assemelham à poesia. Nesse sentido, o Tincoã é outra das aves que anuncia desgraça e agouro, espalhando terror nas almas vivas. Seu canto assemelha-se ao som característico dos gatos e por isso o apelido, mistura de alma e gato, onde só se ouve o que parece ser o ruído do felino de pequeno porte, mas não se vê, pois de fato ele não está ali, é enganação e peripécia da própria ave. É pelos quintais e ruas pouco iluminadas que essa criatura disforme prefere atuar, amedrontando preferencialmente as crianças. O paraibano Ademar Vidal dá detalhes a respeito do comportamento da tal assombração, em uma certa rua Direita, localizada nas imediações de João Pessoa:

Entre os mitos da rua Direita existe um outro que vive nos quintais das casas de residência. Geralmente os quintais dessa rua são pequenos, com um mesmo tipo retangular, cercados de muros e mais ou menos enfeitados de fruteiras. Nessa região habita a “Alma de Gato”. Não tem hora para ela aparecer às crianças [...]. É uma sombra que passa numa esquina de parede; uma sombra que de repente se some atrás de uma porta ou de um móvel; ou que faz uma árvore do jardim balançar levemente; ou ainda um barulho que se ouve perto ou longe. Tudo serve. A Alma de Gato dispõe de uma agilidade rara. Durante o dia apenas se vê o impreciso. Ou melhor: nada se vê. Sente-se. A sensibilidade é que fica alerta e colhe os movimentos como se fora antena de rádio. A luz do dia como que desencanta o mistério e torna a vida mais real. Mas quando entra a noite com todo o seu cortejo de fantasmas, então é que a Alma de Gato começa a ser notada materialmente. Não se espantem: materialmente. [...] Os olhos destilam luminosidades de fogo. A luz desses olhos é vermelha e é de tanta intensidade que parece originária de archotes. O destino desse bicho não é de arranhar nem morder nem ocasionar males semelhantes. O seu destino tem formas mais suaves. Ele só se apresenta para despertar medo aos meninos. [...]

O prestígio da Alma de Gato toma conta de toda uma casa, principalmente no quintal. [...] A Alma de Gato anda por longe, nem se sente o menor sinal. Porém de súbito o vento balança fortemente o arvoredo e se alguém disser alguma palavra sobre assombração ou olhar cheio de curiosidade para um ponto qualquer, basta, é o bastante, todos se lembram logo da Alma de Gato e uma de receio se avoluma e se ergue ameaçadora. Quando chega a noite o fantasma fica senhor absoluto dos quintais. Nem um menino tem coragem de ir sozinho ou andar no quintal sem ser acompanhado de gente grande. Não vai. Mesmo que a noite não seja escura, que a lua ilumine e dissipe as sombras, ainda assim o quintal se acha invadido do mistério da Alma de Gato, não sendo raro se notar um movimento, por mais sutil, que venha confirmar a existência do mito.

A Alma de Gato toma posição e demonstra um prestígio total ao lado de outros mitos. [...] O estranho nisso tudo é que nem um mal físico [...] se pode esperar da Alma de Gato. Não como outros fantasmas que fazem ameaças de morte [...]. Alma de Gato é como se fora alma de outro mundo. Só faz medo e mais

nada. Nem sequer ameaça [...]. (VIDAL, 1938, n.p., apud CASCUDO, 2002, p. 215-216)

Vidal tem uma visão contraria à de Cascudo no que se refere à materialização. Para ele,

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