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Figura 2 - Representação do Caipora

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje, São Paulo, 2019.

A despeito disso tomemos o exemplo do Caipora:

É o curupira, tendo os pés normais. [...] residindo no interior das matas, nos troncos das velhas árvores. De defensor de árvores passou a protetor de caça. Em qualquer direção pelo Brasil, o Caipora é um pequeno indígena, escuro, ágil, nu ou usando tanga, fumando cachimbo, doido pela cachaça e pelo fumo, reinando sobre todos os animais e fazendo pactos com os caçadores. [...] aparece com a cabeça hirta, olho em brasa, cavalgando o porco [...] e agitando um galho de japecanga. Engana os caçadores que não lhe trazem fumo ou cachaça, surra impiedosamente os cachorros. Na Bahia é uma cabocla quase negra ou um negro velho [...] Por onde emigra, o nordestino vai semeando suas figuras e crenças. O caipora, popularizadíssimo no sertão, no agreste e na praia, vai alargando a área geográfica do seu domínio. O Caipora, com o contado do focinho, do porco, da vara de ferrão, do galho de japecanga ou da ordem verbal imperativa, ressuscita os animais mortos sem sua permissão, apavorando os caçadores. (CASCUDO, 2001, p. 98).

Temos aí um ser/entidade personificado em pequena silhueta, por vezes com traços indígenas, por vezes com fenótipo negro, o que varia de acordo com uma série de fatores, desde o espaço até o indivíduo que presencia o fato, sendo útil lembrar dos estudos de Burke (2010, p.59) ao dizer que “a cultura surge de todo um modo de vida, é de se esperar que a cultura camponesa varie segundo diferenças ecológicas, além das sociais; diferenças no ambiente físico [...] estimulam diferentes atitudes”. Diante disso é possível dizer que em muitas narrações os nomes se diversificam, assim como o comportamento e o temperamento atribuído ao ser, mas a proximidade entre as características básicas se sobressai, o que nos revela que as histórias sofrem configurações, são atravessadas por diversos vetores e filtros, influências daqueles que contam ou daqueles que “viveram pra contar”, mas há um pilar resistente, no qual podemos dizer que se trata de um “esqueleto narrativo”, em que a essência da história e a proximidade de pontos em comum com os relatos nos leva a concluir que dois ou mais casos diferentes falam de uma mesma criatura. No início do verbete acima citado, o autor fala que a Caipora é o Curupira, sendo que a diferença do primeiro pro segundo é o sentido dos pés: enquanto a Caipora tem os pés voltados para frente, o Curupira os tem voltados para trás, no mais, são caracterizados por fazerem as mesmas artimanhas, terem as mesmas preferências e se movimentarem de maneiras parecidas.

Ver o Caipora na mata era um sinal, para os caçadores, de que aquele dia não iria render bons frutos, a não ser que em troca levassem consigo algum tipo de oferenda, principalmente as que fossem do feitio da criatura (CASCUDO, 2002). Ela estabelece uma espécie de relação com o homem do campo, em que o escambo de favores é essencial para se manter a cordialidade, concedendo abundância de animais quando da caçada por exemplo. Caso contrário não havia a consumação do intento: os animais pouco apareceriam durante uma noite inteira, a floresta se tornaria deserta no tocante à presença dos bichos. Tudo por conta do poder que essa entidade detinha por sobre o lugar que habita. Para apoiar todo esse escopo descritivo em relação ao Caipora, Cascudo usa do relato de outros autores e contadores de histórias em seus escritos:

[...] Esses entes habitam as florestas ermas donde saem à noite a percorrer as estradas. Infeliz daquele que se encontra cara a cara com o Caipora. Nesse dia tudo lhe sai mal, e outro tanto lhe acontecerá nos dias seguintes, enquanto estiver sob a impressão do terror que lhe causou o fatal. (ROHAN, 1889, n.p apud CASCUDO, 2002, p. 120)

A despeito da relação que o Caipora estabelece com os caçadores, temos:

Tem comércio com caçadores famosos que dão-lhes presentes de fumo, cachaça e baieta em troca da quantidade [...] que deseja matar [...].

Uma vez estabelecido o convênio, o feliz caçador tem caça à vontade e usa discricionariamente desse privilégio. Os que não o possuem, encontram o caapora e sua manda, perdem o seu tempo, palavra e chumbo.

Isso acontecendo, pode o caçador imprudente e inexperto retirar-se. É debalde. A caçada está perdida. (AMBRÓSIO, 1934, p. 71 apud CASCUDO, 2002, p. 121)

Mais detalhado ainda, é o relato de um agricultor, homem do campo, que detém muitas vezes a experiência empírica das coisas que no meio rural ocorrem e se propagam. Diz um certo agricultor Severino Pereira de Lima:

A Caipora é dona da caça [...] O caçador que ela protege deve levar de presente fumo [...[ Detesta pimenta. O caçador auxiliado por ela mata toda versidade de caça que vier em bando. Não atira, porém, em animal isolado nem sobre o ultimo do bando, porque talvez seja a Caipora transformada em bicho, guiando-os para o afilhado. (LIMA, 19??, n.p., apud, CASCUDO, 2002, p. 121)

Para efeito de comparação, no verbete Curupira, Cascudo fala:

Um dos mais espantosos e populares entes fantásticos das matas brasileiras. [...] O Curupira é representado por um anão, cabeleira rubra, pés ao inverso, calcanhares para a frente. A mais antiga menção de seu nome fê-la o venerável José de Anchieta, de São Vicente, 30 de maio de 1560: “É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios e que os brasis chamam Curupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhe de açoites, machucam-nos e matam-nos. São testemunhas disso os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oferenda, rogando fervorosamente aos Curupiras que não lhes faça mal”. [...] Demônio da floresta, explicador dos rumores misteriosos, do desaparecimento de caçadores, do esquecimento de caminhos, de pavores súbitos, inexplicáveis [...] Sempre os pés voltados para trás e de prodigiosa força física, engana caçadores e viajantes, fazendo-os perder o rumo certo, transviando-os dentro da floresta, com assobios e sinais falsos. [...] Do Maranhão para o sul até o Espírito Santo, o seu apelido constante é Caipora. [...] Na cidade ou nas capoeiras vizinhas imediata não existem Curupiras. Habitam mais para longe,

não é motivo de preocupação porque os Curupiras não gostam de lugares muito habitados. Gostam imensamente de fumo e de pinga. [...] roceiros deixam esses presentes nas trilhas que atravessam, de modo a agradá-los ou pelo menos distraí-los. Na mata os gritos longos e estridentes dos Curupiras são muitas vezes ouvidos pelo caboclo. Também imitam a voz humana, num grito de chamada, para atrair vítimas. O inocente que ouve os gritos e não se apercebe que é um Curupira e dele se aproxima perde inteiramente a noção do rumo. (CASCUDO, 2001, p. 172-173).

Manipulador da floresta, essa criatura consegue controlar tudo que pertença ao ambiente natural: animais, pequenas pedras, galhos, folhas, arvores inteiras. Tudo o que é sertão pode ser regido a partir de sua vontade. Assim ele dá seguimento ao cotidiano da floresta, “vigiando árvores, dirigindo manadas de porcos-do-mato, arrancadas de veados e pacas, assobiando estridentemente, [...] o mais vivo dos deuses da floresta tropical [...]” (CASCUDO, 2002, p. 109).

Para demonstrar como se daria um possível encontro entre um indivíduo qualquer e o Curupira, Câmara Cascudo recorre a um relato – ao qual ele denomina “documentário”- extraído da obra Canaã, do escritor e diplomata maranhense Graça Aranha, na qual um indivíduo está atravessando uma região de mata qualquer, quando de repente é assombrado por uma visagem, entrando até em luta corporal com a mesma. Todo o susto e as peripécias feias pela entidade pode ser considerado como um paradigma do que esse ser fantástico é capaz. Diz o narrador:

Lá no fundo da mata havia uma aberta e me parecia que um vulto caminhava pra mim. Não dei importância ao sujeito e disse comigo: - Há de ser o filho do Zé Marinheiro, que se recolhe, porque o pai não o deixa ir à festa. De repente, ouço um assobio fino que vinha de trás. Pensei: - É algum camarada que vai se divertir e me chama. Voltei a cabeça e não vi ninguém. Assuntei de novo, nada. Continuei a andar...outro assobio me passava, cortando os ouvidos, outro, outro, de toda a parte se apitava, do fundo do mato, da boca da estrada, por cima das árvores. - Que bandão de corujas por esta noite... Há de ser agouro. - Tive assim um arrepio de frio, e para me sossegar quis me valer do encontro com o filho do Zé Marinheiro. Mas olhei firme para frente e não vi ninguém. - Onde se meteu o diabo do pequeno? - Os assobios iam me rodeando sempre, eu já estava com a cabeça tonta, o coração me batia a galope. Outra vez vi o pequeno a minha frente; reparei bem, porque ele estava perto e vi que não era o filho do português. - A modo que não conheço este caboclinho. Nós estávamos assim a umas cem braças um do outro, quando o pequeno se sumiu de novo. Os assobios de coruja não largavam. Eu resmunguei: - Que faz esse sujeitinho que desaparece de vez em quando? Isto não é coisa boa. - E ele torna a repontar. Então gritei com voz de susto, bem alto para intimar o cabra: - Olá, amigo, que conversa é essa? Você me fazendo visagens? - Não digo nada; boca para que falaste? A mataria toda passou a assobiar como Demônio, e eu comecei a ficar apavorado com a matinada. O caboclinho estava agora a umas dez varas de mim. O sangue me fervia, a

cabeça me queimava. Não digo nada; o certo é que avancei para o pequeno com raiva de cego. - Ah! Seu Diabo, tu me pagas. - Armei o pau para cima...Mas quando eu me vi, estava seguro pelos pulsos. - Larga! Berrei. O caboclinho com olhos de sangue encarava. - Larga! - e eu sempre seguro. Fiquei como um garrote ferroado. Avancei para o cabra com mais zanga do que quando me atraquei com Antônio Pimenta, uma feita numa vaquejada. Lembrei-me de quanto boi valente deitei por terra, e agora ali zombado por um caturra! Nós lutamos para baixo, para cima; eu dava de cabeça na cara do bicho, metia-lhe os pés na canela, e ele sempre duro, o mal-encarado! Com o cabo de poucos minutos, eu ouvi um berro de estrondo, um berro de onça; ah! Pensei que o malvado me deixava. Mas foi pior, porque outros berros se repetiram, caitetu vinha batendo queixo, gatos bravos miavam; ouvi cascavel tocar seu chocalho... Com poucas eu estava no chão com o caboclo em cima de mim. Toda a bicharia se agitava no mato e caminhava para nós; as arvores mesmo se curvavam abafando, os gaviões descia, os urubus cheiravam minha carniça... Eu senti um medo mole e abandonei as forças. Comecei a tremer de frio, o suor me alagava a roupa, e eu disse: - Vou morrer meu São João. E os olhos se me fecharam como de morto... Levei um tempão desacordado sentindo os bichos me rodeando, comandados pelo endiabrado... Depois de tudo foi caindo o sossego; os meus pulsos estavam desembaraçados; um grande calor me fervia o corpo; abri os olhos devagarinho... tudo parado... tudo tinha desaparecido, a lua era clara como o dia. Eu estava afadigado de tanta luta... a língua estava seca e dura que nem de papagaio. Abri os olhos, e não vi mais nada, nem o caboclo, nem os bichos brabos. Mas tive então um grande medo e tratei de abalar dali. Passei a mão em roda de mim, caçando minha garrafinha de restilo e as toras de fumo. Para espertar não há nada melhor que um gole de cana e uma masca... Mas não encontrei nada; cacei, cacei. Nada. Pus a excogitar que toda a pendenga que o caboclo me fez, foi para me bater a garrafa. Velho tio Pereira me veio à cabeça com suas palavras: - Currupira te assombra. Para tu te veres livre, dá, logo que o avistes, cachaça e fumo. E eu vi que naquela noite tive trabalho com Currupira. Levantei-me de um pulo. Quis correr para a ramada de Maria Benedita, o samba devia estar aceso àquela hora. Olhei para a frente e a estrada ia acabar longe, muito longe. Tive medo de novo encontro. Voltei pra trás; vinha como um preto bêbado, cai aqui, cai acolá; saí no campo esbarrando com o gado; os olhos me ardiam, todo o meu sangue batia para saltar de dentro, a boca estava grossa, eu trazia uma sede de jabuti... mas lá vim assim mesmo navegando até a porta do rancho. Não tive conversa, atirei-me vestido na rede que com meu corpo sacudia como uma canoa no Boqueirão... (ARANHA, s.d, p.102 apud CASCUDO, 2002, p. 110- 111)

Temos duas criaturas, cada qual com um nome diferente, mas com traços muito próximos: baixa estatura, ora características indígenas ora negras, vivem na mata, assombram os caçadores e transeuntes que atravessam a floresta e apreciam tabaco e cachaça. Nesse caso, a diferença mais discrepante existente entre uma e outra é a nomenclatura que recebem de acordo com cada região, onde “do Maranhão para o sul até o Espírito Santo, o seu apelido constante é Caipora” (CASCUDO, 2001).

Figura 3 - Representação do Curupira

Fonte: Imagem cedida pelo ilustrador Cezar Berje. São Paulo, 2019.

As ricas e detalhadas informações que são transmitidas na nota sobre o Curupira reforçam essa noção de que as discretas variações das características em torno de um ente fantástico são detalhes que, devem ser levados em conta, mas que não são necessariamente determinantes para defini-lo, afinal caberá ao narrador que desenvolve o seu conto, identificar aquilo que ele viu ou ouviu falar. Essa característica é marcante nos relatos que giram em torno de mais ou menos uma mesma entidade. Conforme disseram Pereira e Gomes (2002, p. 98) “as diversidades das versões de um mesmo relato são, por si mesmas, uma condição que aponta para a perspectiva de que a fronteira dos valores e das formas se constituem com plasticidade”. Enfim, podemos dizer que não existem muros concretados que cercam as comunidades e impedem que as narrativas se alterem ou se configurem de formas variadas; elas por vezes – como nesse caso – podem falar de um mesmo assunto em lugares e regiões diferentes (região norte e nordeste, por exemplo), mas apresentam uma roupagem diferente de acordo com as particularidades de cada local, com seu universo de bens simbólicos próprios.

Cascudo envereda-se até os idos coloniais para mostrar que, já naqueles tempos, se falavam no Curupira/Caipora e no pavor que se tinha em relação a possíveis encontros com o que foram denominados “demônios” da floresta. Nessa viagem do tempo que ele faz, trazendo à luz um relato do padre espanhol José de Anchieta, pode-se perceber a relação com que os nativos tinham com a tal entidade: era preciso agradá-la, entregar-lhe certos caprichos, que nesse caso eram o fumo e a bebida, para que assim, pudessem atravessar tranquilos as matas sem serem interceptados. De fato, os seres fantásticos são reais diante daqueles que os tomam como verdade para si. Eles perambulam, pastoram, têm gostos e preferencias, se comunicam – de forma positiva e/ou negativa, e segundo a assertiva de Pereira e Gomes (2002) são considerados “corpos históricos”, pois se materializam diante dos habitantes das comunidades: deixam rastro, fazem barulhos, dão risadas, assoviam, trançam a crina dos cavalos, imitam a voz humana.

A Florzinha, ou Flor-do-Mato, também é um outro ser que apresenta características bem parecidas com os dois últimos citados logo acima. A peculiaridade que a diferencia dos demais, segundo as definições do Dicionário, refere-se ao seu possível sexo biológico:

Um dos nomes da Caipora-fêmea [...] tem os mesmos atributos de guiar a caça e gostar de fumo. Favorece ao pobre caçador quando, por sua vez, se vê beneficiada de alguma coisa. Não o sendo, fica irada e se vinga escondendo a caça, afugentando-a para longe, gostando de brincar, debicando ou fazendo com que o homem se canse e nada consiga. Depois assobia, vaiando. Chega até a dar boas e gostosas gargalhadas de deboche... Para fazê-la mansa, para fazer flor (boa e ajudando a gente), é necessário levar no bornal uma lembrança, que se bota num pé de pau e ela vai buscar. (CASCUDO, 2001, p. 234).

A Mãe-do-Mato, nome que já deixa clara a sua posição de matriarca, é protetora incondicional da floresta. Usa de avisos, mesmo que discretos, para se comunicar com aqueles que perturbam a ordem cotidiana da mata nativa. Os viajantes, ou caçadores que montam acampamento quando estão em seus serviços, quando sabem da existência de aparições desse ser fantástico na localidade, ficam alertas, escondem instrumentos de trabalho e outros objetos, uma forma de prevenção e medo, para que não sejam surpreendidos, nem que irritem aquela que protege o lugar das ambições do homem:

Nos acampamentos dentro das matas, os trabalhadores ao se encaminharem para o serviço, desatam as redes ou desarmam as camas, com medo de que a

Mãe-do-mato, protetora dos animais, [...] venha colocar em cada leito algum graveto de madeira, como sinal de que possa fazer o efeito de morfina, prostrando em sono profundo o incauto que ali se deitar, predispondo-o a ser devorado por [...] animais. (CASCUDO, 2002, p. 349)

Conhecido pelos quatro cantos do Brasil e quiçá do mundo, a figura do Lobisomem, obviamente, não deixa de fazer parte do fabulário existente no Rio Grande do Norte. A lenda que gira em torno deste ser fantástico influencia desde o choro e apavoro de crianças, até adultos e moradores de zonas rurais, quando se trancam em suas residências após ouvirem sons estranhos na brenha e no breu da noite, ou quando sabem que o dia em questão é data certa para que aquele que carrega essa maldição inicie mais um ciclo de sua penosa sina. Há diversas teorias sobre como um indivíduo pode ser contaminado por essa maldição. O certo é que ele existe, invade sítios e fazendas, coloca medo em vilas e cidadelas, assombrando e açoitando aquilo ou aquele que cruzar seu caminho:

[...] Nasce-se lobisomem: em alguns lugares são os filhos do incesto, mas, em geral, a predestinação não vem senão do acaso e liga-se com o número que a astrologia acádia ou caldaica tornou fatídico - o número 7. O lobisomem é o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos 13 anos, numa terça ou quinta-feira, sai de noite e, topando com um lugar onde um jumento se espojou, começa o destino. Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras, da meia-noite às duas horas, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando sete adros (cemitérios) de igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, até regressar ao mesmo espojadouro, onde readquire forma humana. Sai também ao escurecer, atravessando na carreira as aldeias onde os lavradores recolhidos não adormeceram ainda. Apaga todas as luzes, passa como uma flecha, e as matilhas de cães, ladrando, perseguem-no até longe das casas...Quem ferir o lobisomem quebra-lhe o destino; mas que não se suje no sangue, de outro modo herdará a triste sorte. Esses elementos criaram o lobisomem [...] no Brasil. Há modificações regionais. [...] Há centenas de depoimentos afirmando encontros e lutas corporais com o lobisomem, o mais popular dos animais fabulosos, com a maior área geográfica de influência. Seu lugar predileto são as encruzilhadas. Come galinha, assusta cachorros. [...] (CASCUDO, 2001, p. 335)

O autor, na citação anterior, nos oferece diversas características referentes a essa lenda e, ainda mais, explica quais os elementos necessários que envolvem o fado na vida de um ser que se transforma em fera a contragosto. Tão abrangente em relação à sua área de influência, quanto antiga, as narrativas em torno desse ser fantástico remontam à tempos distantes, como

atesta Mary Del Priore, em Esquecidos por Deus: Monstros no mundo europeu e ibero-

americano, em que traz até escritos médicos, lusitanos, datados do século XVIII, nos quais

além de atestarem a existência de tais criaturas, ainda explicavam o “cotidiano” de sua infelicidade:

Estão sujeitos os homens a um delírio melancólico, lupino e noturno, a que vulgarmente chama os doutores de licantropia; e se define: uma ação

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