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4 A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO COMO UM DIREITO

4.1 O direito fundamental de greve no serviço público

4.1.1 Conceitos fundamentais: serviço público, servidor público e atividades essenciais

4.1.1.1 Serviço público

A noção de serviço público é uma criação tipicamente do direito de origem romano- germânica. No direito costumeiro, típico dos países anglo-saxões, a noção de serviço público dá lugar a outra perspectiva acerca da atuação do Estado perante a sociedade. Em lugar de um serviço prestado pelo Estado e que pode ser delegado a particulares, no caso do direito costumeiro o serviço público surge como forma de utilidades públicas (public utilities), onde os serviços de natureza pública são exercidos por particulares, cabendo ao Estado apenas a função regulatória dos excessos praticados pelas empresas prestadoras do serviço171.

No caso do direito oriundo da vertente romano-germânica, com influência marcadamente do direito administrativo francês, o serviço público tem por fundamento

essencial a prestação dos serviços básicos à sociedade por parte do Estado, podendo delegá- los, numa acepção mais moderna do termo, aos particulares, que são vinculados aos objetivos da Administração Pública, a qual, através de leis e outros instrumentos normativos, delimita a esfera de atuação dos particulares que prestam o serviço desta natureza172.

Sob tal aspecto, o termo “serviço público” torna-se, pois, de caráter polissêmico, comportando três formas essenciais de significado, quais sejam: a) entidade social, que abrange diferentes atividades e estruturas subordinadas ao Poder Público; b) noção jurídica, que possibilita o seu enquadramento segundo postulados e regras de direito, nas suas variadas vertentes, e c) operador ideológico, princípio norteador da legitimidade e do alcance das finalidades para as quais os serviços públicos foram criados173.

Apesar de surgida na França pós-Revolução de 1789 e além de ser lá concebida até sob um caráter mítico174, a noção de serviço público, ao passar dos séculos, foi ganhando em conteúdo e delimitação. A ideia universalizante, preponderante no momento de sua concepção, foi suportando abrandamentos, oriundos especialmente das teorias de cunho economicista derivadas do liberalismo, que provocou a diminuição da participação estatal nas atividades econômicas e sociais, relegando ao Estado as atividades que necessitavam de um sistema de monopólio para que pudessem subsistir, como no caso de algumas indústrias, que, àquele tempo, somente poderiam ser desenvolvidas por meio da atuação estatal, bem como a serviços relacionados ao sistema de correios, por exemplo175.

Malgrado as diversas evoluções do instituto, desde a sua concepção, à época da Revolução Francesa, o serviço público comportou dois momentos de crise em seu conteúdo e na sua análise como instrumento de execução de políticas públicas almejadas pela Administração. Nesse sentido, a primeira crise do serviço público foi caracterizada como uma crise de expansão, onde o Estado assumiu para si responsabilidades além das meramente administrativas, para também ingressar em setores que dantes não possuíam influência estatal, como no âmbito econômico, por exemplo, por meio das políticas de bem-estar social (Welfare

State). Nesse período, o Estado expandiu excessivamente sua influência na sociedade, de

172 Idem, ibidem, p. 76, 77.

173 ARAGÃO, Alexandre S. Direito dos serviços públicos. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 76, nota 1. 174

Sobre o caráter mítico atribuível ao serviço público, vide: ARAGÃO, Alexandre S, ob. cit., p. 77, nota 2 e sobre sua crítica, vide p. 249, nota 26.

modo que toda atividade econômica desenvolvida tornava-se serviço público, estendendo o conceito publicista radicalmente a ponto de torná-lo completamente eivado de sentido176.

Já na segunda crise conceitual do serviço público foi caracterizada uma situação de excessiva retração da concepção de serviço público, pela diminuição da atuação do Estado em setores econômicos e sociais, onde a Administração passou a delegar à iniciativa privada a possibilidade de execução desses serviços, apenas cabendo ao Executivo as funções de fiscalização e controle da concorrência entre as empresas prestadoras. Nesse sentido, a segunda crise provocou uma verdadeira aproximação entre os anteriormente antagônicos conceitos anglo-saxão e romano-germânico, citados supra177.

Nesse momento histórico, marcado pela ascensão do chamado neoliberalismo178, o Estado passou a delegar suas funções precípuas a empresas privadas, que teriam por objetivo a prestação satisfatória dos serviços à população, cabendo à Administração apenas a função de regulação da atividade desenvolvida pela empresa privada. Nesse sentido, o conceito de serviço público se distanciou da sua visão clássica, a qual impusera a necessidade de um crescente aparelhamento estatal para atender às necessidades mínimas da população para um modelo de Estado minimalista, onde caberia apenas a intervenção estatal nos momentos onde houvesse qualquer ingerência praticada por parte das empresas prestadoras que viesse a extinguir ou a prejudicar a execução do serviço público179.

O momento atual do serviço público, na América Latina, perpassa por duas tendências: uma, a de manutenção dos serviços já existentes sob o poder do Estado, seguido por uma busca de melhor prestação de outros serviços que já vinham sendo executados por empresas privadas desde o início dos inúmeros processos de privatizações, o que se pode chamar, ao menos genericamente de um período de acomodação ou mesmo de um período de superação do neoliberalismo. Para essa hipótese, o caso do atual momento político vivenciado pelo Brasil pode ser o exemplo mais marcante, onde há uma tendência de que o serviço público se aproxime da noção oriunda do Direito estadunidense, que coloca o Estado como ente controlador da atividade econômica privada no país. Mas, este controle atual latino- americano ainda resguarda a noção básica do serviço público do direito europeu continental,

176 Ob. cit., p. 240-243. 177

ARAGÃO, Alexandre S. Direito dos serviços públicos. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 243-246.

178 Idem, ibidem, p. 243. 179 Idem, ibidem, p. 246, ss.

que atribui ao Estado a função precípua de execução, direta ou indireta, da prestação dos serviços públicos, como forma de efetivação das políticas públicas, com o fim de atender a toda a população de forma igual e justa180.

De outra parte, especialmente em países onde a democracia tem se fragilizado gradualmente, há um processo de reestatização de empresas, com o intuito de melhorar a prestação dos seus serviços, utilizando-se o argumento de que as empresas privadas não vêm executando suas prestações segundo uma função social que possa beneficiar a população. Nesse sentido, países como Venezuela, Bolívia e Equador têm adquirido para si as empresas, antes privatizadas, sob o argumento de que por meio da Administração Pública seja possível fornecer à população serviços de melhor qualidade a preços mais acessíveis, por serem, então, empresas controladas e supervisionadas pelo governo.

Sob tal conjuntura, a visão de serviço público dos séculos XVIII e XIX passa a ser supervalorizada, como forma de atribuição de responsabilidades concernentes unicamente ao Estado, que se intitula como ente exclusivo a oferecer e prestar os serviços públicos, porém sob uma perspectiva limitadora oriunda de uma situação política marcadamente restritiva dos direitos fundamentais característicos de um Estado Democrático. Apesar das aparentes boas intenções, o que há, na verdade, são justificativas voltadas a disfarçar o real sentido da ausência de democracia inerente a essas sociedades, configurando-se, em semelhança a movimentos como a Era Vargas, no Brasil, e o Peronismo, na Argentina, em verdadeiras situações de ditaduras populistas181.

Destarte, no direito comunitário europeu, a tendência vislumbrada desde o Tratado de Maastritch (1994) é a de uma maior aproximação entre as teorias clássica e anglo-saxã de serviço público, onde os postulados liberais influenciaram fortemente o arrefecimento da participação estatal na prestação de tais serviços, bem como na imposição da necessidade de controle e regulação da atividade privada, quando esta servir ao atendimento da sociedade em geral, como única forma de exercício da atividade estatal restante à Administração de cada país, ou da União Europeia como um todo182.

180

Idem, ibidem, p. 246.

181 ARAGÃO, Alexandre S. Direito dos serviços públicos. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 251. 182 Idem, ibidem, 116, 117.

A noção atual de serviço público, destarte, se refere à delimitação mais restrita de quais serviços podem ser matizados com tal característica. Segundo a concepção predominante, o serviço público caracteriza-se por um conjunto de atividades que devem ser praticadas exclusivamente pelo Estado ou delegadas a empresas particulares, de natureza econômica e social, que são praticadas sob a forma de prestações à coletividade, subordinadas a políticas públicas determinadas por meio de imposição constitucional ou legal183.

Tal teoria, seguindo a tendência analisada linhas acima, tende a conciliar o conceito de

public utilities do direito anglo-saxão com as diretrizes históricas do sistema europeu

continental que influenciaram marcadamente o direito ocidental, especialmente o latino- americano. Com a crescente delegação de serviços públicos do Estado aos particulares, esse conceito é o que se aproxima, em maior medida, da realidade vivenciada pela efetivação das políticas públicas à população em geral.

Definidos os contornos básicos, ao menos, do que pode ser configurado como serviço público, cabe adiante trazer à baila o que pode ser determinado como a noção de quem é o servidor público, o trabalhador, analisado sob uma perspectiva ampla, como ente responsável de forma determinante pela execução do serviço público.