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Embora remeta a uma fase pré-drag, o termo transformista também designa uma especialidade de performance para os personagens que atuam no palco caracterizada de forma efetiva pela manutenção do modelo anterior ao ideal estético da drag queen, representada pelo uso exagerado de cores, formas e efeitos no processo de montagem. Ao contrário desta última, o que constitui o padrão do estilo transformista é a semelhança com o feminino mais

naturalizado, o que se aproxima da fabricação do corpo travesti. Nesse contexto, os signos que são modificados concentram-se, mormente, no disfarce de formas e na adoção de uma gestualidade que geralmente se associa ao universo do glamour e da sofisticação. Isso se justifica também na escolha das cantoras a serem performadas. As cantoras consagradas como divas – notadamente da música internacional – são ícones comumente interpretadas, sendo que a dublagem das canções mais lentas requer maior habilidade de dramatização da letra, o que as aproxima mais da imagem hegemônica da mulher.

De acordo com o conceito de female impersonator, definido em regra como a prática de travestilidade por indivíduos “who generally do celebrity impersonation and keep the illusion of being women, in contrast to drag queens who regularly break it in order to accentuate the inherently performative nature of gender and sexual meanings105” (TAYLOR;

RUPP, 2004, p. 115) é possível visualizar a maneira como tal categoria transformista opera na cena drag de Natal. Tendo em vista a associação da performance à figura da travesti, a intenção de uma montagem que permita ao artista passar-se por mulher, tal como verificado no estudo de Benedetti (2005) acentua o grau de aproximação desta arte com o imaginário da travesti. Inscrito no discurso acima, a carga histórica contorna a lógica de atribuição de nomenclaturas a estes sujeitos, demonstrando grande responsabilidade no processo de negociação de identidades entre as sociabilidades e o circuito de espetáculos drag. Cada uma indica uma experiência diferente de transformação, um lugar na cena e uma relação de proximidade/distância com os elementos da subcultura LGBT.

Sketches e musicais

No roteiro dos espetáculos drag, principalmente destinados ao mercado GLS, a preparação de apresentações especiais, que consistem na atuação de mais de uma drag em palco, pertencentes à mesma linha de montagem ou de estilos diferentes. O número geralmente é estruturado em torno de um tema ou situação, cujo roteiro leva os integrantes a produzir figurino e dublagem específica no contexto do assunto. Organizados em torno de danças, dublagens e sketches, esses shows conferem maior grau de profissionalismo através da teatralidade, pois demandam um tempo anterior ao palco para se dedicar ao ensaio de coreografias e textos.

105“Que geralmente fazem imitação de celebridades e mantém a ilusão de serem mulheres, em contraste com as

drag queens, que regularmente quebra esses códigos, a fim de acentuar a natureza inerentemente performativa do gênero e dos significados sexuais.” (tradução livre)

Ao contrário das boates, o show drag na sauna Eunápius não aconteceu num palco. Foi no mesmo piso em que se localizavam os clientes, apenas a certa distância das mesas onde eles aproveitavam a festa. Ao escurecer das luzes, a exibição de videoclipes no telão é cessada e uma canção da música popular brasileira é executada, no instante em que a figura de Jarita Night and Day aparece no salão principal. Ela veste uma saia curta, um casaco que cobre quase todo o resto da roupa, com vários colares e bijuterias e segura uma folha de papel. Dubla a canção enquanto caminha lentamente pelo espaço e sorri para o público, sem muita expressão gestual, apenas movimentando os lábios, cuja boca não possui dentes. Ao término da música Jarita sorri, cumprimenta as pessoas presentes ali e começa a contar fatos engraçados acontecidos durante a semana. Após informar sobre os próximos acontecimentos da casa, ela chama Divina Shakira, que entra em cena de costas para a plateia, ao som de uma música instrumental árabe, que logo alterna para uma melodia dançante. Veste um casaco preto, e ao se virar para frente começa a desfilar pelo ambiente. Tira a roupa e revela outro figurino, composto por um top e calcinha cinza confeccionados com franjas de malha e costurados a um collant transparente com detalhes de pedras. Shakira dança, interpreta, mas sua dublagem, propositalmente, não é sincrônica à letra. Ao virar de costas novamente, sua roupa revela nudez: sob as pedras da peça transparente, a bunda do intérprete aparece como parte daquele figurino, num lugar onde todos os frequentadores vestiam apenas toalha de banho na cintura. Na sua coreografia, os braços gesticulam para todas as direções, enquanto as mãos giram em rotação, os cabelos longos também são jogados para os lados, como em propagandas de shampoo, e os movimentos dos lábios também são executados de maneira exagerada, onde se observa que as mandíbulas são articuladas de um jeito mais amplo que o convencional a cada sílaba. É a hiperbolização do gestual feminino em ação, no mesmo lugar do corpo masculino, em músculos, tatuagens e no formato das nádegas. Shakira termina o número fazendo pose para o público, lançando um “carão” que é quebrado com os aplausos. Depois ela conversa rapidamente para o público, quando Jarita volta à cena e as duas começam a interagir com os clientes, em diálogos e contação de histórias, relembrando casos marcados pelo humor entre as sociabilidades LGBT na cidade. Depois as duas se despedem e anunciam o show do go-go boy. Nessa noite, a apresentação foi marcada pela comédia caricata, de um lado, e do outro a performance drag queen de Shakira, com a intenção de justapor gêneros e brincar com o binômio artificial/natural através de sua presença.

[Nota etnográfica - Diário de campo: 11 de outubro de 2011]

Jarita faz humor, tem uma aparência que brinca com os signos da beleza e da feiura, sua presença é marcada pelo deboche através da imposição de sua figura, expressa de maior forma no timbre da voz e na aparência, cujos elementos visuais sublinham sua presença no espaço. Contracena com Shakira, que possui traços de sensualidade feminina exacerbada, mas que ao mesmo tempo preserva um físico masculino também sedutor: músculos definidos, corpo tatuado, marca de bronzeado. São dois estilos de drag atuando em um único número. De um lado, a caricata, representação já conhecida em Natal por causa das kengas, que formam o evento do qual a própria Jarita participa. Ao seu lado, o oposto, a imagem

sofisticada de Shakira, que explora a nudez para atestar a ambiguidade daquele corpo. Contrastantes no sentido da aparência, semelhantes na condição de transformistas, uma empresta à outra imagem e lembranças que formam o pano de fundo da situação representada, resultando em uma comédia que quebra a atmosfera inicial do lugar.