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Silêncio negativo e música programada

Parte 2: Comunidades Acústicas

2.2. Entre Dakar e Timbuctu

2.2.1. Silêncio negativo e música programada

Através desta experiência no deserto do Sahara reforcei, ao nível pessoal, um argumento já transmitido por inúmeros pesquisadores: o silêncio é não só menos apreciado como também mal interpretado pelos indivíduos nas sociedades modernas. Tal como a cidade para muitas pessoas pode representar a excitação e o estímulo, o campo ou as áreas desertificadas retratam com frequência o “tédio, o conformismo, a preguiça, a falta de escolha e o mais importante, o medo de estar fora de contacto” (Newman e Lonsdalee, 1995: 10). Esta visão, criada em torno das paisagens naturais, revela um medo psicológico para aqueles cujo objetivo (consciente ou não) é o de evitar os seus sentimentos ou pensamentos indesejáveis. Tal como Schaffer refere, “o homem tanto teme a ausência do som quanto a ausência de vida” (Schaffer, 1977: 250). Do ponto de vista sociocultural, esta perspetiva negativista sobre o silêncio tornou-se cada vez mais evidente. Apesar de algumas culturas apreciarem o silêncio no seu contexto social, a cultura ocidental perceciona normalmente o puro “estado de silêncio” como constrangedor. Susan Frykberg (1999) afirma que muitos norte- americanos tendem, de uma forma ansiosa, preencher qualquer espaço vazio de uma conversa com palavras, apreendendo qualquer momento silencioso como estranho:

“Uma comunicação com sucesso envolve conversação, e o facto de que também o silêncio pode ser usado num diálogo como indicador de hostilidade e desprezo ajuda a essa perspetiva negativa. Embora o silêncio possa ser utilizado para expressar a compreensão subentendida entre dois espíritos, pode também representar um silêncio pesado entre um casal de namorados que discutiram” 50.

Em circunstâncias extremas, pessoas com estatuto de poder, frequentemente torturam os seus inferiores sob regras de silêncio. Por exemplo, as imagens dos campos de concentração durante o Holocausto ilustram como indivíduos oprimidos se mantinham em silêncio para se manterem vivos, apenas escutando o som da sua mão de obra nos trabalhos forçados. Nos sistemas prisionais, o regime de prisão “solitária” é dos castigos mais severos dados aos presos, ficando isolados e desta forma silenciados para com o exterior, devido à inexistência de qualquer tipo de contacto humano.

De certa forma, esta perspetiva negativista sobre o silêncio, parece ter sido impulsionada através da contínua exposição do indivíduo ao ruído urbano. As cidades, ao serem um reservatório de sons que nunca cessam, levaram os seus habitantes a adequarem-se a essa realidade acústica tanto ao nível fisiológico como social. Mas se um ambiente de ruído pode tornar-se o aparente “amigo de fora” para quem tem receio de ambientes sossegados, o barulho dos sentimentos ou pensamentos não desejados podem transformar-se no inimigo interno. Isto acontece devido ao facto de o som ter a capacidade de ser usado como um “áudio-analgésico”, ou seja, uma parede de som que “bloqueia o incessante diálogo interno com o meio envolvente, provocando a ilusão de controlo sobre a emoção” (Schaffer, 1977: 66). Uma das noções básicas da psicoterapia define que os “pensamentos e sentimentos não expressados poderão resultar em ações inadequadas, que vão desde uma explosão de raiva durante um evento insignificante, até aos incidentes horríficos que acontecem cada vez mais nas sociedades modernas”51. O custo físico e psicológico desse tipo de

conflito emocional pode originar doenças relacionadas com o stress ou ansiedade, refletindo assim a adaptação do ser humano às contínuas mudanças do estilo de vida no meio urbano.

Por outro lado, o avanço tecnológico dos aparelhos de áudio personalizados, providenciou não só um abrigo performativo para os sentidos do indivíduo, ao filtrar o fluxo de som indiferenciado ao seu redor, como também a capacidade de controlo do que “entra”. Através destes aparelhos, os seus utilizadores definem um ritmo personalizado a partir da escolha de uma música, numa presença alienada entre o “aqui” e o “outro lugar” (Labelle 2010). A proliferação de aparelhos portáteis de música, como o walkman ou mais recentemente o IPOD, deram a oportunidade de criarmos a nossa própria paisagem sonora como forma de bloquear as intromissões existentes no nosso espaço físico e psíquico. Os estudos empíricos de Michael Bull, acerca do uso de aparelhos pessoais de música, sugerem que o uso do IPOD age como uma estratégia de “gestão do tempo e da experiência, onde os seus utilizadores constroem espaços de narrativa e de ordem, de forma a ajudar na negociação individual do sujeito com a fragmentação inerente da experiência urbana” (Bull, 2000: 130 in Labelle, 2010: 97). George Prochnik argumenta que o possível sucesso

51 GEEST, Heather, 1996, “The Negative Person of Silence”, disponivel em: http://wfae.proscenia.net/library/articles/de_geest_persona.pdf

do IPOD provém da liberdade condicionada dos movimentos do indivíduo nas cidades modernas. Com o aparecimento destes aparelhos, o “ser urbano” foi injetado com um novo transmissor de fluxos nas suas práticas diárias, ao conseguir filtrar as expressões indesejadas à sua volta, como também da possibilidade de “tapar os buracos silenciosos” existentes no seu dia a dia (Prochnik, 2010: 164). Mais do que uma questão defensiva perante a agressividade sonora nos centros urbanos, a tecnologia estimula o indivíduo a aparentemente dialogar com o seu “eu interior” e a contactar menos com o exterior de si mesmo. Com o fácil acesso a estes novos instrumentos de transmissão e reprodução, a negociação territorial moderna ganhou novos limites, ao permitir que o ser humano projete a sua mensagem com o alcance e a forma que desejar. Desde a portabilidade da música nas ruas até ao culto automobilístico do tuning, a cultura citadina impulsionou novas dinâmicas de discurso que começaram a dominar tanto a arena social como também o espaço singular de cada indivíduo.

Hoje em dia, o som também é usado por “grupos marginais como uma estratégia de resistência”52. Na cultura automobilística, o boom box foi um fenómeno

impulsionado por jovens pertencentes a grupos minoritários norte-americanos como forma de autoexpressão, na segunda metade do século XX. Através da alteração das componentes dos seus veículos, de forma a provocar mais ruído mecânico, ou com o aperfeiçoamento dos sistemas de som dos automóveis para dar mais potência sonora, esta postura “tornou-se uma arma de defesa contra o sistema: quanto maior era o som produzido, maior era o território dominado, conseguindo ameaçar os limites de propriedade física e social” (Prochnik, 2010: 131).

Neste contexto, a música toma um papel central na relação entre sujeitos. Tal como Tia Denora argumenta, “a música oferece recursos que condicionam a nossa imaginação, lucidez, consciência, ação motora, tudo o que consegue afetar a nossa formação interna e social” (Denora, 2000: 27). Ao longo dos séculos, a música tornou-se uma fonte de produção de vida social, ao criar cenários de desejo, estilos de ação, e de potenciar novas formas de comunidade. Denora ainda refere que a música “consegue oferecer materiais específicos que os atores usam na organização da vida social, tendo assim a capacidade de criar espaços imaginários” (idem: 158). Nesta perspetiva, a música tem a capacidade de promover uma realidade virtual, onde o

indivíduo tem a oportunidade de expressar-se de uma forma simbólica, ao dar-lhe o poder de controlar por momentos o seu espaço físico e psíquico.

De acordo com Jacques Attali (1985), a música está inscrita entre o ruído e o silêncio, no espaço onde a codificação social se revela: cada código musical está enraizado nas ideologias e tecnologias do seu tempo, e ao mesmo tempo ajuda a produzi-las. Na sua sucessiva relação com a política e a economia de uma dada sociedade, a música pode ser usada e produzida como um ritual “para fazer as pessoas esquecerem a violência ou fazer com que as pessoas acreditem na harmonia do mundo, que existe ordem e legitimidade no poder comercial, (...) censurando outros tipos de ruído humano“ (Attali, 1985: 19). Ao nível social, estamos sob a influência de códigos que analisam, marcam, restringem, reprimem e canalizam sons primitivos da linguagem, do corpo, das ferramentas, dos objetos e das relações entre sujeitos. Nesta perspetiva, toda a música ou qualquer organização de sons torna-se numa ferramenta para a criação e consolidação de uma comunidade, ou seja, de uma totalidade (idem: 6). Nas palavras de Attali, é o que liga o poder central aos seus sujeitos e consequentemente uma fonte de poder:

“Por isso, a música é profecia, porque o seu estilo e organização económica estão à frente do resto da sociedade ao explorar, mais rápido do que a realidade material, todas as possibilidades num dado código. Torna audível o novo mundo que gradualmente se torna visível, que se irá impor e regular a ordem das coisas”. (idem: 24)

Se a música é um media que influencia a construção de realidades sociais, então o controlo da configuração do indivíduo, enquanto agente social, é cada vez mais politizado (Denora, 2000: 162). Entidades privadas e marketeers estão cada vez mais sofisticados nas suas intenções através da música, o que se torna preocupante devido ao efeito que o som tem na relação do sujeito com a sua própria realidade.

As técnicas de distribuição musical estão, na era moderna, a contribuir para o aparecimento de novos sistemas de escuta e vigilância social (Denora, 2000). A corporação americana Muzak, que vende música estandardizada, apresentava-se como o “sistema de segurança dos anos setenta, ao permitir o uso da distribuição musical para a circulação de ordens e valores” (Attali,1985: 8). Este “perfume acústico” (Schaffer,1977) foi difundido tanto em lojas comerciais como também nos espaços públicos, com o objetivo de provocar a mobilidade percetiva e motora dos seus

utilizadores, de acordo com os padrões que os criadores deste tipo de música definiam. Sendo assim, o que é chamado de música hoje em dia é na maioria das vezes “um disfarce para o monólogo do poder” (Attali, 1985: 9).

A nossa paisagem sonora tem sido constantemente influenciada pelo uso privado do som, através da exploração das suas dimensões manipulativas. Estes discursos calculados providenciam oportunidades de domínio de um determinado espaço, ao tornar o ambiente sonoro numa mercadoria ou num património privatizado. Hoje em dia existe música programada em grande parte dos espaços públicos e privados, facto que influencia, de alguma forma, as dinâmicas sociais, físicas ou psicológicas53. A eliminação do silêncio, ou a propagação calculada de ruído é feita progressivamente e sem o consentimento da opinião pública. Em última análise, quem tem o direito de manipular o nosso ambiente sonoro?

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