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Sharawadji. Casos de ruído de vizinhança na cidade de Lisboa

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Academic year: 2021

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Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Culturas Visuais realizado sob a orientação científica

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AGRADECIMENTOS

Queria agradecer, em primeiro lugar, à Prof.ª Dr.ª Filomena Silvano, pelos conselhos e partilha de ideias ao longo deste projeto, que se demonstraram essenciais para o arranque desta pesquisa e originalidade na sua concretização.

À Raquel Castro pela inspiração que recebi a partir da visualização do seu documentário “Soundwalkers” e pelo apoio na fase mais importante deste projeto.

Aos pesquisadores e músicos Mick Mengucci, Yuri Vellasco, Luiz Gabriel Lopes, Felipe José e Pedro Durães pelo seu entusiasmo profissional e partilha de conhecimentos sobre esta área de pesquisa sonora.

Aos meus colegas de mestrado: Amaya Sumpsi pelos conselhos essenciais no início desta investigação, Catarina Faria, Tatiana Macedo e Arlindo Horta pela partilha dos seus projetos de pesquisa.

À Prof.ª Dr.ª Chiara Pusseti pelo apoio e disponibilidade em partilhar o seu trabalho pessoal que em muito influenciou este projeto.

Ao Prof. Dr. Carlos Falci pelo apoio e recetividade nos projetos que desenhámos em conjunto no Brasil e que vieram a contribuir diretamente para esta investigação.

Aos meus amigos e companheiros de viagem:

André Salgado, Pap Lamine, Ricardo Falcão e Magueye pelo apoio e acolhimento que me deram no Senegal. No Norte do Mali, um agradecimento especial a Homeini, Hamo e sua família, Titi, Azima, Sandy e Abba que me “adotaram” em Timbuctu, e a todos os habitantes da aldeia de Tintelut pela sua generosidade (penso neles todos os dias, com uma certa tristeza, por estarem neste momento num campo de refugiados em Mbera, na Mauritânia). No Brasil, um agradecimento a Mateus Bahiense e Luiza Vianna pela hospitalidade em sua casa no vilarejo de Milho Verde em Minas Gerais.

À Joana Estevão, pela partilha dos seus conhecimentos e do seu entusiasmo contagiante.

À Rita Gaspar, pelas nossas conversas que deram uma maior clareza a este projeto.

Aos meus amigos João Vicente, Indira Andrade, Hugo Ribeiro, pela colaboração e paciência que tiveram durante a fase de recolha de campo.

Um especial agradecimento às minhas amigas e colaboradoras Joana Gomes, Maria Louzeiro e Linda Campos pela sua ajuda na fase final de concretização do relatório.

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À Dr.ª. Thais Magalhães e Dr.ª Isabel Crespo por terem ajudado na recuperação de uma lesão contraída durante esta pesquisa.

Às entidades e seus encarregados que se disponibilizaram para este projeto: Um agradecimento ao Eng. António Cruz que gentilmente me recebeu na Divisão de Ambiente Urbano da Câmara Municipal de Lisboa, ao Dr. João Chumbinho, Presidente dos Julgados de Paz, ao Sr. Romão Lavadinho da Associação de Inquilinos Lisbonense, ao Sr. Luís Paisana da Associação de moradores do Bairro Alto e ao Tenente Coronel Joaquim Delgado, Chefe da Divisão da Natureza e Ambiente da Guarda Nacional Republicana.

Aos entrevistados que colaboraram neste projeto:

Um especial agradecimento ao Hugo Ribeiro, João Vicente, Dona Ivone, Chefe Costa, Sérgio e Mira do Tejo Bar, Gustavo e Zé Patrício, Nober, Sara, Jerome, Vasco Costa, José Silva Carvalho, Daniel Ribão e Tiago.

Aos meus amigos e colegas Gustavo Patrício e Tiago Salsinha do projeto Imidiwan e ao Juninho Ibituruna e João Pires do projeto XAFU.

Aos autores Brandon Labelle, François Augoyard, Henry Torgue, Richard Sennet, George Prochnik e Murray Schaffer pela inspiração que recebi dos seus trabalhos.

Aos músicos que fizeram parte da banda sonora que acompanhou a escrita deste relatório: Jagga Jazist, Tinariwen, Bombino, Bonobo, João Gilberto, Jorge Ben, Herbie Hancock, Cinematic Orchestra, Terakaft e Amon Tobin.

Ao mestre Guilherme Luz, pela partilha da sua experiência de vida.

Um especial agradecimento ao meu amigo Francisco Leitão que me ajudou em todas as fases de concretização deste projeto.

À minha família Mafalda, Fausto e Susana, pela paciência eterna e o seu apoio incondicional, por terem sempre acreditado em mim e por serem pessoas com valores e princípios que quero partilhar com o mundo, tal como intentei através deste projecto.

À Débora, pela sua ajuda que foi essencial para este projeto se concretizar, na partilha e construção de ideias, na motivação que me deu ao longo do processo, na paciência e no carinho.

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Sharawadji

Casos de ruído de vizinhança na cidade de Lisboa

André Miguel Carvalho Coelho

RESUMO

O projeto Sharawadji pretende ser uma instalação interativa que retrata seis casos de ruído de vizinhança analisados na cidade de Lisboa, de forma a ser possível refletir sobre a importância do som no meio urbano. Esta instalação consiste em problematizar certos aspetos referentes à lei de redução e controlo de ruído existente em Lisboa.

A finalidade principal deste projeto é promover uma experiência dos sentidos ao observador da instalação. A nível conceptual foi baseado num efeito sonoro existente nos centros urbanos, denominado efeito Sharawadji. Documentado por Jean-François Augoyard e Henry Torgue, Sharawadji é um efeito estético, caracterizado pela sensação de plenitude através da contemplação de uma paisagem sonora complexa.

Este relatório contém a descrição dos passeios sonoros realizados no Senegal, Mali e Brasil pelo seu autor (estas viagens despertaram a sua capacidade auditiva, ao percepcionar a influência do som em diferentes contextos geográficos e socioculturais), seguida da descrição detalhada dos seis casos analisados. O primeiro exercício de escuta influenciou o processo de recolha de campo realizado em Lisboa.

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ABSTRACT

The Sharawadji project aims to be an interactive installation which portraits six analyzed cases of neighborhood noise in Lisbon, in order to evaluate about the importance of sound in the urban environment. This installation brings into discussion some aspects concerning the Portuguese noise abatement law (act) in Lisbon city.

The main purpose of the project is to promote a sensory experience to the observer of the installation. Conceptually, it was based on a sound effect that happens in the urban centers called Sharawadji effect. Documented by Jean François Augoyard and Henry Torgue, Sharawadji is an aesthetic effect, characterized by a feeling of plenitude emerged by the contemplation of a complex soundscape.

This report contains the description of the soundwalks made in Senegal, Mali and Brazil by the author (these journeys awakened his perceptive ability and trough the observation of the influence of sound in different geographical and socio-cultural contexts), followed by the detailed description of the six cases analyzed. The first listening exercise influenced the process of the fieldwork held in Lisbon.

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ÍNDICE

Introdução ... 1

Parte 1: Uma abordagem sociocultural do ruído ... 7

1.1. Entre Alfama e Panjim ... 7

1.2. Ruído e volumes éticos ... 11

1.3. Lei do Ruído ... 19

1.4. Observações sobre o Regulamento Geral do Ruído ... 21

Parte 2: Comunidades Acústicas ... 27

2.1. Entre Milho Verde e Belo Horizonte ... 27

2.1.2. Subúrbios acústicos ... 32

2.2. Entre Dakar e Timbuctu ... 39

2.2.1. Silêncio negativo e música programada ... 53

Parte 3: Metodologia do trabalho de campo ... 58

3.1. Recolha de Campo ... 58 3.2. Problemáticas ... 63 Parte 4: Casos ... 66 4.1. Bordão ... 66 4.2. Vibração e proximidade ... 76 4.4. Imitação ... 88 4.5. Onda do Tejo ... 94 4.6. Aldeia Vertical ... 100 Parte 5: Instalação ... 107 5.1. Arte e Antropologia ... 109 5.2. Corpo da instalação ... 113 5.2.1. Efeito Sharawadji... 115 Considerações finais ... 117 Bibliografia ... 123 Anexo 1: Modelo tridimensional...I Anexo 2: Instruções...III Anexo 3: Demonstração e Casos...contracapa

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Introdução

Qual é o papel de uma voz antropológica num estudo sobre a influência do som em certos contextos sociais, estudo esse que necessita também de vozes oriundas de outras áreas como a acústica, performance, design, psicologia, geografia, musicologia, composição, arquitetura, filosofia e comunicação? O objetivo num tema tão complexo como este acaba por ser a constituição de uma abordagem multidisciplinar que permita olhar para hábitos, sistemas de crenças, conhecimentos e regras de cultura de uma dada realidade social. Para isso, o foco recai sobre os sujeitos, de forma a representar a sua voz e o seu mundo. Dispensável será dizer que não é possível reproduzir as experiências vividas pelos sujeitos, mas podemos aproximar-nos ao máximo do conhecimento e análise das suas realidades. Independentemente da complexidade existente na diversidade dos comportamentos humanos, experienciar diferentes realidades relacionadas com a mesma problemática ajuda a clarificar a questão chave a ser investigada, neste caso, a influência do ruído nas relações de vizinhança.

Sendo assim, esta pesquisa teve como base o contacto com sujeitos que lidam diretamente com o ruído de vizinhança, ou seja, fui observar a influência do som dentro dos limites físicos e emocionais dos espaços de habitação destes indivíduos, através da captura sonora e visual dos territórios que emergem neste tipo de relações entre vizinhos.

Este projeto surgiu após uma situação por mim experienciada num bairro histórico na cidade de Lisboa. No ano de 2010, eu e alguns colegas de profissão tínhamos com alguma frequência desentendimentos com um vizinho que vivia ao lado do nosso apartamento, devido ao ruído que produzíamos durante o período noturno. Com o tempo sucederam-se episódios que começaram a fugir de um normal relacionamento de vizinhança, tal como descritos no ponto “Entre Alfama e Panjim”. Esta situação tornou-se o ponto de partida para uma pesquisa que necessitou de diversas experiências pessoais que se tornaram imprescindíveis para um melhor entendimento da minha própria relação com o som, antes mesmo de começar a investigação sobre este tema.

Esta pesquisa foi conduzida por uma metodologia que teve em conta a minha profissão enquanto músico, mas mais importante enquanto “turista sonoro”, isto é,

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Descritas no capítulo “Comunidades Acústicas”, as viagens sonoras que incluí neste relatório, realizadas entre 2010 e 2012, foram indispensáveis para um maior entendimento da minha capacidade percetiva. Desde a oportunidade de constatar a existência de uma “comunidade acústica” (Schaffer, 1977) na aldeia de Niafrang no sul do Senegal, da “limpeza dos ouvidos” (idem) no deserto de Timbuktu a norte do Mali, até ao confronto com os djs do volante na aldeia de Milho Verde no Brasil, estas experiências deram-me oportunidade de compreender a minha sensibilidade de escuta em diferentes contextos sociais e culturais e também de observar a influência de certos fatores ecológicos, geográficos e urbanísticos na perceção do sujeito do seu meio envolvente.

A melhor forma de definir estas experiências é a partir do termo soundwalk ou “passeio sonoro”, prática conceptualizada por Murray Schaffer no momento em que ele criou, nos finais dos anos 60, o World Soundscape Project na Simon Fraser University. Este método empírico consiste na identificação de uma paisagem sonora1 e das suas componentes num dado lugar. De acordo com M. Adams (2008) o passeio sonoro “é uma caminhada em torno de uma área urbana, onde os sentidos são direcionados para os sons de um local”2. Já Hildegard Westerkamp (1974) afirma que soundwalk é “qualquer tipo de excursão em que o único objetivo é escutar o meio ambiente.” Esta investigadora descreve esta prática como uma introdução à educação acústica, no sentido do ouvinte “experienciar a escuta de uma forma descomprometida” (Westerkamp, 1974 in Adams, 2008). A primeira vez que entrei em contacto com este método de observação do espaço acústico foi através do documentário “Soundwalkers” realizado por Raquel Castro, no primeiro ano de mestrado. Este documentário tornou-se importante para a pesquisa, devido à forma elucidativa como a realizadora conseguiu partilhar a história sobre o pensamento do ruído nas sociedades modernas e também pela sua abordagem sobre a ecologia acústica, área de investigação do som cada vez mais importante na sociedade atual. Neste sentido, o “Soundwalkers” trouxe para o projeto uma maior clareza sobre a consciência de escuta que é necessária para este tipo de estudo, por ter sido um dos

1 O termo soundscape (paisagem sonora) criado por Schafer a partir do termo landscape (paisagem), refere-se a “qualquer ambiente sonoro ou qualquer porção do ambiente sonoro visto como um campo de estudo, podendo ser esse um ambiente real ou uma construção abstrata qualquer, como composições musicais, programas de rádio, etc”. (Schafer, 1977: 274-275 in Lucia José e Julio Sergi, 2007).

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primeiros contactos que tive com o trabalho de muitos investigadores desta área científica.

Esta investigação também se baseou na abordagem dos trabalhos de alguns investigadores, nomeadamente de Murray Schafer, François Augoyard e Brandon Labelle. Desde os anos 70 e 80, têm emergido inúmeras investigações sobre a influência do ruído ao nível ecológico, social e cultural. Como um dos pioneiros deste tipo de investigação, Schaffer traz uma análise consistente sobre as paisagens sonoras existentes no meio urbano e rural em diferentes sociedades um pouco por todo o mundo. Na sua obra “Tuning of the World”, o autor realça a importância para o ser humano da escuta enquanto forma de compreensão do seu meio ambiente e social, contrapondo-a com o aumento da poluição sonora proveniente do crescimento industrial e tecnológico nas sociedades modernas. Este livro tornou-se muito importante ao longo desta pesquisa tendo em conta que, para além das descrições históricas sobre as diversas paisagens sonoras existentes no mundo, a sua proposta de “limpeza dos ouvidos” (Schaffer, 1977) foi essencial para a criação de uma maior sensibilidade auditiva durante o trabalho de campo3.

Ao nível prático, o livro que incentivou a conduta no trabalho de campo foi “Sonic Experience”, criado por François Auyogard e Henry Torgue. Fruto de uma colaboração que durou cerca de dez anos entre engenheiros, arquitetos, planeadores urbanísticos, sociólogos, filósofos, geógrafos e musicólogos, este trabalho contribuiu para a ampliação das ferramentas de estudo do som já existentes nesta área de investigação, através do preenchimento de três critérios: interdisciplinaridade, adequação à escala das situações urbanas observadas e capacidade em integrar dimensões para além do design estético (Augoyard e Torgue, 2006: 7). O conceito finalmente adotado por estes autores foi o de “efeito sonoro”, que está cada vez mais a ser utilizado nos três campos onde é particularmente eficiente: ciências sociais, estudos urbanos e acústica aplicada (idem: 7). Para estes autores, o conceito de “efeito sonoro” descreve esta interação entre o ambiente de um som físico, o meio acústico de uma comunidade sociocultural e a “paisagem sonora interna” de cada indivíduo (idem: 9).

Uma outra inspiração para este projeto de pesquisa foi o livro “Acoustic Territories” escrito por Brandon Labelle. A sua pesquisa traduz um retrato das

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relações que atualmente os indivíduos têm com os diversos espaços urbanos em que estão inseridos, e de como isso influencia a sua perceção auditiva no seu meio sociocultural. Mais especificamente no capítulo “Home”, Labelle descreve a importância do lar enquanto santuário dos rituais e partilhas íntimas do sujeito e a forma como este preserva acusticamente o seu espaço doméstico em equilíbrio com o seu meio envolvente4.

Através desta pesquisa bibliográfica, comecei a estruturar a metodologia do trabalho de campo com o objetivo de recolher os dados que contribuíssem para a concretização do projeto final. Ao mesmo tempo pretendi que a minha perceção conduzisse o processo de recolha de campo, de forma a usufruir das diversas experiências sensoriais vividas durante a pesquisa, para que contribuísse para a reflexão teórica, dependendo da natureza dos casos em análise. Por outras palavras, a conciliação da parte teórica da pesquisa com a minha presença no terreno poderia dar a oportunidade de demonstrar as questões debatidas ao longo deste processo de investigação, testando e desenvolvendo em simultâneo a minha capacidade percetiva, através dos “passeios sonoros” possibilitando uma maior sensibilidade de escuta num dado evento5. Após ter escolhido as ferramentas para a pesquisa no terreno, nomeadamente ao nível de captura sonora e de registo fotográfico, comecei a procurar os casos mais adequados para este tipo de investigação na cidade de Lisboa, através do contacto com as entidades e agentes sociais que de alguma forma se relacionam com este fenómeno6.

Escolhi os casos que demonstram o universo desta pesquisa dando preferência aos que tinham fontes de ruído diferenciadas entre si e diferentes tipos de relacionamento dos sujeitos com o fenómeno de ruído de vizinhança. Dos doze casos analisados escolhi seis que julguei serem apropriados para a fase posterior do projeto, nomeadamente na materialização desta pesquisa, descrita no capítulo “Instalação”.

Escolhi casos de diferentes áreas da cidade de Lisboa que possuíam características distintas entre si como a fonte sonora, recetividade percetiva do indivíduo, condições urbanísticas e tipo de relacionamento de vizinhança. Cada caso apresentava as suas próprias especificidades o que veio a evidenciar a pesquisa

4 Ver “Ruído e volumes éticos”.

5 Desde a observação não intencionada de um determinado espaço acústico até às anotações

dos elementos que compunham uma dada paisagem sonora, tentei “limpar os ouvidos” de forma a alcançar uma certa autonomia percetiva no momento da recolha de campo.

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bibliográfica que esta investigação exigiu7. Porém, convém realçar, que estes casos não são reflexo da “comunidade acústica” dos bairros analisados, mas situações singulares encontradas nestas zonas.

Uma das questões que surgiu na fase de escrita deste relatório foi a de como colocar a voz dos sujeitos entrevistados. Penso que, para além do trabalho de projeto, o relatório deve ser o mais fiel possível aos eventos analisados, o que se concretiza através da transcrição direta dos depoimentos recolhidos. Por essa razão os casos aqui expostos também contêm a reprodução exata dos registos áudio captados durante as entrevistas, de forma a que haja uma referência escrita dos depoimentos que serão ouvidos no projeto final8.

Foi também necessário contextualizar a nível bibliográfico certos aspetos referentes a estes casos, para que fosse mais fácil a localização do seu conteúdo neste projeto de pesquisa. Nesse sentido, introduzi as abordagens dos autores que influenciaram a minha investigação tais como Murray Schaffer, François Augoyard, Brandon Labelle e George Prochnik, que facilitaram a análise da complexidade destes fenómenos sociais através das suas pesquisas.

Ao refletir sobre a concretização deste projeto, pareceu-me essencial que o som fosse o elemento central na composição do produto final. Os estudos em torno deste tema, da influência do ruído nas relações entre sujeitos promovem discussões importantes para a sociedade, nomeadamente de que forma é exercida a nossa consciência de escuta no dia a dia. Por abordar uma temática que requer uma análise multidisciplinar, devido à forma como atualmente o som influencia a vida dos indivíduos nos centros urbanos, este trabalho visa inserir-se numa área cada vez mais transversal nas ciências sociais e humanas.

Presenciamos cada vez mais o aumento da recorrência de certos fenómenos sociais, como por exemplo os conflitos de vizinhança, o que parece estar relacionado com a falta de clareza das leis, incapazes de conciliar as diferentes formas de perceção do espaço entre os sujeitos. A fraca definição dos critérios de controlo e restrição do ruído, sem uma compreensão multidisciplinar destes fenómenos existentes no meio urbano, podem gerar uma leitura insuficiente sobre esta matéria e consequentemente a criação de soluções pouco eficazes por parte dos órgãos reguladores9.

7 Ver em anexo “Casos”. 8 Ver capítulo “ Instalação”.

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A abordagem feita nesta pesquisa, iniciada a partir da análise de diferentes espaços domésticos e das relações das pessoas que neles habitam com o ambiente sonoro que as envolve, demonstra vários aspetos que influenciam a conceção do ruído enquanto barulho incómodo produzido pelo “outro”. Este facto tem origem tanto em significados sociais e culturais compartilhados pelos indivíduos como nos próprios condicionamentos urbanísticos a que estão sujeitos.

Sendo assim, o efeito subjetivo do som no indivíduo tornou-se uma das questões centrais desta pesquisa: como “observamos” o ruído e porque escutamos um evento sonoro de forma distinta de outro sujeito?

A melhor forma de materializar esta questão teórica pareceu ser através de uma instalação que criasse possibilidades de leitura que evidenciassem a dimensão acústica da pesquisa, de modo a que o “espetador” pudesse ter experiências sonoras semelhantes às experienciadas por mim durante a fase de recolha de dados em Lisboa. Pessoalmente, sinto que esta partilha é necessária dado que os indivíduos que habitam em certos espaços urbanos têm cada vez menos acesso a sensações auditivas diversificadas devido não só a fatores arquitetónicos e urbanísticos como também à influência do meio sociocultural na sua capacidade percetiva. Assim sendo, um dos objetivos deste trabalho é despertar a consciência de escuta através da apreciação dos diversos fenómenos acústicos existentes nos espaços domésticos, delimitados pelas fronteiras que separam a liberdade íntima da convivência em sociedade, tal como assistimos neste fenómeno de ruído de vizinhança.

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PARTE 1

Uma abordagem sociocultural do ruído

1.1. Entre Alfama e Panjim

Durante a primavera de 2010 frequentei muito o bairro de Alfama. Por ter alguns amigos e colegas de profissão que lá trabalhavam, na sua maioria músicos, costumávamos encontrar-nos numa casa no coração deste bairro histórico lisboeta. Como trabalhávamos de dia, as noites eram reservadas para um convívio mais sossegado, de forma a retirar a pressão do trabalho diurno.

Em meados de maio, começámos a ter visitas inesperadas do vizinho do lado, que se queixava do barulho produzido na casa. De pijama e completamente desesperado por sossego, ele batia à nossa porta com muita frequência e a sua atitude era, a meu ver, desproporcional ao incómodo que eu julgava que causávamos com o nosso ruído. Não havendo qualquer recurso à música, nem por meio de aparelhos eletrónicos nem pela prática instrumental, o nosso barulho resumia-se a conversas e aos sons das tarefas domésticas. Inicialmente os pedidos para reduzir o som foram respeitados, mas permaneceu sempre a dúvida se estávamos realmente a incomodar ou se era exagero daquele senhor.

Os problemas agravaram-se quando, em vez das queixas diretas, recebemos ordens da Polícia de Segurança Pública para cessar a produção de ruído. Após duas visitas seguidas, confrontámos os agentes de autoridade com os factos: o único barulho provinha das nossas conversas, e essa fonte de ruído, quantitativamente, não ultrapassava os limites estabelecidos pela lei. Compreensivos com os nossos argumentos, os agentes admitiram ter dificuldades em gerir este tipo de conflito de vizinhança, tendo em conta que, de acordo com o seu testemunho, muitas vezes são

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chamados para ocorrências que não têm solução, pelo facto de estas não serem suficientemente graves para autuar o (aparente) infrator.

O caso mais grave sucedeu quando o vizinho, por volta da meia-noite, começou a buzinar dentro do seu carro para nos chamar a atenção. Ao observarmos esta situação pela janela, ele atacou-nos verbalmente, conduzindo o conflito para fora dos limites da cordialidade.

Após algumas conversas com outros vizinhos, comecei a saber mais a respeito deste senhor que estávamos a incomodar. Descobri que exercia a profissão de taxista, que acordava pelas seis da manhã e que trabalhava cerca de 12 horas por dia. Nesse momento, tornou-se nítido para mim que o sossego noturno era indispensável para uma pessoa com estas condições de trabalho.

Relacionando as suas queixas com os sons do seu quotidiano, quis entender a realidade acústica do seu espaço profissional e doméstico. O táxi onde trabalha consegue oferecer formas de bloqueio sonoro do seu espaço envolvente, seja a partir das paisagens musicais disponíveis no rádio seja da barreira acústica criada pelas janelas da sua viatura. Mas não consegue isolá-lo completamente da exposição aos barulhos mecânicos provenientes de outras viaturas, buzinas, sirenes ou sinais de trânsito o que torna a sua paisagem sonora vulnerável a estes sons densos e agressivos. Sendo o seu espaço pessoal continuamente interferido, ele é obrigado a reagir às constantes mudanças de intensidade sonora durante o horário de trabalho.

Devido a estes exercícios auditivos no seu dia a dia, é plausível supor que, ao chegar ao seu espaço doméstico, um indivíduo num contexto semelhante ao do taxista tenda a resistir a qualquer tipo de som proveniente do exterior, pela sua necessidade de sossego e descanso. Neste sentido, o lar reflete o seu “estado psíquico” (Bachelard, 1958), ao procurar o equilíbrio com o espaço exterior, através do controlo acústico dentro da sua habitação (LaBelle, 2010). Sendo o ruído de vizinhança um fluxo invasivo, ele tenta proteger a sua paz doméstica, tanto através de queixas diretas, como também recorrendo à própria lei. No lar, invariavelmente o taxista terá o seu vizinho do outro lado da parede, sem qualquer possibilidade de se deslocar para um espaço mais desejável, tal como acontece no seu período de trabalho devido à mobilidade por diferentes paisagens urbanas que a sua viatura proporciona, ou através da música de rádio usada como “áudio-analgésico” (Schaffer, 1977). Sendo assim, as suas reações ao barulho produzido por nós pareceram tornar-se atos defensivos

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perante o domínio de uma paisagem densa e intrusiva no seu quotidiano, tal como acontece no tráfego rodoviário.

Ao refletir sobre a experiência que tivemos com o nosso vizinho de Alfama, lembrei-me de uma viagem à Índia, 8 anos antes. Na cidade de Panjim, capital do distrito de Goa, aluguei uma motorizada para me deslocar com mais facilidade aos locais turísticos. Inicialmente, o trânsito era insuportável, não tanto pela quantidade de viaturas nas estradas, mas pelo caos proveniente das buzinas dos veículos. Tendo em conta que em certas localidades não havia sinais de trânsito para regular o fluxo rodoviário, rapidamente entendi a razão para esta desordem: os constantes avisos sonoros contribuíam para que a circulação entre viaturas fosse mais homogénea e sem engarrafamentos, sendo este o meio de negociação entre os condutores. Desta forma, era possível saber a localização de todas as viaturas, pelo alerta das diferentes tonalidades e timbres das buzinas.

Comecei nesse momento a questionar o que me levou, no início da viagem, a ter uma aversão a esta paisagem das estradas de Panjim. Após associar os sons das buzinas às necessidades locais, o excesso de ruído tornou-se significativamente menos incomodativo, e a dado momento prazeroso. Comecei a sentir que estava a contribuir para essa organização do espaço, assegurada pela constante negociação entre sujeitos: senti-me, por momentos, pertencente a uma “comunidade acústica” ( Schaffer, 1977: 215).

Estas duas situações, de Alfama e Panjim, parecem ter algo em comum pelo facto de trazerem experiências distintas com um mesmo som pertencente ao nosso quotidiano, o som da buzina. Enquanto em Panjim ela se tornou indispensável para a organização da circulação rodoviária, a buzina em Lisboa é usada pontualmente, na maioria das vezes em situações de advertência ou repreensão, raramente com uma função mais construtiva de organização de fluxos coletivos, tal como presenciei na Índia. No caso de Panjim, a buzina deu-me oportunidade de negociar com o outro, em conformidade com as características do fluxo rodoviário local. Em relação a Alfama, o nosso vizinho taxista, enquanto proprietário do seu lar, demonstrou o seu incómodo usando a buzina (som a que recorre e a que está exposto diariamente no seu local de trabalho) como forma de inquietar quem o incomodava. Exposto a este som no seu quotidiano, ele acabou por utilizar a sensação que a buzina lhe provoca, fazendo dela um instrumento de poder contra quem importunava o seu sossego.

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Se este conflito de vizinhança tivesse acontecido em Panjim a buzina seria também usada como uma arma ao nível doméstico? As características da buzina, enquanto sonoridade densa e agressiva, são observadas em ambas as situações mas em todo o caso existe uma apreciação sociocultural distinta deste tipo de som. Ao imaginar que um taxista de Panjim tem as mesmas reações de incómodo no trânsito que o nosso vizinho, a sua exposição ao som da buzina pode ser menos dolorosa. Isto pode acontecer porque a buzina em Goa contem à partida um código que é entendido como uma forma contínua de solucionar os problemas do trânsito local, e não como um recurso sonoro utilizado pontualmente para casos de repreensão e advertência, tal como acontece em Lisboa. Pessoalmente, por não ter a carta de condução, a minha relação direta com este som ocorre apenas em situações de desatenção, quando atravesso uma estrada. A minha reação instintiva a este som, tanto na estrada como nessa noite em Alfama, é de estar a ser repreendido por alguém que tem uma presença sonora maior que a minha nesse espaço. O taxista de Alfama, apesar do seu domínio físico e acústico na estrada, também sente na pele o peso deste instrumento ao ser advertido por outros motoristas.

Sendo assim, constatei nestes dois casos, que a dimensão cultural do som pode determinar a perceção do indivíduo e, consequentemente, a forma como este configura o seu espaço social.

Através desta breve interpretação de duas situações por mim vividas, introduzo a questão essencial do meu projeto: o que é o ruído?

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1.2. Ruído e volumes éticos

“Ruído pode ser definido como um som indesejado. Isto torna o ruído um termo subjetivo, tendo em conta que a música de um indivíduo pode ser o ruído de outro” (Schaffer, 1977: 183).

Estas experiências vividas entre Alfama e Panjim parecem ilustrar a teoria de que o ruído não possui um caráter objetivo, ou seja, de que este se configura na relação direta entre um evento sonoro e a perceção de um indivíduo. De acordo com Paul Hegarty (2007), essa relação varia de acordo com fatores como a localização histórica, geográfica e cultural, dependendo de quem produziu o ruído, quando e de que forma afetou o recetor (Hegarty, 2007: 3).

Ruídos não são diferentes de outros sons até serem classificados como incómodos. Mas a noção de “barulho” já tem essa qualificação, ou seja, já é o julgamento de que um dado som está a ser incomodativo10. Apesar de o ruído poder ser recebido fora da nossa compreensão (sem entendermos o seu objetivo, forma ou fonte) um julgamento é feito quando temos uma reação a este (idem: 4).

O ser humano pode ser fisicamente afetado por certos sons: frequências ou sons muito altos podem prejudicar o ouvido, enquanto frequências muito baixas podem afetar certas áreas do corpo, com perturbações ao nível do sistema digestivo e cardíaco (LaBelle, 2010). Porém, ao nível fisiológico, a tolerância do aparelho auditivo varia entre indivíduos, o que não se deve apenas a fatores biológicos. Em grande parte essa classificação de ruído, enquanto som nocivo, provém da aprendizagem que adquirimos socialmente em relação ao desconforto, seja este físico ou espiritual (Hegarty, 2007:5).

Certos tipos de ruído têm a ver com os sons produzidos por “outras pessoas”, e estes são os que normalmente conduzem à regulamentação e controlo do ruído a nível social. Como resultado, práticas que não produzem sons de volume elevado para serem uma ameaça física, segundo os padrões determinados pela Medicina, podem ser tidas como barulhentas. Sendo assim, o ruído é visto como um excesso, mas para o

10 Penso ser importante destacar a diferença entre a noção de ruído e de barulho. No senso comum, as duas palavras parecem ter o mesmo significado. No entanto, se analisarmos com mais cuidado o que as pessoas querem dizer quando as utilizam, parece que o ruído é um som indesejável, ao passo que o barulho é o resultado da conjugação de diversos sons que incomodam o ouvinte. Normalmente, quando um indivíduo se refere a um som incomodativo denomina-o de ruído, designando por barulho um espaço acústico confuso e perturbador.

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ouvido humano isto ocorre maioritariamente pela perceção cultural, bem como pelas reações individuais que dependem, além da cultura e da sociedade, das experiências pessoais de cada sujeito e das relações que ele estabelece com determinados sons (Hegarty, 2007).

Se considerarmos a definição objetiva de ruído como sons que ultrapassam determinado limite de decibéis suportáveis pelo ouvido humano, pode afirmar-se que o ruído sempre existiu na natureza. Sons volumosos de certos fenómenos como o som do trovão, do tremor de terra ou da tempestade no mar sempre foram fundamentais como referência da ocorrência de certos eventos naturais para os seres vivos (Schaffer, 1977). Neste sentido, podemos afirmar que a invenção da música (ou da linguagem em geral) como organização humana dos sons, determinam a forma como se dará a perceção do que é ruído. Por outras palavras, se o ruído é um fenómeno cultural, este emerge em contraste com outros sons que não categorizamos como barulhentos, ou que organizamos em estruturas com um certo significado social e cultural (Hegarty, 2007: 5).

É justamente com a contemplação do silêncio que é dado um passo importante no pensamento sobre o ruído, a partir de uma obra do compositor contemporâneo John Cage. Inspirada numa visita a uma câmara anecoica11, Cage continuava a ouvir algo: foi informado que o som que estava a ouvir era da sua circulação sanguínea. A partir desta experiência nasceu a peça silenciosa “4’33”, uma composição na qual os músicos da orquestra não tocam, sendo a atenção do público direcionada para os outros sons ouvidos na sala de concerto. A partir daqui, o mundo pode ser revelado como infinitamente musical12.

A urbanização, a partir do século XVII, foi um fator importante para o aumento do ruído humano, devido à confluência entre pessoas, máquinas e riqueza. Combinado com a concentração das classes mais baixas nos centros das cidades, surge nesta época o fenómeno da música e performance de rua, o que impulsiona as primeiras leis de controlo sonoro. A regulamentação do ruído exercida nesse período era maioritariamente direcionada a estes artistas de rua e a outras atividades artísticas realizadas em espaços exteriores ou públicos. Murray Schaffer descreve que nesta

11 Uma câmara anecoica (do inglês an-echoic, que significa “sem eco”) é uma sala insonorizada ou seja, possui um isolamento de fontes de ruído externas a esse espaço.

12Tal como Hegarty afirma, “a musicalidade tem a ver com a nossa atenção para com os sons do mundo. Isto leva-nos à conceção platónica do universo: a forma total das coisas existe - nós só criamos versões delas.“ (Hegarty, 2007: 6).

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época, a perceção dominante era a de que a “rua se tornou na casa da não-música, onde se misturou com outros sons de esgoto”13. Jacques Attali (1977) acrescenta, no

seu livro Noise, que é neste período que as classes mais baixas se tornam uma ameaça para a elite, ao ocuparem certos espaços da cidade, sendo a sua cultura considerada cada vez mais “barulhenta” pelas classes mais altas. Notamos que a ideia inerente que temos em relação ao ruído ou barulho enquanto tipos de sons não desejados está, desde os seus primórdios, ligada a uma aversão que vai muito além do incómodo auditivo que certos sons provocam (Hegarty, 2007: 5).

Nesta perspetiva, podemos afirmar que a antiga legislação de redução de ruído era essencialmente seletiva e qualitativa, contrastando com aquelas criadas na era moderna, que começaram a fixar os limites quantitativos em decibéis. Nesta época, enquanto a legislação era direcionada para a voz humana (ou para as “vozes” das classes mais baixas), não existia nenhum tipo de condenação ao som mais alto então produzido: o som dos sinos das igrejas (Schaffer: 1977: 67).

Para Schaffer não se trata apenas de uma questão de classes e hierarquias, mas também da divisão entre o espaço público e o privado. O autor argumenta que foi na transição feita pelas elites para a “vida no interior” (nomeadamente com a criação das janelas com vidro no final do século XVII) que a música erudita se tornou privada, sendo feita na casa das pessoas. Este fator foi a base para o aparecimento das salas de concerto, que as pessoas frequentavam para escutar música, sem que lhes fosse autorizado provocar qualquer tipo de barulho, com exceção dos momentos convencionais, como por exemplo as palmas no final de uma performance14.

Esta separação do espaço interior e exterior dividiu o mundo entre os sons desejados, organizados, e os sons não desejados, desenvolvendo, nas palavras de Schaffer, tanto a arte superior como a poluição sonora, pela qual os ruídos eram os “sons deixados de fora” (idem: 35).

No início do século XX, a compreensão do ruído transformou-se novamente, segundo modos de pensar marcados pelo momento histórico, como também por fatores culturais e geográficos. O ruído começou a ter conotação de poder e eficiência, com o aparecimento das primeiras máquinas de transporte, surgindo movimentos

13 Murray Schaffer, Music, Non-Music and the Soundscape, p36. 14 Idem, p35.

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políticos, culturais e artísticos que enalteciam o desenvolvimento industrial enquanto sinónimo de progresso económico e social:

“A indústria precisa de crescer; sendo assim os seus sons precisam de crescer também. Este é o tema central dos últimos duzentos anos. De facto, o ruído é tão importante como um criador de atenção que se a maquinaria silenciada tivesse sido desenvolvida o sucesso da industrialização não teria sido grande”(Schaffer, 1977: 77-78).

Ao nível artístico, uma das primeiras abordagens destes novos sons mecânicos provêm da poesia onomatopeica de Tomaso Marinetti, que buscava traduzir o ruído da tecnologia e da guerra em linguagem, enaltecendo a estética da indústria e acima de tudo a “beleza pela velocidade” (Marinetti, 1909: 21). Mas foi a partir do Futurismo, um movimento cultural liderado por Luigi Russolo, que se iniciou a representação do mundo industrial tal como ele era. Russolo, com o seu manifesto “Arte do Ruído” de 1913, demonstrou que “o mundo industrial era o meio ambiente da humanidade, e que, assim como necessitamos invariavelmente de interagir com o que nos rodeia, deveríamos tratar o som que dele emana da mesma maneira” (Russolo, 1986). Este movimento acabou por procurar essa amplitude da musicalidade do mundo a partir da invenção de máquinas que estalavam, assobiavam ou disparavam, e isso seria mobilizado em composições musicais. Ao invés de representar esta época industrial a partir da tradição musical do ocidente, este movimento trouxe o novo mundo sonoro diretamente para a arte através da “estética da indústria”. Neste sentido, os Futuristas viram na tecnologia e na agressão mecânica um contraponto ao conservadorismo artístico e social da época: o ruído seria então uma forma de demonstrar que a música ocidental materializava a sociedade a partir dos atributos da ordem e do poder central (Attali, 1977).

Na revolução pós-industrial surgem então os mecanismos que revolucionaram o mundo da comunicação: o telefone, o fonógrafo e o rádio. Com o poder de transporte de um sinal sonoro para qualquer espaço do mundo, o ser humano já não estava dependente da sua capacidade vocal para ser ouvido à distância. Ainda nesta época, surge o ruído de fundo nas grandes cidades: máquinas emitem ininterruptamente frequências baixas, contrastando com o som de duração limitada dos elementos da natureza, que se situam nas frequências médias e agudas. Surge uma nova “parede sonora” (Schaffer, 1977: 93), denominada de drone ou bordão, ou seja,

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um som contínuo numa tonalidade específica, dependendo da frequência elétrica do lugar, que se torna um subtil condicionador dos gestos percetivos dos indivíduos no meio urbano. Estes sons, que nesta altura podiam ser ouvidos nos sistemas públicos de iluminação, semáforos ou geradores elétricos, introduziram-se progressivamente no espaço do lar, com o aparecimento dos eletrodomésticos e utensílios variados que o indivíduo começou a utilizar em suas práticas caseiras.

O crescimento das grandes cidades começou progressivamente a influenciar a perceção auditiva do indivíduo, como também levou a que as manifestações entre os seus habitantes se adaptassem às constantes configurações do espaço urbano. Seja estar no metro a falar ao telemóvel, numa conversa na rua ou em casa ouvindo música, as nossas expressões encontram o espaço do “outro” que forçosamente coabita na nossa esfera social.

A partir das noções de respeito e cidadania, compartilhadas por grupos e que emergem nas dinâmicas existentes no meio urbano, as nossas expressões passaram a ser condicionadas pelos “volumes éticos” padronizados pela sociedade. Nesta perspetiva, o ruído pode ser observado como um som que ocorre onde não deveria, pelo facto de não ser admitido como pertencente ao espaço comum entre indivíduos, sendo este o seu posicionamento nas leis de controlo sonoro ou na própria definição de saúde ambiental (Labelle, 2010:47).

Mas antes de aprofundar a reflexão sobre a influência do som enquanto fator condicionante da nossa mobilidade social, é importante destacar a importância da relação entre o sujeito com a sua propriedade privada, nomeadamente o lar, por ser o principal motor de equilíbrio entre o espaço íntimo e as dinâmicas exteriores a esse lugar (físico e imaginário).

Na sociedade ocidental, a evolução do espaço doméstico está relacionada com a conceção burguesa de privacidade, devido principalmente à crescente retirada da classe média das experiências do quotidiano nas cidades. Charles Rice (2007) argumenta que, no século XIX, “para a burguesia, a habitação separou-se do trabalho, e nesta divisão as condições para o surgimento do espaço interior doméstico foram possíveis” (Rice, 2007: 12). A criação do lar veio então equilibrar-se com a crescente intensificação das dinâmicas do meio urbano, transformando o espaço doméstico num “estado psíquico” (Bachelard, 1958) que promovia o desejo de prazer, sossego e intimidade. Em contraste com o crescimento das metrópoles e da intensidade do

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objetos, mobílias, design de interiores e uma ordenação do espaço que renova o sentimento de serenidade (Labelle, 2010).

Podemos observar a esfera doméstica como um espaço central para os movimentos e experiências do dia a dia. Para muitas pessoas trata-se de um espaço físico singular e protegido, quase inacessível a tudo o resto que o rodeia, e é, tal como afirma La Belle “a base de onde um indivíduo avança para o mundo e para onde regularmente retorna” (idem: 49). O espaço doméstico pode ser visto como um lugar que equilibra as dinâmicas de exposição do sujeito com o seu espaço social, ao proporcionar bem-estar e distanciando o indivíduo das “exigências” do mundo exterior. O lar apresenta-se como um núcleo estável e como um espaço de partilha de valores, ou seja, é o lugar onde conflui o que é comum entre pessoas em contraste com a intensa atividade da vida urbana e das experiências fragmentadas da cidade (idem: 49).

É possível argumentar que o espaço doméstico expressa a interioridade de um sujeito ao tornar-se, materialmente, um reflexo íntimo da vida e dos rituais privados de quem nele habita. Nesta perspetiva, pode ser visto como um espaço de procura de um equilíbrio emocional, onde as relações se normalizam à volta da partilha de objetos, valores, rituais e performances. Sendo assim, o lar é um lugar sensível ao refletir as necessidades físicas, psicológicas e emocionais do sujeito. Tal como Labelle sugere, “o voltar para casa é a procura de refúgio do fluxo descontrolado de ruídos e do discurso do exterior”(idem: 50). Seguindo esta perspetiva, podemos admitir que a manutenção de uma nitidez auditiva potencia a estabilização das dinâmicas no espaço doméstico, onde a “ordem equivale a sossego” (Labelle, 2010). Neste sentido, as noções de mobilidade e transitoriedade urbana, que observamos nas sociedades modernas, tornam-se sinais de transgressão face à estabilidade de um espaço doméstico ordenado.

Karin Bijsterveld (2008) refere que foi a partir da instalação dos sistemas de canalização e aquecimento nas habitações coletivas no início do século XX, que os espaços domésticos foram de repente invadidos por novas sonoridades que trouxeram um contacto inesperado entre vizinhos. De repente, um indivíduo a tomar banho criava uma nova intromissão no espaço do outro, produzindo novas formas de conectividade ao nível doméstico. Mas foi com a introdução dos aparelhos domésticos como o gramofone, o rádio e finalmente a televisão, que se reconfigurou a vida doméstica pelo aparecimento de ruídos que interferiam no espaço de cada sujeito

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(Bijsterveld, 2008: 166). Consequentemente, as leis de diminuição de ruído doméstico surgiram um pouco por todo o mundo, dependendo das características de cada sociedade15. Em Roterdão no início de 1913, foi debatida uma legislação de controlo referente ao barulho provocado pelos gramofones e seu uso doméstico. A lei foi amplamente contestada por se revelar uma medida elitista, devido ao facto de o uso deste aparelho ser feito maioritariamente pela classe laboral da época. Devido à sua popularidade e fácil aquisição, o gramofone deu aos indivíduos das classes mais baixas a oportunidade de amplificar a sua cultura musical (idem).

Este exemplo, entre outros existentes em diferentes sociedades16, mostra que a situação de distúrbio de vizinhança foi inicialmente definida não apenas numa perspetiva quantitativa, isto é, relativa ao volume ou intensidade do ruído produzido, mas também qualitativa, relativa à natureza ou ao tipo de som considerado como ruído. Nesta época, ao conjugar as questões de espaço doméstico com o som, os antigos modelos de leis de diminuição de ruído encontraram o desafio de como quantificar e qualificar o som, ou seja, como julgar e definir que tipos de sons são incómodos e porquê. Sendo o som um fator importante de contacto social, a experiência urbana tornou-se progressivamente localizada dentro dos “volumes éticos da cidadania” (Labelle, 2010: 46). Seguindo esta perspetiva, gostava de lançar a seguinte questão: como regular os “movimentos” do ruído urbano sem enfraquecer a condição essencial que a cidade oferece enquanto experiência social ou comunitária? Apesar de as leis de controlo sonoro atualmente não serem criadas para estabelecer o silêncio absoluto, estas acabam mesmo assim por localizar o som numa escala em que se privilegiam os volumes baixos. Neste sentido, esta posição ao nível legal, de promover o silêncio enquanto ponto central da geografia auditiva do sujeito, acaba por realizar um “aprisionamento” doméstico de certas dinâmicas sociais, a partir da noção de respeito e cidadania desenvolvidas numa dada sociedade17.

Seguindo esta perspetiva, torna-se necessário antes entender de que forma são definidos os critérios de avaliação de ruído ao nível legal, tendo em conta que o controlo sonoro numa dada sociedade depende inicialmente de uma apreciação social e cultural. Tal como Schaffer (1977) argumenta, os estatutos legais sobre o ruído “não são criados arbitrariamente por indivíduos; eles são discutidos perante a sociedade.

15 Ver “Lei do Ruído”.

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Assim revelam as atitudes culturais distintas em relação à fobia sonora.“ (Schaffer, 1977: 197).

No próximo ponto serão descritas as diferentes abordagens sobre a lei do ruído ao nível social e cultural existente em distintos lugares do mundo, e será feita uma breve observação do Regulamento Geral do Ruído em Portugal, através da sua aplicação ao nível municipal na cidade de Lisboa.

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1.3. Lei do Ruído

Por todo o mundo, a classificação legal do ruído é heterogénea. Dependendo dos países, as suas definições localizam-se entre dois tipos de legislação: qualitativa e quantitativa. Enquanto o primeiro lida com os sons socialmente incomodativos, as legislações quantitativas lidam com os sons “altos”, ou seja, com os volumes sonoros que podem ser nocivos para a saúde pública. Apesar dos critérios das leis quantitativas poderem ser definidos através de valores em decibéis, os modelos qualitativos historicamente tiveram o desafio de conciliar os diferentes tipos de perceção auditiva existentes numa dada sociedade, devido à influência de fatores socioculturais sobre os indivíduos ou grupos sociais distintos. Isto acontece porque ao definirmos um ruído como “som indesejado” tornamos a análise de um dado som subjetiva, tendo em conta que, no caso das legislações mais tradicionais em certas sociedades, a classificação de ruído e sua regulamentação varia de acordo com a opinião pública.

Murray Schaffer descreve, através da sua pesquisa sobre os diferentes tipos de legislação existentes no mundo, a existência de diferentes avaliações de ruído que vão depender de uma apreciação cultural desse país ou comunidade. Como exemplo, Schaffer aponta que na cidade de Génova (Itália), no seu Regolamento di Polizia Comunale (1969), são identificados alguns artigos que definem proibições pouco comuns. No artigo 65º consta que das 21h às 7h as persianas têm que ser abertas e fechadas silenciosamente (Schaffer 1977:197). No caso do artigo 67º do mesmo regulamento, “existem restrições nas mudanças de mobília em casa, entre as 23h e as 7h, tendo em conta que é comum o trabalho mais pesado ser feito à noite, para evitar o calor diurno do verão” (idem: 198).18

18 Podemos ver aqui outros casos distintos um pouco por todo o mundo, descritos pelo mesmo

autor:

“In Hong Kong a principal source of noise complaints is the sound of ‘mah jong parties’. The slapping together of mah-jong tiles is also characteristic of the Chinese districts of Vancouver and San Francisco, where it is enjoyed by the tourists. (...) In Mombassa (Kenya), some of the most common noises are tin-beaters, drum-beaters, blacksmiths and charcoal-stove makers; while in the port cuty of Auckland (New Zealand), a major source of complaint is ‘backyard panelbeating and boat building’- and there is a by-law designed to prevent it from taking place at night. In Rabat (Morocco) one of the chif noises is family reunions, while in Izmir (Turkey) (...) in bus terminals and parking lots propor

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Muitos países têm uma legislação nacional que pode ou não ser suplementada por leis municipais, enquanto noutros a questão pode ser da inteira responsabilidade dos municípios (Schaffer, 1977: 191). Apesar de as legislações de ruído serem variadas pelo mundo, alguns temas são recorrentes: distúrbios públicos, música de rua ou em casa, amplificadores de som, rádios, animais, motores de veículos ou indústria ruidosa nas áreas residenciais.

No caso da legislação quantitativa, o ruído é definido a partir dos limites de decibéis. Por exemplo, se um regulamento estipular para uma fonte de emissão o valor máximo permitido de 50 decibéis, a fonte que produz 51db é ruidosa enquanto a de 49db não o é. Neste sentido, a medição quantitativa veio dar o significado de ruído como um “som alto” (Schaffer, 1977). Em grande parte, esta avaliação quantitativa corresponde aos parâmetros que a Medicina definiu em relação à pressão sonora suficiente para causar a perda auditiva19. Todavia, nem todos os ruídos incomodativos são necessariamente elevados, ou elevados o suficiente para figurarem no medidor de decibéis. Esta dificuldade em criar parâmetros qualitativos na lei está ligada ao facto de os níveis máximos estabelecidos conseguirem lidar com os sons fisicamente destrutivos, mas não serem capazes de aliviar o problema ao nível do incómodo psicológico, enquanto “som indesejado”. Dificilmente quantificável, este aspeto demonstra que “a lei deveria também ter disposições ao nível qualitativo para contrabalançar o avanço da mentalidade tecnocrática nesta matéria” (idem:197).

etc. - is subject to a penalty. Any claim that the act was a joke will not change the consequences, which is a 50 Turkish Lira fine”. ( Schaffer, 1977: 198-199).

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1.4. Observações sobre o Regulamento Geral do Ruído

“A prevenção do ruído e o controlo da poluição sonora visando a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das populações constitui tarefa fundamental do Estado, nos termos da Constituição da República Portuguesa e da Lei de Bases do Ambiente. Desde 1987 que esta matéria se encontra regulada no ordenamento jurídico português através da Lei n.o 11/87, de 11 de abril (Lei de Bases do Ambiente), e do Decreto-Lei n.o 251/87, de 24 de junho, que aprovou o primeiro Regulamento Geral sobre o Ruído. O Decreto-Lei n.o 292/2000, de 14 de novembro, que aprovou o Regime Legal sobre Poluição Sonora, revogou o referido decreto-lei de 1987 e reforçou a aplicação do princípio da prevenção em matéria de ruído.” (in Decreto-Lei n.o 9/2007, de 17 de janeiro).

No Regulamento Geral do Ruído, aprovado a 17 de janeiro de 2007 (Decreto-lei Nº9/2007), ruído de vizinhança é definido como “o ruído associado ao uso habitacional e às atividades que lhe são inerentes, produzido diretamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja suscetível de afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança” (cfr. artigo 3.º, alínea r, do Regulamento Geral do Ruído).

Como citado, este tipo de ruído pode ser produzido diretamente por alguém, por algum equipamento colocado à sua guarda ou por um animal sob sua responsabilidade. Como exemplo, temos os casos de ruídos produzidos por eletrodomésticos, animais domésticos, televisão ou música alta. Neste sentido, o ruído de vizinhança está associado às vivências dos habitantes em meios urbanos, espaços em que os emissores e os recetores têm alguma proximidade entre si.

A fiscalização do ruído de vizinhança é da competência das autoridades policiais, sendo que os serviços municipais têm deveres ao nível de fiscalização e encaminhamento de reclamações. Embora este tipo de ruído não esteja enquadrado por qualquer regime de licenciamento, como é o caso de obras ou eventos, o Regulamento Geral do Ruído estabelece que, entre as 23 e as 7 horas, as autoridades policiais “podem ordenar a adoção de medidas para a cessação da incomodidade produzida pelo ruído de vizinhança, de forma imediata ou em prazo a definir” (cfr. artigo 24.º, n.º 2, do Regulamento Geral do Ruído).

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dependem somente da aplicação legal do artigo 24º, mas que estão sujeitos tanto à categorização dos espaços urbanos em termos acústicos, como dos critérios de isolamento acústico dos edifícios20 que são licenciados pelos órgãos reguladores.

Houve algumas alterações da lei, após a revogação no ano de 2007, tal como a introdução de mapas de ruído, que são elaborados pelos serviços municipais e que tem o objetivo de retratar as diversas zonas de atividade ruidosa das cidades. Isso é feito segundo uma classificação das áreas urbanas, a qual distingue os espaços da cidade entre zonas sensíveis e zonas mistas. Tal como descrito no artigo 3º, alínea v; x , do Regulamento Geral do Ruído:

“v) «Zona mista» a área definida em plano municipal de ordenamento do território, cuja ocupação seja afeta a outros usos, existentes ou previstos, para além dos referidos na definição de zona sensível;

x) «Zona sensível» a área definida em plano municipal de ordenamento do território como vocacionada para uso habitacional, ou para escolas, hospitais ou similares, ou espaços de lazer, existentes ou previstos, podendo conter pequenas unidades de comércio e de serviços destinadas a servir a população local, tais como cafés e outros estabelecimentos de restauração, papelarias e outros estabelecimentos de comércio tradicional, sem funcionamento no período noturno;”

No caso da cidade de Lisboa, a Direção Municipal de Ambiente Urbano da Câmara Municipal de Lisboa (CML) é a principal entidade fiscalizadora de ruído. Em conversa com o Engenheiro António Cruz, responsável técnico do Laboratório de Acústica da CML, foram apontados alguns dos trabalhos executados por esta divisão. Esta entrevista teve como objetivo esclarecer as diversas responsabilidades desta entidade municipal, na fiscalização e regulação do ambiente sonoro, como também investigar que tipo de planos de redução de ruído estão sendo implementados pela Câmara Municipal de Lisboa.

Através da carta de ruído, que está em permanente atualização, a CML define os planos de redução de ruído que dependem da classificação das áreas analisadas. Na sua maioria, estes planos são implementados com o objetivo de combater o ruído rodoviário, uma das maiores fontes de poluição sonora. António Cruz referiu-se a certas soluções propostas pela CML, tal como a construção de barreiras acústicas nas vias de circulação de automóveis junto a áreas habitacionais, ou a criação de pavimentos drenantes, por terem maior absorção do atrito entre o pneu e a estrada.

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Mas as limitações de ruído dependem da definição da área em causa, ou seja, se tal área está classificada como zona mista ou zona sensível. De acordo com António Cruz:

“Em relação a Lisboa, optou-se por classificar todas as áreas como zonas mistas porque os critérios são muito rigorosos, o que depois obriga a que, quando os níveis sonoros ultrapassam estes valores, se faça a implementação de medidas minimizadoras de ruído. Mas como os níveis são muito apertados e as limitações são muito grandes, mais vale classificar como uma zona muito mais ampla em termos de classificação do que estar a classificar em zonas sensíveis, em que, por exemplo, no período noturno o limite é de 45 decibéis (db) e, durante o dia, 55db. São níveis muito baixos para uma cidade, e estar a fazer com que se cumpra estes níveis sonoros é muito complicado (...). É por isso que no início ainda tentámos classificar alguns espaços da cidade como zonas sensíveis, mas depois optou-se por classificar tudo como misto, em que os níveis sonoros são 65db no período diurno e 55db no período noturno.” 21

Exemplificando algumas zonas sensíveis, como é o caso das áreas adjacentes a hospitais, António Cruz referiu que é impensável essa classificação em Lisboa porque “as medidas mitigadoras são incomportáveis para o município”. Como medidas compensatórias foram introduzidas barreiras acústicas junto do tráfego rodoviário, por serem de relativa facilidade ao nível de implementação. No caso dos edifícios, são implementadas medidas como a instalação de fachadas de vidros duplos22.

Com cerca de quinze técnicos a trabalhar nesta divisão, a CML também faz medições de isolamento acústico, em todos os edifícios licenciados, de acordo com o Regulamento Acústico dos Edifícios. Porém, a CML de momento só emite licenças de construção, baseadas no projeto acústico do responsável da obra, não fazendo mais os testes obrigatórios após a construção do edifício. Tal como António Cruz refere:

“Normalmente quando se acaba a construção de um edifício há uma empresa que faz esses ensaios. Já existem muitas firmas acreditadas, e assim a CML separou-se um bocado dessa situação (...). Tem que haver um projeto acústico acompanhado de medições a dizer que

21 Entrevista concedida em junho de 2012.

22Esta medida, nas palavras de António Cruz, torna-se difícil de ser implementada devido aos elevados custos e também porque incomoda “as pessoas que querem ter a janela aberta e não estar enclausuradas numa gaiola”.

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estão ser cumpridos os requisitos, portanto a Câmara autoriza e emite essa licença baseando-se naquilo que o técnico (o responsável pela obra) indicou.”

Questionei a razão pela qual a Câmara Municipal não faz mais medições, apesar de emitir as licenças. A resposta foi de que, muitas vezes, os projetos eram desaprovados por falta de cumprimento dos requisitos estipulados pelo Regulamento Acústico dos Edifícios. Como exemplo, o engenheiro falou-me de alguns casos que presenciou na Parque Expo (situado na zona oriental de Lisboa):

“Fizemos algumas medições na zona da Expo. Nós íamos fazer medições de isolamento, e quase todas as que fazíamos não cumpriam os requisitos. Depois as pessoas questionavam o facto de a Câmara ter licenciado para depois chumbar o projeto. Agora a alteração da legislação imputa tudo para o técnico, ao assinar um termo de responsabilidade a dizer que o projeto cumpre os requisitos acústicos, e a Câmara só tem que aceitar. Não vamos andar a medir o isolamento de tudo o que é edifício em Lisboa, senão não fazemos mais nada. Numa situação pontual, quando havia uma reclamação depois do edifício já estar licenciado e habitado, nós íamos fazer a medição e quase sempre estava mal. (...) Ao fim e ao cabo, ao fazer o relatório estávamos a pôr em cheque a Câmara, ao dizer que aquilo estava mal, sendo que foi a Câmara que previamente licenciou.”

Com a recente alteração da lei, a responsabilidade recai sobre o técnico contratado pela empresa construtora, que no final das obras faz os ensaios para certificar se o isolamento acústico está a cumprir os requisitos. Neste sentido, António Cruz refere-se à negligência por parte dos construtores, que muitas vezes não obedecem ao projeto de isolamento acústico previsto e ao rigor exigido na implementação dos requisitos definidos na lei:

“Por exemplo, uma empresa constrói um prédio, contrata um técnico que desenha um projeto acústico, mas o dono da obra depois não contacta o técnico para acompanhar a obra (...). Se o técnico que fez o projeto não estiver a acompanhar minimamente a execução, as pessoas que estão a construir põem aquilo de qualquer maneira (...). O que está feito no projeto até pode estar bem feito, mas depois o que foi feito na obra, por vezes não tem nada a ver com o que está no projeto. Não podemos estar a imputar as culpas só ao projetistas: na maior parte das vezes a culpa é das empresas construtoras (...). Esse acompanhamento não acontece normalmente por questões financeiras.”

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António Cruz citou ainda outro exemplo, do conflito entre um empreiteiro e um morador na zona da Parque Expo. Após uma reclamação junto à CML, o projeto acústico deste edifício foi desaprovado pelos serviços municipais. A solução, proposta pelo dono da obra, passava por transferir o sujeito para outro apartamento. Se a população em geral tomasse conhecimento da lei, haveria edifícios suficientes e em condições para efetuar esta compensação, tal a relatada pelo António Cruz na zona da Parque Expo?

A entrevista permitiu entrever a existência de certo desalinhamento entre a construção civil e a própria CML, ao abrigo de uma legislação que dissemina as responsabilidades por todos os seus agentes, complexificando a análise de certos casos aos olhos da lei. O artigo 3º do Regulamento Geral do Ruído, referente ao ruído de vizinhança, é a “ponta do iceberg” de uma complexa legislação sobre o ruído, que se reflete desde a falta de cumprimento dos parâmetros de classificação das áreas urbanas por parte da CML, até à negligência da construção civil em relação aos critérios de isolamento acústico descritos na lei. O combate à poluição sonora por parte da Câmara Municipal de Lisboa, através da implementação de medidas mitigadoras de ruído, evidenciou o conformismo existente na lei perante este fenómeno. A criação de isolamentos mais eficazes contra o ruído não elimina um problema ambiental cada vez mais presente nas sociedades modernas: a evolução industrial e tecnológica da sociedade, traz consigo o ruído, como som do progresso, o que provoca impactos negativos diretos na qualidade de vida da população.

De acordo com Prochnik (2010), se analisarmos historicamente as lutas contra outros tipos de poluição, como é o caso da atmosférica, vemos que a regulamentação das emissões é constantemente atualizada, de acordo com os estudos científicos sobre os seus riscos para a saúde pública. No caso do ambiente sonoro não acontece o mesmo. Uma causa provável para esta negligência pode passar pelo facto de o ruído ser um fenómeno menos visível, comparado com o fumo, por exemplo, ou com a contaminação das águas por substâncias poluentes, tornando-se um problema menos discutido e rigoroso em sua legislação (Prochnik, 2010: 203-204). Mas em geral, os riscos de saúde provenientes, por exemplo, do ruído do tráfego rodoviário, são 40% maiores que os da poluição atmosférica, de acordo com um relatório de 2008 da

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Organização Mundial de Saúde23. Ao nível de saúde mental, o ruído é uma das maiores fontes de doenças psíquicas, causador de distúrbios como o stress, a ansiedade e até mesmo a violência entre indivíduos.

Sendo assim, estas problemáticas que estão a surgir no meio urbano acabam por refletir a leitura pouco adequada, por parte das entidades reguladoras, dos diferentes ambientes acústicos e sociais existentes nas grandes cidades. Tal como Schaffer propõe, parece ser no recurso de parâmetros de análise qualitativa que poderemos acrescentar uma melhor observação sobre estes fenómenos existentes na nossa sociedade.

23 Em 2009 a OMS lançou inúmeros relatórios que relacionam o som do tráfego rodoviário com complicações ao nível do sistema cardiovascular, especialmente nas populações que habitam perto de grandes vias de circulação de automóveis.

Referências

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