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Parte 2: Comunidades Acústicas

2.1. Entre Milho Verde e Belo Horizonte

2.1.2. Subúrbios acústicos

Relativamente a estes acontecimentos que vivi em Milho Verde, li depois uma notícia no Estado de Minas sobre o Bairro de Lourdes, que se situa na região sul de Belo Horizonte:

“Imagine você ser multado pela associação do bairro onde mora porque a festa de aniversário que ocorria numa área externa do seu prédio ultrapassou o horário das 23h. Pois saiba que em nome da preservação do silêncio e da conservação das características de alguns bairros tradicionais de Belo Horizonte, moradores tentam emplacar normas mais rígidas, como essa, para modificar a Lei de Uso e Ocupação do Solo e criar áreas de diretrizes especiais (ADE25) – locais onde a concessão de alvarás e a implantação de atividades seguem restrições e necessitam do crivo de órgãos de controle da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).”26

Este projeto de lei, apresentado pelo vereador Daniel Nepomuceno, poderá dar legitimidade aos moradores de Lourdes para autuar pessoas que frequentem este bairro como também a restaurantes com mesas nas calçadas ou mesmo aqueles que promovam confraternizações nos prédios. A proposta determina ainda que os estabelecimentos comerciais deverão ter projetos acústicos aprovados pela Prefeitura de Belo Horizonte, filtragem de fontes de odores fortes e a obrigação de promover campanhas educativas para que os clientes não façam ruídos muito altos ao chegar ou deixar os bares e as casas noturnas. Uma das vozes contrárias vem do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) ao considerar “temeroso criar ADE desnecessárias em algumas áreas da capital, principalmente porque isso impediria a vocação progressista de certas regiões e o desenvolvimento da própria cidade”.

Pessoalmente, num primeiro momento, achei este projeto de lei interessante, por localizar no próprio bairro as decisões da comunidade através de critérios

25 As áreas de diretrizes especiais (ADEs), previstas na Lei de Uso e Ocupação do Solo (7.166/1996) são regiões que têm regras diferenciadas na tentativa de preservá-las como referência (seja ambiental, cultural ou patrimonial) para a população. Nesses espaços, as regras de urbanização – como altura das edificações e taxa de ocupação dos terrenos – devem ser iguais ou mais restritivas que os da zona em que se localizam. Empreendimentos nessas áreas devem passar pela aprovação do Conselho Municipal de Meio Ambiente (Copam) e pelo Conselho Municipal de Política Urbana (Compur).

26 Http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/06/01/interna_gerais,397692/associacao-de- moradores-quer-emplacar-lei-autorizando-vizinhos-a-multar.shtml

discutidos pelas associações de moradores, tal como aconteceu com a comunidade de Milho Verde. Com esta nova possibilidade de ação comunitária, o bairro poderia ser construído envolto do diálogo entre os seus moradores.

Porém, ao ser um bairro constituído maioritariamente por pessoas de classe alta e média alta, ponderei que leis como esta podem, tal como argumenta Richard Sennet, favorecer o aparecimento de comunidades purificadas. No livro Uses of Disorder, Sennet refere que os indivíduos que vivem em ambientes controlados, tal como identificou nos bairros suburbanos de classe média nos Estados Unidos, criam “identidades purificadas” devido à tentativa de construção de uma imagem que seja coerente, que unifique e que filtre todas as ameaças existentes na experiência social (Sennet, 1970: 9). Para ele, a história do desenvolvimento das zonas suburbanas demonstra como estes fatores, nomeadamente a preservação do silêncio como catalisador do espaço físico, influenciaram os projetos urbanísticos e as dinâmicas sociais destes espaços.

Nos anos cinquenta, particularmente nos Estados Unidos da América, houve um crescente desenvolvimento habitacional nos subúrbios das grandes cidades, com a construção de grandes espaços de lazer, centros comerciais e habitações espaçadas entre si, ou seja, tudo o que potenciasse a criação de um ambiente de separação e autonomia (Labelle, 2010). Este tipo de planeamento urbanístico permitiu a existência de um distanciamento para com o meio laboral dos centros urbanos, oferecendo aos seus habitantes a oportunidade de terem uma atmosfera sociável, mas ao mesmo tempo eliminando a experiência social que as cidades proporcionam. Neste sentido, os subúrbios podem ser vistos como uma tentativa reacionária de controlar e limitar as dinâmicas do urbanismo (Labelle, 2010: 54-55). Naturalmente nas cidades, o indivíduo está imerso em situações de negociação social, que derivam da partilha de espaços comuns por pessoas de classes sociais, hábitos, crenças e mesmo origens ou culturas diferentes. Este contato com a diferença e com a alteridade desafia os sujeitos a deslocarem-se do seu lugar de conforto para lidar com outros modos de vida diversos, o que é menos provável de ocorrer em locais onde se instalam grupos sociais mais homogéneos e a convivência fica restrita a pessoas com hábitos semelhantes.

O subúrbio tenta gerir o inesperado. Com base na noção de “vida em comunidade”, estes bairros começaram a surgir para dar às pessoas um espaço de livre expressão dos seus valores comuns. Recorrendo a estratégias provenientes do

design e da arquitetura, estes bairros foram criados com o objetivo de controlar e estabilizar desta forma a experiência social de quem neles habita.

Dolores Hayden em “Building Suburbia” documenta como o planeamento nos subúrbios na América do pós-guerra teve uma divisão ideológica implícita:

“Os subúrbios do pós guerra foram construídos a uma grande velocidade, mas foram planeados para maximizar o consumo de bens produzidos em massa e minimizar a responsabilidade dos planeadores em criar espaços e serviços públicos” (Hayden, 2004:128 in Labelle, 2010: 59).

Nesta época, os projetos públicos de habitação nos Estados Unidos passaram a distinguir entre o que era a preocupação em dar aos cidadãos habitações facilitadas pelo Estado e o que eram os interesses privados ao nível do planeamento urbanístico, fazendo emergir um debate sobre gestão comunitária, barreiras sociais e práticas discriminatórias existentes na época. Com poder de investimento, os planeadores e investidores privados ganharam força, deixando as comunidades mais desfavorecidas dependentes do investimento estatal. Neste sentido, deu-se uma nova configuração urbana, entre habitação pública e desenvolvimento privado (idem: 59). As noções de comunidade mudaram em grande parte, ao serem privatizados espaços físicos e imaginários destinados a determinados tipos de pessoas e classes sociais. Fazendo isto, também se delimitaram as fronteiras da expressão “pública”, o que, a nível acústico, pôde ser observado a partir do controlo do ruído de vizinhança.

Progressivamente, os subúrbios começaram a tornar-se espaços uniformes tanto a nível arquitetónico como social, de forma a criar ambientes controlados e seguros. As “loud party calls”, nome dado pela polícia americana às festas promovidas pelas gerações mais jovens que habitavam estas áreas, liderando as queixas de ruído nos bairros suburbanos. Tal como LaBelle argumenta:

“O adolescente no subúrbio pode ser contemplado como uma figura performativa: enquanto o subúrbio atende a uma visão particularmente adulta de comunidade, o adolescente é levado a ocupar uma zona sobrada, onde o tédio é frequentemente abundante” (Labelle, 2010: 58).

Nos subúrbios, os adolescentes interferem com as suas dinâmicas no núcleo destes espaços imaginários estáveis. Na procura das expressões facilmente encontradas no meio urbano, o jovem suburbano entra em conflito com a visão purificada de comunidade existente no subúrbio (Labelle, 2010: 58). De acordo com Sennet, o subúrbio age como uma barreira física e psicológica, procurando opor-se ou resistir a tudo o que possa infringir esse bem comum “purificado”, isto é, os valores compartilhados por um grupo social homogéneo que ali habita. Por outras palavras, o subúrbio subscreve a noção de comunidade de acordo com o sentimento de “semelhança” entre sujeitos:

“O medo pela riqueza da sociedade urbana prevalece nos subúrbios pós-industriais das classes médias, e a família torna-se o lugar de refúgio onde os pais protegem as suas crianças e a eles mesmos da cidade”. (Sennet,1970:72).

Sennet reforça que estas condições levantam um modelo problemático de vida comunitária. Ao eliminar as experiências do diferente, o modelo suburbano retira oportunidades para uma apreciação mais ampla de outras formas de viver em sociedade. Os indivíduos nos subúrbios “ganham uma nova perceção de coletivismo, de possuírem uma identidade comunitária, mas esta noção de coesão social cultivada por estas pessoas é a mesma que elas querem evitar” (Sennet, 1970: xii).

Sennet argumenta que é a partir daqui que se forma uma nova “ética puritana”. O indivíduo retrata em si mesmo a crença de coesão emocional e de valores partilhados entre si, mas que nada tem a ver com a sua experiência no local, ao criar- se uma imagem falsa de comunidade que rejeita e filtra tudo o que é diferente desse sentimento de coesão.

Neste tipo de comunidades, especialmente nos espaços suburbanos de classe média alta, a abundância material providencia o poder de reforçar o “mito de coesão da vida comunitária” (Sennet,1970). Pelo facto de haver recursos financeiros e materiais para controlar os limites e sua composição interna, a necessidade de partilha ou de dependência mútua entre as pessoas para sobreviver não é mais a força que conduz a comunidade, tendo em conta que o próprio indivíduo se submete a um autonomismo isolado (idem: 47-49). Esta experiência purificada do “nós” leva à ilusão de conhecermos o outro, por ele ser aparentemente semelhante a nós mesmos,

sociais destas dinâmicas podem levar a um progressivo desinteresse de participação na vida comunitária, já que a existência de confrontos entre grupos de pessoas é mínima e que os indivíduos considerados desviantes são reprimidos por estarem em dissonância com a imagem coesa do “nós” (idem: 39).

A regulação e delimitação do ambiente nos subúrbios, como sistema separado e internamente homogéneo, propicia o desejo de experiências purificadas, impulsionado pelo receio destes indivíduos de viverem num mundo que não conseguem controlar. Neste sentido, as famílias suburbanas começam a restringir experiências sociais que lhes são desconhecidas ou dolorosas, a partir do valor moral que estas comunidades legitimam. Esta redução da experiência, pela separação entre o que é o espaço íntimo e o que é o espaço do mundo, inevitavelmente leva à ansiedade de interagir com o que rodeia (idem: 71-72).

O silêncio e o ruído nos espaços urbanos definem a fronteira entre o espaço interior doméstico e o espaço exterior. Neste sentido, o aspeto ético e espacial destes dois fluxos integram-se na base de construção de uma dada comunidade ou na definição de uma lei. Tal como Sennet argumenta, no subúrbio o silêncio circula para apoiar o desenvolvimento de uma “comunidade positiva”, assegurando não só o sossego mas também para se opor à influência que o ruído pode criar.

Os vários debates em torno da poluição sonora e dos padrões de saúde pública vêm demonstrar certos regimes morais que localizam as expressões desviantes como “fora do lugar”. A projeção de bairros sossegados, enquanto projeto cívico, posiciona parcialmente o ruído no lado da violação, conotando atos de expressão diferenciados como distúrbio ou excesso auditivo. Ao nível do pensamento urbanístico moderno o silêncio potenciou o sossego e a estabilidade social, mas paradoxalmente forneceu mecanismos de valores sociais de controlo e constrangimento (idem: 64). No caso do bairro de Lourdes, as associações de moradores ganharam algum poder de decisão dentro do bairro, através de uma maior autonomia sobre a Prefeitura de Belo Horizonte. Em todo o caso, existe a voz dos donos dos restaurantes, do “dj do volante”, e de todos os indivíduos que de uma forma ou de outra não têm a mesma opinião entre si, mas o mesmo direito de coabitarem esse bairro.

Mas o ruído não é só um distúrbio ambiental e social. Ao invés, pode vir a providenciar uma experiência fulcral para o estabelecimento de uma “comunidade acústica” que está sendo continuamente elaborada. O termo “acústico” aqui deveria ser enfatizado não só como sons que circulam numa situação particular, mas mais

importante como uma relação de troca, onde o som também é uma voz, diálogo, partilha e confrontação. Apesar de o ruído ser ouvido como um ato de irresponsabilidade por parte dos outros, este também pode fornecer um encontro rico na criação de responsabilidade, ao proporcionar a oportunidade para conhecer o que é diferente (Labelle, 2010).

Tal como LaBelle argumenta, eu penso que é na observação da amplitude de um dado ambiente sonoro que realmente conseguimos entender a importância do que é o silêncio enquanto motor de espaços sossegados, como também do próprio ruído enquanto reflexo das dinâmicas sociais de um lugar, que são indispensáveis para um maior entendimento do espaço em que vivemos e dos sujeitos que habitam num mesmo ambiente comunitário. Nesta perspetiva, somente na contínua negociação entre sujeitos, através das dinâmicas que emergem dos choques sociais e culturais entre pessoas de uma mesma comunidade, é que poderá ser possível o desenvolvimento de um ambiente que promova a responsabilidade local. Referindo as palavras de Sennet, “se os indivíduos continuarem a acreditar que a hostilidade entre grupos deveria ser silenciada e não encorajada pela sua expressão social, as cidades vão continuar a ruir, por não haver nada que faça a mediação dessa hostilidade ou que force as pessoas a olharem para além das imagens que projetam do outro” (Sennet, 1970: 147). Por outras palavras, as verdadeiras “comunidades“ somente nascem das experiências e confrontos entre sujeitos. Para Sennet, as comunidades que “ao invés impõem limites ou que limpam qualquer oportunidade de interação, solidificam em formas vazias de grupos de semelhança27” (Sennet, 1970:idem). Como contramedida, Sennet encontra um valor produtivo na desordem, ou seja, em vez de se procurar o comum a partir das formas semelhantes, o desordenamento do impacto das diferenças sociais pode garantir a configuração e uma contínua modelação das relações entre os sujeitos. A partir desta perspetiva é possível questionarmos se o ruído, ao ser considerado um som “desviante” e que não deveria acontecer num certo ambiente

27 Li recentemente no Estado de Minas ( 2 de outubro de 2013) outro artigo relacionado com o Lourdes sobre o diálogo entre habitantes deste bairro, neste caso sobre a estratégia criada entre moradores e comerciantes para os mendigos que frequentam este bairro. Tal como descrito na notícia, “comerciantes e moradores do Bairro de Lourdes, Centro-Sul de BH, decidiram firmar um pacto para evitar a presença de mendigos. A orientação é não dar dinheiro, agasalhos e alimentos, mesmo os que estiverem com prazo de validade quase vencido. Na Praça Marília de Dirceu, foram instalados mais esguichos de água no jardim, e o jardineiro é orientado a ligá-los para espantar moradores de rua que se

social, no final de contas não é, tal como argumenta La Belle, um fluxo ”produtivo de partilha ao nível comunitário?” (Labelle, 2010: 61)

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