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Simetria intervalar e o temperamento igual da coleção cromática

ANEXO I – Lista de classes de conjunto proposta por Larry Solomon (2005) 289 I – Partitura Choros nº4

1.2. Simetria intervalar e o temperamento igual da coleção cromática

Tratando de um assunto tão amplo e complexo, direcionamos nosso estudo principalmente para o parâmetro de simetria entre relações intervalares de alturas, que chamaremos de simetria intervalar19. É um conceito também

extenso que ganhou destaque no contexto musical do século XX, sendo tratado de diversas formas dentre as principais escolas de composição da época, polarizadas principalmente entre o cromatismo expressionista alemão e o diatonismo nacionalista franco-russo. Analisaremos mais detidamente sobre essa segunda abordagem artística.

A simetria intervalar surge concomitante ao outro conceito relevante na história da música polifônica ocidental: o temperamento igual entre todas as alturas da coleção cromática, que aparece em esboço já no século XVI, mas somente ganha plenitude no final do século XIX. Antes da aceitação do temperamento regular como fator de mensuração entre as alturas da coleção cromática, não havia um consenso unanime sobre qual a referência de divisão escalar e de afinação dos instrumentos musicais eram os mais satisfatórios. Por

19 Vale destacar que a simetria também é aplicável a parâmetros rítmicos e texturais (e não faltariam exemplos musicais para demonstrar essa afirmação), no entanto, abordamos apenas aos aspectos simétricos intervalares, considerando os limites dessa dissertação.

conta disso, um grande impasse deteve o uso pleno de processos de modulação e transposição; cada tonalidade em geral mantinha características muito distintas uma em relação às outras, o que limitava muito o trânsito para tonalidades mais distantes (ROEDERER, 2002: 250-52).

A primeira tentativa promissora em direção a um sistema equilibrado entre todos os intervalos de alturas foi a “escala pitagórica”. Esta estrutura foi construída a partir de uma sucessão de intervalos das chamadas consonâncias perfeitas, a quarta e a quinta justa (ciclos intervalares20 de cinco semitons (C5))

(ROEDERER, 2002: 250-51). No entanto, esta “escala” ainda apresentou pequenas deformidades na distribuição proporcional da dimensão intervalar do semitom entre todas as alturas cromáticas, o que impôs “restrições muito sérias de transposição e modulação” (ROEDERER, 2002: 252).

O temperamento igual trouxe uma solução eficaz para essa tomada da unidade semitonal uniforme, mas levantou também alguns questionamentos, que ainda hoje geram discussões sobre o uso deste procedimento. O principal deles é a leve “desafinação” das quartas e quintas justas, que até então eram ajustadas segundo padrões intervalares de combinação total entre seus parciais. Supondo um sistema musical de intervalos baseados a partir destas “consonâncias” plenas entre as frequências sonoras de cada altura, é obviamente estranho um procedimento que “desafina” todas as classes de altura em prol de uma distribuição proporcional dos semitons na coleção cromática. Já de início podemos levantar a hipótese de uma música até então fundamentada exclusivamente em princípios psicoacústicos de consonância e dissonância, caminhando agora para referências escalares baseadas na proporcionalidade de mensuração entre intervalos de semitons. O próprio sistema de modulação e transposição, que introduziu um amplo campo de recursos composicionais para a expansão da prática da música tonal, trazia implícito em si também o elemento que a sucederia: a simetria intervalar. Este procedimento de busca por proporções regulares entre intervalos de alturas chega ao seu ápice no início do século XX, tanto na música pós-tonal serialista alemã quanto no neoclassicismo. A simetria intervalar, que nasceu subordinada a efeitos psicoacústicos de concordância entre diferentes espectros sonoros, aos poucos vai ganhando

autonomia e prospera como recurso composicional protagonista em obras de compositores como Schoenberg, Debussy e Stravinsky, e como veremos a seguir, também em Villa-Lobos.

***

A modulação, que ganha espaço no final do período barroco, traz em sua superfície musical a simetria intervalar mais imediatamente reconhecível auditivamente: a simetria intervalar por translação. Exemplos ainda mais remotos podem ser também considerados, como as formas imitativas do moteto renascentista. Mas um compositor que nos chamou muito a atenção pelo uso de padrões intervalares simétricos foi Johann Sebastian Bach (1685-1750). Obras suas como as fugas utilizam plenamente a simetria intervalar por translação ao desenvolverem reiterações melódicas integrais e transposições de temas originais. No entanto, outro procedimento salta aos nossos olhos, o uso de simetria intervalar por reflexão que aparece em processos de inversão e retrogradação de motivos melódicos. Bach também explorou satisfatoriamente a simetria intervalar por reflexão conforme verificou Oliveira (2007: 29-30) no Cânone a 2 “Quaerendo invenietis”, da das Musicalisches Opfer (Oferenda Musical) BWV 1079 (Fig.1 - 4).

Fig.1 - 4: Cânone a 2 “Quaerendo invenietis”, da das Musicalisches Opfer (Oferenda Musical)

BWV 1079 de J. S. Bach (OLIVEIRA, 2007: 29 e 30)

O autor verifica em Bach a construção de um cânone por inversão, em que “a linha melódica inferior inverte rigorosamente todos os intervalos entre as notas da linha superior, invertendo também seu contorno melódico” (OLIVEIRA, 2007: 29). Oliveira demonstra como todas as classes de altura estão organizadas em pares que se alinham simetricamente por reflexão a partir de intervalos proporcionais em torno da altura Sol (Fig.1 - 5 e Fig.1 - 6).

Fig.1 - 5: “a linha melódica inferior inverte rigorosamente todos os intervalos entre as notas da

Fig.1 - 6: simetria intervalar por reflexão em torno de Sol

Considerando a releitura de procedimentos composicionais pré-clássicos por parte dos vanguardistas do início do século XX, e estes percebendo a inerência de disposições intervalares simétricas entre alturas das coleções diatônicas e similares, podemos supor que o ponto de partida para o credenciamento da simetria intervalar no idioma da música pós-tonal já estava latente dentro do próprio contexto tonal que alimentava a música tradicional.

A partir dessas premissas, iniciaremos nossa investigação minuciosa das possibilidades de reconhecimento e métodos de aplicação da simetria intervalar na obra de Villa-Lobos, considerando suas duas tipologias já mencionadas: translação e reflexão.

Vale ressaltar aqui que a princípio supomos o uso da simetria na obra de Villa-Lobos como um ponto de chegada, onde tudo se convergisse a fim de um total equilíbrio e perfeita proporção. Imaginamos um momento estanque onde todos os procedimentos composicionais aplicados se justificariam, mas, ao mesmo tempo, poderia ser um redil de limitação às manobras efetuadas pelo compositor de modo a gerar fluxo e movimento à obra, problemática que inevitavelmente lega à simetria um caráter estático e monótono.

No entanto, ao analisar as obras de Villa-Lobos nos surpreendeu muito encontrar um compositor que tratou a simetria não apenas como um ponto de chegada, mas também como um ponto de partida. O músico evita ir exclusivamente em direção ao equilíbrio pleno de uma única proporção, a simetria total como um fim. Pareceu-nos evidente que Villa-Lobos também recorre às simetrias menores (justapostas ou concomitantes) e momentâneas, que logo deixam de existir, dando espaço para construções assimétricas que desembocaram em outras proporcionalidades. O compositor procura afastar a

simetria de um possível engessamento estático e a coloca em pleno movimento, como ferramenta de apoio na construção do fluxo discursivo das obras, dialogando vigorosamente com o dinamismo transformador proporcionado pelos efeitos assimétricos.