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CAPÍTULO 1. REALIDADE DO NEGRO NO BRASIL

1.5. Situação socioeconômica do afrodescendente no Brasil

Uma vez compreendido o processo de formação do contingente da população afrodescendente em termos quantitativos, o segundo passo foi avaliar o papel dos negros na sociedade brasileira. Se para a análise quantitativa, ou seja, sob o ponto de vista da representatividade, dados numéricos e estatísticos são suicientes, para o estudo da representação do negro nos quadrinhos é preciso recorrer a um referencial teórico mais analítico. Mais uma vez, não houve a intenção de esgotar todas as situações possíveis, mas deinir um panorama geral que pudesse ser abrangente o suiciente para que fosse representativo dos papéis exercidos pelos negros. A intenção foi compreender como tais papéis

inluenciaram na construção da imagem dos negros nos quadrinhos. Para um melhor entendimento de como os afro-brasileiros ocuparam seus espaços dentro da sociedade brasileira antes e após a abolição da escravidão, recorreu-se a duas obras que defendem pontos de vistas opostos. Uma é Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre (1950) cuja primeira edição data de 1933. A outra é A integração

do negro na sociedade de classe, de Florestan Fernandes (2008) publicado

originalmente em 1964. A partir da confrontação da análise que esses dois autores izeram de fenômenos correlacionados, foi possível uma compreensão mais abalizada da participação dos afro-brasileiros na formação da sociedade.

Para os aspectos históricos recorreu-se uma vez mais a Domingues (2003), Matoso (2003), Luna e Klein (2010).

Desde que começaram a ser trazidos para o Brasil, os negros tiveram sonegados direitos comuns dos cidadãos. E mesmo para os que conseguiam a alforria, leis locais e metropolitanas se estendiam contra os direitos das pessoas livres de cor. Eram proibidos de exercer cargos públicos até mesmo na administração municipal, embora nas áreas de mineração essa regra não fosse aplicada com rigor. Existiam leis que chegavam a proibir às mulheres de cor usar roupas e joias como as ostentadas pelas mulheres brancas. Por muitos anos, a punição era diferente conforme o criminoso fosse branco ou negro alforriado para delitos de gravidade equivalente. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 273)

O acesso dos escravos à educação escolar foi totalmente proibido no Brasil e mesmo os libertos não tinham direito de frequentar aulas. (MATTOSO, 2003, p. 113)

Mesmo após o im do domínio português no Brasil, em 1822, as políticas públicas continuavam norteadas pelo viés discriminatório. Em 5 de dezembro de 1824, a Constituição brasileira, em lei complementar, proibia o negro e o leproso de frequentarem escolas. (DOMINGUES, 2004, p. 31)

Tal proibição foi mantida durante toda a época da escravidão e persistiu até a segunda metade do século XIX, em plena desagregação do sistema servil. As pessoas que eventualmente resolvessem ensinar a leitura e a escrita a escravos podiam ser punidas por transgredir a lei. Matoso atribui a isso fato de o escravo brasileiro não ter deixado

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testemunhos escritos por escravos relatando sua condição.

Mesmo com a promulgação do decreto 1.331A de 17 de fevereiro de 1854 que instituía a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de sete anos e a gratuidade das escolas primárias e secundárias da Corte, os negros foram discriminados, pois trazia duas ressalvas: nas escolas públicas não seriam admitidas crianças com moléstias contagiosas e nem escravas e não havia previsão de instrução para adultos. Essa reforma educacional, portanto, já previa mecanismos de exclusão dos negros escravos, adultos e crianças (SILVA; ARAÚJO, 2005, p. 68)

Além disso, é importante, nesse sentido, lembrar-se da resolução promulgada em 14 de dezembro de 1890, pelo então presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, Ruy Barbosa, mandando destruir os vestígios da escravidão pela queima de todos os papéis e livros que atestavam a presença do “elemento servil”. Tal ato, longe de redimir o país da violência praticada contra os escravos, legitima uma “atitude tão violenta quanto a escravidão” (FONSECA, 2006, p. 97)

Supôs-se de início que os ibéricos, mais preocupados com questões de economia, simplesmente libertassem seus escravos velhos e doentes. Entretanto, isso não é verdade. Todos os estudos de grandes amostras de registros de alforrias do Brasil – e nesse tema ele é o país mais bem estudado – mostram que, de modo geral, as pessoas alforriadas eram sobretudo jovens, crioulas e majoritariamente do sexo feminino; o subconjunto dos que compraram a própria liberdade continha maior parcela de homens e africanos do que dos que foram alforriados gratuitamente. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 275)

Uma vez alforriados, os ex-escravos ingressavam no mais baixo estrato da sociedade. Até os cativos com ocupação especializada entravam na população livre com suas economias esgotadas pela transação da autocompra. Em geral essas mesmas pessoas compravam a liberdade de seu cônjuge e ilhos, e com isso hipotecavam economias futuras no processo e manumissão. Apenas em raros casos os senhor garantia aos ilhos de seu ex-cativo alguma renda e apoio na vida de liberto. Essa pobreza generalizada é a razão por que as pessoas livres de cor no Brasil, assim como em todas as sociedades americanas, tipicamente apresentaram as mais altas taxas de mortalidade e doenças entre as populações livres. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 289)

A cor eliminava as chances do negro de participar do processo seletivo de algumas empresas, isto é, impedia o negro de se candidatar a uma vaga. Ele tentava superar a barreira de uma política de marginalização racial. A rejeição do negro no mercado de trabalho formal não estava fundada, muitas vezes, em critérios técnicos, mas basicamente em critério racial. (DOMINGUES, 2004, p.128)

Todas essas medidas oiciais ajudam a reforçar a impressão de que os afro-brasileiros só tiveram restrições e seu papel na formação da sociedade foi totalmente nulo. Contra essa noção, Freyre (1950) dedica o segundo volume inteiro de sua extensa e famosa obra.

Ao descrever os colonizadores portugueses (FREYRE, 1950, p. 101) airma que estes estavam mais habituados ao calor do que os europeus do norte e se adaptaram bem ao Brasil, característica que facilitou a ocorrência de um processo de hibridização que superou a diiculdade do clima.

A sociedade colonial brasileira, notadamente na Bahia e em Pernambuco desenvolveu-se patriarcal e aristocrática, à sombra das grandes plantações de açúcar (FREYRE, 1950, p. 115) e foi a família e não o Estado nem o indivíduo ou uma corporação, o grande fator colonizador no Brasil. (FREYRE, 1950, p. 117). Por esse motivo, Freyre dedica boa parte de sua obra a analisar as relações no âmbito das famílias de proprietários rurais, os senhores de engenhos, e o trânsito entre a casa sede da propriedade e o galpão onde os negros tinham como habitação.

No norte do país, o colonizador foi senhor de terras mais vasta e de dono de homens mais numerosos que em qualquer outra parte da América e, sendo essencialmente plebeu, criou para si uma espécie de aristocracia ao fundar o que Freyre chama de “a maior civilização moderna dos trópicos”. (FREYRE, 1950, p. 357)

Segundo Freyre, os portugueses não tinham um sentimento ou sequer uma consciência de superioridade de raça, comum entre os colonizadores ingleses. Em vez disso, apoiou-se na pureza da fé. Portanto era mais grave ser um herege do que pertencer a outra raça.

Freyre relativiza a crueldade do sistema escravocrata e, de certa forma, até defende que os portugueses o tivessem adotado com tanta disposição. Para o sociólogo, “seria injusto acusar o português de

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grandiosa de colonização tropical. O meio e a circunstância exigiram o escravo”. (FREYRE, 1950, p. 436).

Segundo a visão de Freyre não havia alternativa para se colonizar terras tão vastas e comenta que devido à comprovada eicácia e superioridade do método usado no Brasil, cogitava-se em adotá-los nas demais colônias portuguesas.

No decorrer dos capítulos citados, Freyre cita como as escravas negras cumpriram diversos papéis sexuais como objetos em que os senhores de engenho saciavam seus desejos e os ilhos dos patrões tinham sua iniciação, criando um ambiente de promiscuidade em que o sexo era o fator de “integração” entre os da casa grande e os da senzala. Fazer sexo com o maior número possível de negras tinha, inclusive, a inalidade econômica de gerar mais ilhos e aumentar o plantel de escravos de sua propriedade.

Por outro lado, Freyre defende que essa convivência foi responsável por criar laços de intimidade que ultrapassavam o mero contato sexual. Muitas escravas serviam de esposas, ainda que ilegítimas, para uma população em que os homens eram maioria. Os ilhos das donas da casa grande eram criados e amamentados pelas negras domésticas. Para essa lide eram selecionadas as mais bonitas e de índole mais gentil e Freyre cita até as etnias preferidas por terem tais características.

Ressalta ainda que o Brasil não se restringiu a importar da África mão de obra para o trabalho nos cafezais e canaviais. “Vieram da África, ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher; técnicos para as minas; artíices em ferro; negro entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres; sacerdotes e tiradores de reza maometanos”. Os pretos também foram os músicos da época colonial e período imperial e desempenharam funções como acrobatas de circo, dentistas, barbeiros e até mestres de meninos (FREYRE, 1950, p. 680).

Nos comentários à sexualidade dos negros que, segundo Freyre, seria exacerbada, ele defende que não era o negro um libertino, mas o negro escravo a serviço do interesse econômico e da volúpia dos senhores. (FREYRE, 1950, p. 534)

Em diversos pontos do texto o autor pontua a tolerância de parte a parte nas relações de convívio. Para o estudioso, até a proximidade de Bahia e Pernambuco da Costa africana para dar um caráter “todo

especial de intimidade”. “Uma intimidade mais fraternal que com as colônias inglesas”. (FREYRE, 1950, p. 527). Mais adiante, airma que graças ao cristianismo mais permissivo, que tolerava santos negros e participação dos cativos nos cultos, houve uma profunda confraternização de valores e sentimentos entre brancos e negros (FREYRE, 1950, p. 596).

Essa visão atenuada de como ocorreu o processo de formação da sociedade rural brasileira acabou por disseminar uma noção de que teria acontecido sem conlitos ou maiores resistências, com acomodação de todas as partes envolvidas, incluídos aí os indígenas, a quem Freyre também dedica parte do seu livro. No interesse de preservar essa visão otimisma e positiva, ela foi incentivada pelo próprio Estado a quem era fundamental manter a imagem de uma nação forte, íntegra e sem litígios ou preconceitos. Defendia-se, então, que o Brasil era uma verdadeira democracia racial.

Segundo Guimarães (2002, p. 138) essa expressão teria sido cunhada pelo francês Roger Bastide, em artigo publicado no jornal Diário de S. Paulo, de 31 de março de 1944, como uma tradução livre das ideias de Gilberto Freyre sobre a democracia brasileira.

A ideia de que o Brasil era um país sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a quaisquer cargos ou posições elevadas em prestígio e riqueza, chegou a ser disseminada nos Estados Unidos e Europa. Isso alimentou uma construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. (GUIMARÃES, 2002, p. 138)

O autor que mais contribuiu para derrubar o mito da democracia racial foi o sociólogo Florestan Fernandes. Em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, ele demonstra a fragilidade do conceito apresentando a situação dos afrodescendentes após a abolição da escravidão.

Se para Freyre os negros já estavam incorporados à família dos senhores de engenho por laços de sexo e convivência. Fernandes não considera as coisas dessa forma. Para ele, a integração dos negros não deu de forma tão tranquila nem sem conlito. Em primeiro lugar, a abolição teria chegado em um momento em que, ao contrário do que se poderia imaginar, muitos donos de terras seriam beneiciados, pois

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aos remanescentes da escravidão” (FERNANDES, 2008, p. 31).

Expulsos das fazendas onde foram substituídos por levas de trabalhadores trazidos da Europa e Oriente, os antigos escravos se deslocavam para os centros urbanos em busca de oportunidades de sobrevivência.

Com o aluxo de mão de obra europeia cada vez em maior quantidade, os antigos escravos sofreram uma concorrência que lhes foi muito prejudicial, pois nas funções em que poderiam se empregar como trabalhadores remunerados, era dada preferência ao imigrante, principalmente o italiano que se sujeitava a executar tarefas consideradas degradantes como engraxar sapatos e vender jornais. Dessa forma, acabaram sendo “eliminados das posições que ocupavam no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio de miudezas e serviços” (FERNANDES, 2008, p. 41).

Fernandes é enfático ao airmar que “para a análise da posição do negro e do mulato na ordem econômica e social emergente, é fato que eles foram excluídos , como categoria social, das tendências modernas de expansão do capitalismo em São Paulo” (FERNANDES, 2008, p. 72).

A preferência pelos imigrantes criou uma situação paradoxal em que “o ‘estranho’ se sentia mais em sua casa do que os naturais do país” (FERNANDES, 2008, p. 149).

Para o sociólogo a condição de exclusão do negro teve impacto em vários aspectos entre os quais a desagregação e desestruturação familiar, a opção pela criminalidade e até o alcoolismo. Fernandes conclui que o homem de cor se viu impotente diante de formas sociais que não sabia reconhecer, explicar e, de portanto, se submeter.

Em capítulo em que trata especiicamente do mito da democracia racial, Fernandes (2008, p. 304) questiona a ideia de que o padrão de relações ente brancos e negros vigente na época da escravidão pudesse se conformar aos fundamentos ético-jurídicos do regime republicano. O mito teria sido construído aos poucos, pela interpretação de que a escravidão brasileira tinha uma forma suave e humana, mas, embora não existissem mecanismos explícitos que conigurassem nitidamente obstáculos à ascensão social dos negros, as barreiras não visíveis e não declaradas, serviam sempre ao propósito da manutenção das condições de superioridade dos brancos.