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SITUAÇÕES JURÍDICAS ABRANGIDAS PELO ABUSO DO DIREITO

No documento A autonomia do abuso do direito (páginas 75-80)

4 A CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO DO DIREITO

4.2 SITUAÇÕES JURÍDICAS ABRANGIDAS PELO ABUSO DO DIREITO

A visão constitucional do direito civil identifica no abuso do direito um distanciamento entre o exercício do direito e o valor que o ordenamento jurídico pretende salvaguardar.

No Brasil, desde que se deu a socialização do direito através da promulgação da Carta Magna de 1988, bem como a partir do momento em que se consolidou a ideia de que o direito não pode ser considerado de forma isolada sem que se tenha em conta a sua finalidade, entendeu-se que a qualificação do abuso não poderia se restringir à estrutura formal do direito.

Ocorre que a violação à estrutura formal do direito aponta para a ocorrência de ato ilícito. Não é esta a localização do abuso, como se defende neste trabalho, mas sim na esfera axiológica, no valor que é inerente a cada direito.

Assim, estando o problema do ato abusivo no campo do valor normativo que fundamenta o direito, não há razão para restringir o abuso do direito apenas ao direito subjetivo, excluindo-se prerrogativas, direitos potestativos, faculdades, liberdades, etc.138

Os valores eleitos pelo ordenamento constitucional como capazes de traduzir o que se pretende como sociedade devem ser demonstrados por qualquer atuação e não apenas por aquela traduzida através de um direito subjetivo.

138 SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Abuso do direito, p. 549: “a juridicidade

desinteressar-se-ia da desconformidade da actuação de toda e qualquer prerrogativa do sujeito ao elemento valorativo que a informa e orienta, porque tal prerrogativa, não

sendo um direito subjectivo, não poderia ser contrária ao direito senão em termos de ilicitude.” (grifos no original)

Assim, qualquer prerrogativa jurídica pode ser submetida a um exercício, seja por ação ou omissão, que esteja em contrariedade com o valor concreto que materialmente a embase.

A defesa deste alargamento importa em aplicar o instituto do abuso à situações que postulam apenas o controle formal, escapando-se aquelas orientadas pelo elemento teleológico.139

Por outro lado, note-se que não é correto analisar uma situação jurídica de forma estanque e absoluta como sendo ou ativa ou passiva. Ainda que seja possível imaginar uma situação jurídica simples que gere apenas direitos140 ou deveres, a grande maioria das situações jurídicas se apresentam complexas. Explica-se: as situações jurídicas apresentam aos seus titulares posições de direitos cumulados com deveres. Porém, mesmo naquelas onde se identifique apenas uma situação jurídica simples é possível verificar a ocorrência de abuso.141 E isto é assim porque as limitações de conteúdo, como, por exemplo, a boa-fé, estarão sempre presentes.

Pode ser que numa situação jurídica sejam preponderantes os direitos, sendo, por isso, considerada ativa, e numa outra preponderem os deveres, sendo encarada como passiva, mas em ambas pode existir a concomitância de polos.142

Com efeito, a doutrina afirma que o abuso do direito abrange os direitos subjetivos, e todas as espécies de situações jurídicas subjetivas.143

Assim sendo, as situações jurídicas formam um conjunto de deveres e direitos e referem-se a um determinado centro de interesses.144

139

CARDOSO, Vladimir Mucury. O abuso do Direito, p. 91.

140 Exemplo é o artigo 313 do Código Civil de 2002: “O credor não é obrigado a receber

prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.”

141

MENEZES CORDEIRO, António. Da boa-fé, p. 898.

142 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil, p. 677: “No ordenamento moderno, o interesse

é tutelado se, e enquanto for conforme não apenas o interesse do titular, mas também àquele da coletividade. Na maior parte as hipóteses, o interesse faz nascer uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes quanto de deveres, obrigações e ônus.”

143

MENEZES CORDEIRO, António. Da boa-fé, p. 898; PERLINGIERI, Pietro. O direito

civil, p. 683; CARPENA, Heloísa. Abuso do direito, p. 417.

144 A este respeito, PERLINGIERI, Pietro. O direito civil, p.734: “A ligação essencial do

ponto de vista estrutural é aquela entre centros de interesses. O sujeito é somente um elemento externo à relação jurídica porque externo à situação: é somente o titular, às vezes ocasional, de uma ou de ambas as situações que compõem a relação jurídica; de maneira que não é indispensável referir-se à noção de sujeito para individuar o núcleo da relação jurídica. O que é essencial é a ligação entre um interesse e um outro, entre uma situação determinada ou determinável e uma outra.”

Como muito bem pontuado pelo mestre Gustavo Tepedino:

A rigor, todas as relações jurídicas são formadas por situações jurídicas subjetivas, centros de interesse juridicamente protegidos, cujos titulares são os sujeitos de direito. O direito subjetivo nada mais é do que uma espécie importantíssima de situação jurídica subjetiva e, como tal, deve ser associado necessariamente à noção de interesse e de titularidade. Em razão disso, deve se preferir a expressão situação jurídica subjetiva a direito subjetivo, de modo a evitar o equívoco de reduzir o tem à problemática dos direitos subjetivos.145

Note-se que, embora o artigo 187 do Código Civil Brasileiro tenha se referido expressamente ao vocábulo “direito”, tal constatação não enfraquece ou afasta o entendimento de que o abuso do direito extrapola o direito subjetivo e alcança toda e qualquer situação jurídica subjetiva.

O ponto diferencial das situações jurídicas subjetivas diz respeito à sua estrutura, ao passo que a verificação da ocorrência do abuso do direito leva em conta a função destas mesmas situações jurídicas e o distanciamento que o ato praticado pelo agente se encontra do valor normativo da norma. Portanto, inexiste razão para afastar da possibilidade de exercício abusivo qualquer situação jurídica que entregue ao seu titular uma vantagem.146

O abuso no exercício de posições jurídicas extrapola o direito subjetivo e engloba liberdades, faculdades, poderes, direitos potestativos, o que nos força a um olhar menos parcial e mais global das situações subjetivas que não são apenas direitos ou deveres, mas sim situações complexas.147 148

145

TEPEDINO, Gustavo. In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de (coord). Comentários ao

Código Civil: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 25. V. 14.

146 CARPENA, Heloísa. Abuso do direito, p. 417: “Quer se trate de liberdades,

faculdades, ou poderes, todos constituem vantagens, cuja configuração depende, em última análise, da estrutura qualificativa da norma jurídica. Logo, em reação a qualquer situação subjetiva será admitida a figura do abuso do direito, visto que nenhuma delas jamais será desprovida de fundamento axiológico.”

147

Neste sentido: MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito, p. 57/95; LOPEZ, Teresa Ancona. Exercício do direito, p. 56; SOUZA, Eduardo Nunes. Abuso do Direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista

Trimestral de Direito Civil - RTDC,v. 50, p. 61, abr./jun. 2012; MARTINS, O abuso do direito e o ato ilícito, 1997, p. 171; AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil

– Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 206-207; MENEZES CORDEIRO, António. Da boa-fé, p. 898; VARELA, João de Matos Antunes. O abuso do direito, p. 48.

148

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contornos da abusividade, p. 229: tanto para concordar com a extensão do campo de abrangência da teoria para além dos direitos subjetivos, mas, também, apontando que, tradicionalmente, a doutrina francesa excluía os direitos potestativos da teoria do abuso do direito. No entanto, desde

Deve ser feito, no entanto, o registro do posicionamento contrário titulado por Oliveira Ascensão acerca deste tema:

O abuso nasceu da problemática específica do direito subjetivo. Poderá abranger situações jurídicas equivalentes, mas não poderes genéricos como a faculdade de contratar, cuja distinção da própria categoria da capacidade é difícil. Estas reclamam modos específicos de reação, que não se confundem com os que foram desenvolvidos a propósito do exercício dos direitos subjetivos.149

Também San Tiago Dantas entende que as faculdades jurídicas ou direitos potestativos não se submetem ao abuso do direito porque a eles não se opõem qualquer dever jurídico. O autor exemplifica com a vedação imposta a alguém de testar, alegando que aqui se tolhe a liberdade que é, em verdade, um direito subjetivo.150

Com o fim de afastar definitivamente a ideia de que o abuso não alcança os direitos potestativos, Cunha de Sá nos fornece o exemplo da pessoa que está exercendo a sua liberdade de circulação dentro de um espaço geográfico determinado, por exemplo, na cidade onde reside. Diz o autor que, neste caso, o transeunte pode estar simplesmente passeando, pode estar, por outro lado, infringindo prisão domiciliar ou, ainda, exercendo o seu direito de andar, mas de forma agressiva, esbarrando, constrangendo e até machucando as pessoas. Nesta última situação, é possível identificar o abuso do direito.151 Através do exemplo, o autor português nos ensina que a ofensa ou lesão pode ser resultado de uma violação estrutural dos direitos ou liberdades ou de uma violação apenas ao fundamento axiológico que informa os direitos ou as liberdades, sendo certo que no primeiro caso temos a ilicitude formal e no segundo a abusividade.

quando se iniciou um movimento para funcionalização de tais direitos, os conceitos se alteraram e passou-se a admiti-los como submetidos à teoria.

149

ASCENSÃO, José de Oliveira. A desconstrução do abuso do direito, p. 65-66.

150

SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil, p. 321.

151 SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Abuso do direito, p. 617-618: “ora, se bem que

formalmente o sujeito possa estar a exercer a liberdade de movimentos que lhe assiste como prerrogativa jurídica, a verdade é que o seu comportamento choca, pelo menos, com o valor que funda essa mesma faculdade, pois ela não lhe foi reconhecida para que com o seu exercício moleste propositadamente os restantes transeuntes; como diz a nossa Constituição Política (artigo 8.º, I), ao fazer a enumeração exemplificativa dos direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses, “ os cidadãos deverão fazer uso deles sem ofensa a direitos de terceiros, nem lesão dos interesses da sociedade ou dos princípios da moral”.

É importante que tenhamos em mente que as posições jurídicas devem ser exercidas antes de tudo com responsabilidade, de forma a permitir que os demais integrantes da sociedade também possam exercer as suas próprias posições jurídicas em um espaço de liberdade e conforto.

Ao fim e ao cabo, o agir informando a premissa acima apontada revela o exercício democrático das liberdades e direitos.

Não há mais espaço para que o direito subjetivo seja encarado e manejado sem que seja levado em consideração que existem deveres que lhes são imanentes.

A partir de quando se enxergue no direito subjetivo, também, um encargo ou ônus, entende-se a sua complexidade, e revela-se a necessidade de cooperação, lealdade, boa-fé, expressões que são do princípio da solidariedade.152

Relacionar o abuso do direito com os limites axiológicos do direito subjetivo, tais como a ordem pública, a solidariedade e a boa-fé acaba por traduzir uma limitação às situações jurídicas, que passam a estar limitadas por cláusulas gerais que, no mais das vezes, apontam para princípios insertos na Constituição da República.

As limitações impostas ao exercício das posições jurídicas devem ser observadas no atuar de cada um de nós, tal como nas diversas contratações que fazemos, forçando-nos, inclusive, a levar em consideração interesses que nos sejam contrários.

Perlingieri, neste ponto, salienta que o levar em consideração interesses contrários não significa, no entanto, colisão de direitos, mas sim limitação do exercício do direito por todos os interesses que sejam merecedores de tutela naquela situação jurídica em que está inserido o direito.153 Não há colisão porque não se trata de dois interesses que devam ser protegidos naquela situação, mas sim fazer prevalecer aquele interesse que atende a finalidade que o legislador previu para a norma jurídica, afastando-se aquele outro interesse que mostra-se destituído de motivação condizente.

152

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil, p. 681.

153

Exemplo do que se afirmou acima é a prevalência do interesse extrapatrimonial sobre o patrimonial, ambos envolvidos na mesma situação jurídica. A Constituição da República brasileira de 1988 incluiu o princípio da solidariedade que informa todo o ordenamento jurídico, bem como o da dignidade da pessoa humana. É através destes princípios que o legislador constituinte quis que todos passassem a informar as suas relações com os outros. A autonomia de cada um de nós para fazermos o que quisermos, quando quisermos e como quisermos passou a ficar limitada por tais princípios.154

Assim é que, no exemplo dado acima, inverte-se ou, no mínimo, condiciona-se, a ótica patrimonial do Código Civil pelo caráter extrapatrimonial da Constituição da República.155

Para concluir, deve ser afirmado que o abuso poderá ser identificado sempre que, em qualquer situação jurídica, se verificar a violação dos valores que informam o ordenamento jurídico e que se encontram na Constituição, que, por seu turno, é o ápice do sistema jurídico. Portanto, deve-se levar em conta, em cada situação jurídica, quais os interesses em jogo e se os mesmos se relacionam com aquele direito cujo exercício se pretende.

No documento A autonomia do abuso do direito (páginas 75-80)