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Situando a Educação Infantil no contexto brasileiro: discursividades assistencialistas de

CAPÍTULO 3 FORMAÇÕES DISCURSIVAS DA CRIANÇA, DA INFÂNCIA E DA

3.1 Situando a Educação Infantil no contexto brasileiro: discursividades assistencialistas de

O atendimento à infância brasileira teve em sua gênese um viés assistencialista que evolui de ações filantrópicas desenvolvidas por pessoas de “bom coração” ou por religiosos, como um favor prestado à sociedade, passando por preocupações com a proteção da saúde das crianças tendo em vista o combate à mortalidade infantil.

Com isso, os primeiros discursos acerca das crianças e suas infâncias surgem a partir da preocupação com a instauração de um espaço que viesse acolher (no sentido de guardar, alimentar e cuidar da saúde) as crianças vítimas de abandono.

Em relação ao período pós-descobrimento do Brasil - por volta de 1874 - o acolhimento à criança acontecia por meio das Rodas dos Expostos13. Nessa fase, o atendimento foi marcado pela caridade e pela guarda, ou seja, as crianças “indesejadas”, abandonadas por suas mães, precisavam de um lugar para serem mantidas longe dos olhares da sociedade da época e essa instituição dava conta disso.

Muitas dessas crianças eram filhas de escravas com seus senhores, de índias com o “homem branco” e na zona urbana eram casos de bebês abandonados pelas mães que pertenciam a famílias com prestigio social e se envolviam com homens sem posses ou romances extraconjugais, por isso eram considerados ilegítimos não sendo possível sua convivência no meio social.

Percebemos nessas discursividades que a preocupação não se voltava para a condição em que se encontrava a própria criança. A criação dessas instituições serviu apenas para esconder os sujeitos renegados, zelando pela imagem de famílias “tradicionais” que tinham certo prestígio social e, para tal, bastava que tivessem a alimentação e a higiene garantidas.

As precárias condições do atendimento oferecido por essas instituições fez surgir um movimento em defesa da extinção das rodas que “partiu inicialmente dos médicos higienistas, horrorizados com os altíssimos níveis de mortalidade reinantes dentro das casas de expostos” (MARCÍLIO, 2011, p. 68).

Vale ressaltar aqui como os enunciados acerca do atendimento à criança brasileira se unem a outros enunciados que compõem as discursividades que marcam a história de nosso país, como por exemplo, os discursos do campo político, do campo jurídico, do campo médico etc., uma vez que a preocupação com o que fazer quando as crianças atendidas pelas rodas crescessem aumentava, sendo necessária a interligação de diferentes campos.

Algumas crianças eram acolhidas por famílias caridosas e complacentes com a situação de abandono sofrida por elas, outras permaneciam nas casas, porém em condições precárias de sobrevivência devido à falta de recursos e há, ainda, outra parte que passava a viver pelas ruas, se prostituindo, pedindo esmolas e até cometendo pequenos delitos para conseguir comida.

Esse fato esteve atrelado a uma rede de medidas jurídico-sociais que instaurou a noção de criança como o menor abandonado, ou seja, o discurso que defendia “o termo “menor”, para designar a criança abandonada14, desvalida, delinquente, viciosa, entre outras, foi naturalmente incorporado na linguagem, para além do círculo jurídico” (RIZZINI, 2011, p. 113).

Observamos com isso que “a história das instituições pré-escolares não é uma sucessão de fatos que se somam, mas a interação de tempos, influências e temas, em que o período de elaboração da proposta educacional assistencialista se integra aos outros tempos da história dos homens” (KUHLMANN JR, 2010, p. 77).

Com as transformações sociais ocorridas no Brasil a partir da abolição da escravatura e da proclamação da República, já em fins de século XIX, as iniciativas voltadas para combater os altos índices de mortalidade infantil, marcados por um viés higienista e elaborados na maioria das vezes por médicos, são enfatizadas. Ou seja, surge nesse meandro uma maior preocupação com as condições de vida insalubres sofridas por uma grande parcela da população, cuja consequência eram as enfermidades que se alastravam pelo país. Com isso, o movimento médico-higienista se consolida com base num discurso em que os saberes do campo médico são valorizados.

Essas formações discursivas do campo médico-higienista partem de uma noção negativa das crianças, vinculada à condição das crianças como seres que ainda não são (concepção adultocêntrica), tendo por referência a vida e as características do adulto. A

14 A autora Irene Rizzini (2011) discute amplamente a questão das crianças e menores desamparados no Brasil, no período que compreende a Independência (1822) e a aprovação da primeira lei voltada para os menores de idade, Código de Menores (1927).

infância nessa perspectiva trata-se “de um período pelo qual todas as crianças passam, mas que deve ser superado o mais rapidamente possível por meio da educação e da projeção na fase adulta” (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; MORUZZI, 2012, p. 88).

Uma visão negativa das famílias, no sentido de evidenciar o que elas não têm, mas que deveriam ter, principalmente no que tange às questões de hábitos de higiene e de cuidado com a saúde, nesse contexto as incapacitava de cuidar de seus próprios filhos.

Nesse caso, a preocupação com as famílias como um todo (não apenas o atendimento à criança pobre) converge em orientações para o aleitamento materno, intenções educativas voltadas para como as mães deveriam cuidar de seus filhos, preocupação com saúde, higiene e saneamento.

Conforme observa Gondra (2010, p. 202), “descritas a partir de um conjunto de práticas que deveriam ser combatidas, as famílias pobres deveriam ser educadas ou, no limite, a criança pequena deveria ser retirada desse convívio, com vistas a se assegurar seu crescimento em ambiente sadio”.

O que se observa ainda nesse contexto é a criação de instituições (denominadas creches, asilos e internatos) para o atendimento às crianças pequenas de classe pobre, cujo projeto era pautado por um discurso que buscava a proteção da criança, a inculcação de hábitos e costumes considerados necessários.

Conforme pontua Kuhlmann Jr. (2002, p. 474) acerca dos discursos que buscavam educar para higienizar, “a saúde e a educação se entrelaçam nas propostas de tal modo que se tornam mutuamente subordinadas no propósito de construir as bases da nação moderna e ordeira”.

Por outro lado, o discurso dirigido às crianças das classes abastadas se diferenciava. Com base nos ideários pedagógicos15, especialmente de origem europeia, as discursividades em torno do atendimento às crianças dessa camada social se voltavam para um viés mais pedagógico que privilegiava o desenvolvimento intelectual (OLIVEIRA, 2007).

É interessante registrarmos aqui que essas primeiras iniciativas de atendimento à infância brasileira deram sustentação às discursividades que foram importantes para o campo de Educação Infantil que começa a se constituir: a de que crianças pobres são seres da falta e precisam de assistência/compensação e de que as crianças ricas pelas

boas condições de vida têm possibilidade e capacidade para se desenvolver intelectualmente.

Diante disso, o cuidado era prestado como um favor à população infantil pobre e a educação destinava-se à formação (no sentido de escolaridade) das crianças ricas, marcando assim um discurso preconceituoso sobre a pobreza.

O enunciado que emerge a partir da reflexão acerca do atendimento às crianças e as desigualdades sociais evidenciadas na época é o fato de considerarem o mesmo sujeito criança em duas discursividades diferentes, de acordo com sua condição social.

Em outras palavras “o que diferenciava as instituições não eram as origens nem a ausência de propósitos educativos, mas o público e a faixa etária a que se propunham atender. É a origem social e não a institucional que inspirava objetivos educacionais diversos” (KUHLMANN Jr., 2010, p. 74).

Segundo Oliveira (2007, p. 93), o atendimento à infância estava assim definido: “o assistencialismo e uma educação compensatória aos desafortunados socialmente. Planejar um ambiente promotor da educação era meta considerada com dificuldade”. E, por outro lado, às crianças afortunadas era pensado um atendimento em que predominava uma programação pedagógica, voltada para o desenvolvimento intelectual das crianças.

Oliveira (2007, p. 62) observa ainda com relação à importância destinada à educação das crianças ricas, que ela (a criança) “começou a ser vista como sujeito de necessidades e objeto de expectativas e cuidados, (...) o que tornava a escola (pelo menos para os que podiam frequentá-la) um instrumento fundamental”, capaz de preparar esses sujeitos para vida em sociedade, como também para a escolaridade nas séries fundamentais.

Nesse contexto, as mudanças ocorridas na estrutura político-econômico-social do Brasil, no início do século XX, traduzidas pelo advento da industrialização e o crescimento na demanda por mão de obra, culminou na participação das mulheres no mercado de trabalho operário.

Esse fato teve por principais consequências a transformação da configuração familiar, que impulsionou o ingresso da criança cada vez mais cedo em espaços não familiares e a consolidação de espaço “creche” como o lugar destinado à assistência da criança pobre.

Corsino (2005, p. 207), em relação a essa desigualdade no atendimento às crianças brasileiras, pontua que

Desde sua origem, o atendimento à criança pequena pobre foi reducionista: os jardins-de-infância eram considerados artigos de luxo, supérfluos para os carentes e despossuídos. Esse atendimento, durante muito tempo, coube às áreas da saúde, da assistência e do trabalho, e não à educação, predominando o cunho assistencialista.

As instituições nomeadas de “jardins-de-infância” tinham por base as ideias do alemão Froebel que preconizou uma proposta pedagógica onde “os adultos, como bons cultivadores, assumiriam a função de “jardineiros” para adubar, regar e moldar as novas gerações” (NASCIMENTO, J., 2011, p. 149), ou seja, o adulto era responsável por formar a criança.

Contudo, as ações assistenciais se tornam cada vez mais abrangentes, no sentido de contemplar um número maior de famílias pobres. Para isso, desencadeou-se a criação de diversos departamentos, institutos, por iniciativa do poder estatal, que investidos de um caráter “educativo”, permaneciam com a essência eminentemente caritativa e buscavam “suprir” as carências (de saúde, nutrição e educação) apresentadas por essas famílias.

O discurso desse atendimento assistencial se pauta agora por uma “perspectiva compensatória”, especialmente nas últimas décadas do século XX. Essa ideia que forneceu as bases para os programas de educação parte do pressuposto que as crianças das classes pobres são “‘carentes’, ‘deficientes’, ‘inferiores’, na medida em que não correspondem ao padrão estabelecido. Faltariam a essas crianças, ‘privadas culturalmente’, determinados atributos, atitudes ou conteúdos que deveriam ser nela incutidos” (KRAMER, 2006a, p. 24).

O que prevalecia nessas discursividades é a noção negativa da infância, vale dizer, da criança das classes populares tomando a condição social das famílias como responsável pelo “fracasso”. Entendendo as crianças pelo viés da falta, da incapacidade, da desvantagem, o lugar a elas destinado continua sendo o da invisibilidade, apenas de um corpo em desenvolvimento. Em outros termos,

(...) a negatividade constitutiva da infância exprime-se na ideia da menoridade: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o submeta a processos de instrução), o que não tem valores morais (e,

por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente) (SARMENTO, 2005, p. 368).

Outro ponto que merece destaque com relação à educação compensatória é que suas bases estão ancoradas nos discursos da “teoria da privação cultural”. Os pressupostos da teoria da privação cultural, segundo Kramer (2006b, p. 799), se fundamentam nos enunciados das “carências culturais, deficiências linguísticas e defasagens afetivas das crianças provenientes das camadas populares”.

Partindo desses enunciados, a educação denominada compensatória se organiza de modo a suprir, a preencher as crianças com o que considera faltar a elas, tomando por base um modelo de família, de criança, de sociedade.

Confirma-se, desse modo, a partilha do cuidado e da educação da criança pequena entre família e poder público, principalmente com a expansão das atividades industriais e a consequente necessidade das mães trabalharem fora de casa.

O que vale a pena destacar nesse sentido é a criação de diversos órgãos destinados ao atendimento da criança, que na maioria das vezes estavam ligados ao Ministério da Saúde, da Previdência e da Assistência Social.

A discussão empreendida por Kramer (2006a) acerca das iniciativas do Estado voltadas ao atendimento da criança, a partir da criação desses órgãos, pôde expressar a forma como a criança é concebida nos discursos desses dispositivos legais. A noção de uma criança compartimentada, dividida em partes, não contribui para uma efetiva ação que privilegiasse o ser criança nas suas especificidades e necessidades.

Sendo assim “o problema da criança é fragmentado e pretensamente combatido de forma isolada, ora atacando-se as questões da saúde, ora do ‘bem-estar’ da família, ora da educação” (KRAMER, 2006a, p. 87).

No bojo dessas discursividades que buscavam cercar cada vez mais a vida das crianças pequenas, foi sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 5692/71, que mencionou apenas uma prescrição para a Educação Infantil, sem deixar claro, de fato, a quem caberia a responsabilidade e a efetiva ação para o atendimento as crianças menores de sete anos.

O texto da Lei em seu artigo 19 § 2º regia que “os sistemas de ensino velarão para que as crianças de idade inferior a 7 anos recebam conveniente educação em escolas maternais, jardins-de-infância ou instituições equivalente”. O artigo da Lei

refletia o caráter secundário destinado a esse atendimento, marcado pela omissão do Estado frente à efetivação dessa educação.

Mesmo com a falta de clareza, observada na LDB (versão de 1971) uma vez que não apresentava as formas de como viabilizar na prática o atendimento aos menores de sete anos, podemos observar ainda que há uma maior frequência de iniciativas voltadas para as crianças de 4 e 5 anos, sobretudo com ações de caráter mais educativo no sentido de antecipação dos conteúdos do ensino fundamental, impulsionando “o debate sobre funções e currículos da pré-escola, legitimando a educação pré-escolar, relacionando pré-escola e escola de 1º grau” (KRAMER, 2006b, p. 801).

O contexto político vivenciado durante a década de 1980 com o fim da ditadura e o processo de redemocratização do país gerou movimentos em prol da creche como direito do trabalhador e dever do Estado, além disso, a pressão por parte dos movimentos da sociedade civil, bem como dos órgãos governamentais, contribuiu para a promulgação da nova Constituição Federal (CF) de 1988 (OLIVEIRA, 2007).

A partir da Constituição de 1988, o atendimento às crianças pequenas passou a integrar o sistema de ensino, deixando as esferas de assistência social e médico- higienista, fato que é uma inegável conquista para as creches e pré-escolas que têm seu lugar legitimado na sociedade como espaço de educação e sendo, portanto, direito de todas as crianças.

A CF de 1988 teve sua importância no cenário das políticas públicas do país, através da “redefinição dos direitos de cidadania tanto do ponto de vista dos direitos políticos como dos direitos sociais” (CRAIDY, 2008, p. 57). Para a Educação Infantil também, a CF desencadeou um processo de intensos debates e a formulação de outros dispositivos legais que colocam a preocupação com as crianças, as infâncias e seus espaços educativos em pauta.