• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – Considerações metodológicas

1.1. Sobre a observação participante

Desde 2009, trabalho como assistente social, no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Ao ser nomeada para o cargo (Analista do MPU/Saúde/Serviço Social), comecei a desempenhar minhas atividades na recém-criada Secretaria Executiva Psicossocial (SEPS), cujas atribuições se referem, principalmente, à assessoria aos “Procuradores e Promotores de Justiça em ações e procedimentos que envolvam conhecimentos técnicos afetos às áreas de Serviço Social e de Psicologia por meio de realização de estudos e perícias psicossociais e emissão de pareceres técnicos” (DISTRITO FEDERAL, 2016, p. 94).

Quando comecei a trabalhar na SEPS, houve divisão da equipe para analisar processos judiciais de acordo ao tema ao qual se referiam. Pela minha experiência acadêmica, passei a atuar, principalmente, nas demandas de promotorias de justiça referentes aos casos de violência doméstica contra mulheres. A equipe era pequena e eu era a única servidora da Seps a trabalhar com esse tema, por causa dessa divisão (os outros temas trabalhados pela equipe eram: violências contra crianças e adolescentes, violências contra idosos e contra pessoas com deficiência, processos judiciais referentes à interdição civil). Naquela época, comecei a compreender as dificuldades enfrentadas pela esfera jurídica e judiciária, e pelo Ministério Público especificamente, em intervir nas violências sofridas por mulheres. A Lei Maria da Penha era razoavelmente recente e o MPDFT ainda contava com a organização anterior (Juizados e Promotorias Especiais Criminais e Setores de Medidas Alternativas) para lidar com o tema.

Ao longo de sete anos de trabalho no Ministério Público, observei e participei de inúmeras reuniões sobre a criação e a implantação dos Setores de Análise Psicossocial (Setps), no MPDFT. Acompanhei, como chefe do Setor de Estudos Macrossociais (Setmac), o projeto-piloto de implantação da assessoria psicossocial na Coordenadoria de Promotorias de

Justiça de Santa Maria, em 2011. Em conjunto com as profissionais da Seps que foram para Santa Maria, fui responsável pela elaboração do projeto, pelas metodologias de trabalho e pelas avaliações finais, com análise dos resultados alcançados. Nenhuma dessas atividades foi realizada durante a pesquisa que dá fundamento a essa tese. Entretanto, por causa do treino antropológico, fiz muitas anotações em cerca de, pelo menos, três cadernos de campo no período de 2011 a 2013. Esses relatos me proporcionaram memória não oficial (não registrada nas atas e nos relatórios) sobre os debates em torno da organização do Ministério Público, depois da Lei Maria da Penha.

A partir de 2013, fui lotada como chefe do Setor de Análise Psicossocial, na Coordenadoria de Promotorias de Justiça de Samambaia (Setps/CPJSA). Com o setor em seu início, pude acompanhar (e ser protagonista de, com outras colegas) todo o processo de implementação de uma nova unidade em um órgão público. Pude mapear quais eram os conflitos existentes entre campos de conhecimento, quais eram as expectativas de promotores de justiça sobre a atividade psicossocial e de servidoras dos setores recém-criados sobre as promotorias de justiça. Pude conhecer quais eram as maiores dificuldades relatadas por esses profissionais no cotidiano de trabalho. Igualmente, entre 2013 e 2015, acumulei anotações em outros cinco cadernos (totalizando-se oito cadernos de anotações), sejam de reuniões formais, sejam referentes a conversas informais com promotores(as) de justiça e com outros(as) servidores(as) do local. Acrescento que algumas das reuniões entre profissionais do MPDFT, especialmente as que continham direcionamentos para o trabalho, tiveram áudio gravado por mim.

Como servidora do Setps/CPJSA, entre 2013 e 2015, realizei inúmeras visitas domiciliares, entrevistas individuais, com familiares e, pelo menos, 30 acolhimentos coletivos de mulheres. Os acolhimentos coletivos contaram com número de participantes que variou entre 3 e 15 participantes por grupo. Tais acolhimentos são realizados a cada 15 dias, na CPJSA e são convidadas mulheres com processos judiciais referentes às violências domésticas – conjugais ou não. Os acolhimentos são procedimentos técnicos informativos e reflexivos, com entrevistas breves individuais ao final15. As mulheres recebem telegrama,

carta ou telefonema com convocação para participarem do acolhimento. O procedimento técnico é realizado, preferencialmente, antes da primeira audiência dos processos judiciais em questão e não são de participação obrigatória para as mulheres.

Resumidamente, o procedimento técnico segue um roteiro:

1. No início do acolhimento, as profissionais (geralmente, uma assistente social e uma psicóloga) e os estagiários se apresentam e, em seguida, pedem para que as participantes se apresentem.

2. Em seguida, as profissionais informam qual é o objetivo do acolhimento: “cada uma de vocês tem um processo relacionado à Lei Maria da Penha, registraram uma ocorrência, ou ligaram para o Ligue 18016”. Como explicou a profissional condutora do grupo, em junho de

2015: “a gente faz esse procedimento para conversar um pouco, explicar algumas coisas que interessam a vocês sobre os processos judiciais e entender um pouco vocês, saber como vocês estão e tentar fazer algumas reflexões, uma conversa mesmo”.

3. A equipe usa um recurso audiovisual, um vídeo sobre violência doméstica contra mulheres, para “aquecer” o debate. As profissionais procuram selecionar vídeos diferentes a cada grupo, mas há algumas predileções, como: trechos de um filme chamado Amor?17, do diretor João Jardim, que contém relatos de violências interpretados por atores e atrizes famosos no Brasil; “O Sonho Impossível”, uma animação de Dagmar Doubkova, que discute papéis familiares de homens e mulheres por meio da divisão das tarefas domésticas18; relato

da Maria da Penha Maia Fernandes, que nomeia a Lei Maria da Penha, sobre sua própria história de violências, em uma palestra19.

4. A partir daí, as profissionais pedem para que as mulheres comentem aquilo que teria chamado atenção no filme. Então, é iniciada uma conversa, entre as participantes e as profissionais. Essa conversa é direcionada pelas profissionais para contemplar, pelo menos, os seguintes tópicos:

a) uso das violências para resolver conflitos e com caráter disciplinador;

b) tipos de violências existentes na Lei Maria da Penha (distinção entre violências físicas, morais, psicológicas, morais, sexuais e patrimoniais);

c) impactos da violência na saúde das mulheres, inclusive saúde mental;

d) história da Lei Maria da Penha (quando o vídeo mostrado não é a palestra proferida pela própria Maria da Penha Fernandes, as equipes contam a história dela e mostram fotos dela) e novidades trazidas pela legislação no enfrentamento da violência contra mulheres;

e) discussão sobre uso de álcool e de outras drogas e a violência doméstica contra

16 Ligue 180 é um serviço oferecido, até 2015, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). Até 2014, ele tinha caráter informativo sobre direitos e serviços públicos das mulheres. Em 2014, ele também passou a funcionar como um disque-denúncia, enviando notificações para secretarias de segurança pública dos estados e para Ministério Público.

17 Sinopse aqui: http://tvbrasil.ebc.com.br/cinenacional/episodio/amor .

18 O vídeo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=dKSdDQqkmlM.

mulheres (as profissionais tentam desvincular esse uso da justificativa para violências e procuram, individualmente, avaliar comprometimento de saúde mental de usuários de álcool e outras drogas);

f) debatem sobre ciclo da violência. O conceito ciclo de violência foi criado nos Estados Unidos por uma psicóloga, Lenore Walker (1979, 2009). A psicóloga propôs que as relações permeadas por violências não são violentas o tempo todo, mas que não são aleatórias. As mulheres teriam descrito, nas pesquisas realizadas, que o ciclo da violência era permeado por um comportamento amoroso por parte dos parceiros (a autora trabalhou somente com violências conjugais). Diante dessa constatação, Walker elaborou um modelo explicativo de que esses relacionamentos conjugais violentos teriam algumas fases comuns, identificadas na maior parte dos casos por ela estudados: 1) período de construção da tensão; 2) período de incidente agudo de violência (ocorrência da agressão); 3) período amoroso, com ausência de agressões (comumente chamada de fase de lua de mel).

De acordo com esses estudos, o ciclo produziria o que se chamou, nos Estados Unidos, de battered woman syndrome, um estado psicológico que explicaria o motivo de as mulheres se manterem em um relacionamento violento. A síndrome ajudaria a explicar como alguém aprende a não se proteger por acreditar que suas ações não teriam nenhum efeito para evitar ou parar as ações violentas (DUTTON, 1996). As profissionais do MPDFT, sejam de Direito, sejam da Psicologia ou do Serviço, não utilizam o conceito de síndrome (o conceito não apareceu em nenhuma entrevista e nunca foi falado em reuniões que eu tenha participado), somente a ideia do ciclo de violências.

O ciclo se mostra uma ferramenta útil para as profissionais do MPDFT. Ele é usado de modo razoavelmente livre para conversar com as mulheres no sistema de justiça. É comum que as profissionais desenhem o ciclo da violência em um quadro branco e questionem as mulheres se esse tipo de circularidade de violências faz sentido na vida delas: “essas fases podem se aplicar mais ou menos a vocês ou não se aplicar, depende de cada caso mesmo”, como explicou uma profissional durante o procedimento técnico.

g) apresentam e discutem os dados sobre violência contra mulheres, de acordo com os “Mapas da Violência contra Mulheres” (WAISELFIZ, 2012; 2015).

5. Ao final do grupo, as profissionais fazem uma preparação dessas mulheres para as audiências. Elas explicam quem são as pessoas que estarão nas audiências, que as mulheres podem ser ouvidas individualmente, sem a presença da pessoa agressora; o que fazem juízes,

promotores de justiça e advogados; conversam sobre as perguntas mais comuns realizadas nesses contextos e tiram dúvidas sobre o andamento dos processos judiciais, inclusive encaminham para coleta de termo de declarações em casos de descumprimento de medidas protetivas. As profissionais falam, por exemplo, em qual posição juízes e promotores estarão sentados, como forma de facilitar a essas mulheres a compreensão das práticas judiciárias.

6. Após o momento coletivo, as profissionais e os estagiários oferecem lanche para as participantes e entrevistam, brevemente, cada uma, com objetivo de coletar informações específicas sobre cada caso de violência e de condições de vida, que permitam analisar riscos e vulnerabilidades dessas mulheres20.

Fiz essa pequena descrição dos acolhimentos para dizer em que condições colhi muitos relatos de mulheres ao longo desses procedimentos. Fui capaz de conduzir e de observar interações entre as participantes e as profissionais, as tensões existentes, as concordâncias e as discordâncias entre elas, os questionamentos que essas mulheres traziam ao sistema de justiça – e sobre o sistema de justiça –, suas reclamações em torno de audiências, suas boas e más experiências nos atendimentos (nas delegacias, nos tribunais e no Ministério Público), das dificuldades de acesso a serviços públicos (como a falta de vagas em creches e escolas), enfim, tive a oportunidade de ouvir e intervir em variadas situações de violência.

Além das reuniões profissionais e dos acolhimentos de mulheres, observei cinco eventos chamados “Tarde de Reflexão para Homens sobre Violência Doméstica contra Mulheres”. O evento ocorria a cada quatro meses na Coordenadoria de Promotorias de Justiça de Samambaia, era organizado pelo Setor Psicossocial e ministrado pelo Núcleo de Atendimento às Famílias e aos Autores de Violência Doméstica (NAFAVD/Secretaria de Estado da Mulher/GDF). Em cada evento observado, pelo menos 20 homens eram convocados. A Tarde de Reflexão era usada, pelas Promotorias de Justiça de Defesa da Mulher em Situação de Violência Doméstica, como uma das condicionalidades para transação

20 As profissionais dos Setps utilizam os termos riscos e vulnerabilidades embasadas, principalmente, na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). De acordo com a PNAS, situações de vulnerabilidade e riscos se referem a “famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social” (2004, p. 33). Ao longo dessa tese, utilizarei esses termos também nesse sentido. Acrescento que a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres (BRASIL, 2011), não há discussão sobre esses termos. Entretanto, é possível falar de risco e de vulnerabilidade, no que tange às violências, levando-se em consideração as seguintes definições: “vulnerabilidade social se configura mediante a análise dos seguintes aspectos: (1) posse ou controle de recursos materiais ou simbólicos que possibilitem o desenvolvimento ou a mobilidade social dos sujeitos; (2) organização das políticas relativas ao Estado, vinculadas à inclusão de forma geral e, mais estreitamente, à inserção no mercado de trabalho e condições de acesso às políticas; (3) os modos pelos quais os indivíduos, grupos ou famílias organizam-se no sentido de responder aos diferentes desafios ou adversidades sociais, ocupando determinadas posições nos jogos de poder” (CRUZ; HILLESHEIM; 2016, p. 301).

penal e/ou suspensão condicional do processo judicial ou como parte de acordos para arquivamento dos processos (especialmente casos de ameaças, em que promotorias não teriam elementos para realizar denúncias, de acordo com promotores de justiça da CPJSA).

Ao longo de 2015, também observei o Grupo de Reflexão sobre Violência Doméstica contra Mulheres, realizado por uma professora do curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB), no prédio da CPJSA. O grupo contou com dez encontros e foi realizado no primeiro semestre de 2015. Trinta homens foram convocados para participação nesse grupo, mas somente 20 foram participantes frequentes. Esses homens participaram do grupo como parte das condições acordadas em suspensão condicional do processo judicial.

Documentos relacionados