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CONSIDERAÇÕES FINAIS

2) Sobre as Falhas e Inconclusões da Investigação (e da investigadora)

Iniciar um texto com esse título não é fácil, primeiro porque me compromete com uma crítica ao meu trabalho; depois, porque é muito difícil falar mal de nós mesmos. Disfarçarei esses dois problemas com o auxílio de uma das teses defendidas nesta investigação: dados estão aí, outros leitores podem fazer outras leituras, mas elas estão lá, porque se acredita nelas. Espero que as considerações aqui não venham a ser enfraquecidas pela ousadia que é tentar “reler” nossos textos ainda no calor da discussão, nem pelas lacunas que, certamente, serão percebidas no decorrer das próximas linhas.

Durante a investigação e produção deste trabalho, deparei-me com algumas dúvidas. Primeiro sobre o que estava pleiteando, segundo por ter iniciado um estudo que relacionava o estudo da linguagem às relações de poder. Uma das perguntas que me fiz (e ainda faço) é se defender a performatividade da língua incorre em se debater com algum tipo de perigo? Porém, não há vida nem teorias que não ofereçam perigo. A radicalidade de qualquer tese defendida sempre implica riscos.

Defender a posição do ato de fala irredutível, que, de certo modo, não representa a leitura considerada oficial a respeito do termo cunhado por Austin, e levado adiante por Searle, não me parecia muito convidativo; segundo, aceitar o ônus do que poderia vir com a ampliação do conceito não me parecia seguro. No entanto, assumi o risco. O ato de fala irredutível, porém, além de estender sem amarras para o seu conceito e o seu fazer também nos põe diante de um dilema que não conseguimos fugir: da mesma forma que a língua nos frustra na tentativa de delimitá-la, ela nos estimula a fazê-lo. Esse encantamento que a língua tem nos convida incessantemente a buscar melhores caminhos para analisá-la. A eleição desses modos de enquadramento de alguma forma, neste trabalho, é que não me parece atender à radical atitude de compreender o ato de fala num sentido pleno, de um ato em toda sua dimensão e não apenas como um ato físico mínimo (Austin, 1990: 93). E isso não é só um problema de metodologia, embora a necessidade de restringir os objetivos seja real.

Neste trabalho, há a ausência de comentários ou mesmo da análise da potencialidade do ato de fala na imprensa. A publicação dos textos jornalísticos não se dá restritamente pela produção verbal,

mas pelo lay out da página, pelas fotografias, pelas seções, pelo lugar estratégico onde está localizada a matéria. Todos esses fazendo bastante diferença na hora da análise de um texto. A organização, porém, desses elementos não foi sequer mencionada, e, embora só tenha me dado conta desse problema perto do momento em que não dava mais para fingir que o tempo não tinha acabado para esta investigação (embora o trabalho ainda seja longo!), me vi na obrigação de refletir sobre isso.

Talvez o fato de não haver, nos manuais, fontes principais de informação e reflexão para esse trabalho, exemplos fartos do seu discurso sobre a linguagem não-verbal, esse ponto tenha desinteressado à investigação e à pesquisadora. E isso, porém, já apontaria um bom motivo para analisá-lo. Por outro lado, isso pode estar atrelado a uma formação que faz parte da minha história acadêmica, e com a qual não pretendo me apartar: os textos verbais sempre foram muito caros para mim. Espero, por fim, que isso não faça parte ainda do resquício de uma dicotomia presa a um conceito positivista de língua, em que o lingüista é visto ou como a figura do pesquisador que deve estudar a língua dissociando-a de outros aspectos que não sejam considerados estritamente lingüísticos, ou a figura do pesquisador que elege a estrutura ou mesmo sua manifestação superficial como a mais importante a ser estudada.

Outro dilema enfrentado nesta investigação tem a ver com o fato de se, ao estender as instabilidades dos conceitos, dos textos para fora dos estudos da linguagem, como acredito que ficou presumido no trabalho, isso não provocaria uma desmobilização, um enfraquecimento das bases que atuam contra o status quo. Não quero ser pretensiosa com a afirmação de que esse trabalho teria essa repercussão, falo dos textos também falados por esse trabalho e de algumas idéias pós-modernistas a que ele se afilia.

Não fui convencida de que a premissa de que os dados, os fatos, os significados vistos como posteriores à linguagem empreendam um relativismo céptico e desfavorável à história (das ciências, da língua, do mundo), por colocá-la sem uma prova cabal dos fatos que relata. A visão de construção de objetos no discurso parece ser recebida como a impossibilidade de uma postura mais realista para historiadores, filósofos e lingüistas, como também, para profissionais, vistos muitas vezes como meros técnicos, como seriam no caso os jornalistas. Defender o anti-realismo é realmente um desafio, porque isso implica assumir uma atitude que retira as bases onde foram fincadas as posições epistemológicas sobre os objetos, os fatos, os dados, que foram construídos em categorias muito delimitadas, como se para corresponder a uma ontologia da verdade das coisas.

Muitos dos que desconfiam do acesso direto às coisas, se seguram ainda na possibilidade de que em alguns momentos é possível não construir, ou seja, dar de “cara com a coisa”. Atrapalho-me, e bastante ainda, com essas sutilezas de pontos de vista não tão realistas e também não tão anti- realistas, mas isso não me dava o direito de retirar das considerações finais essa reflexão. Os espelhos deformantes, para alguns, ainda são, de algum modo, a possibilidade de não aceitar completamente a idéia da performatividade radical da linguagem. Realmente, a sensação de falibilidade, que os nossos estudos ou o nosso trabalho teriam, seria incontornável; e talvez seja por isso, que Searle também se apegue àquilo que critica quando fala da vontade de poder dos anti- realistas.

De qualquer forma, também me pergunto se a atitude extrema de estender a política e as relações de poder às teorias, à educação, ao jornalismo (já que tratamos dele no trabalho), criando uma sociologia do conhecimento, não entraria em choque com o que defendemos, pelo paradoxo que se cria: se, nas últimas conseqüências da tese anti-realista, todas as histórias são construções, nós também criamos uma realidade. E isso inegavelmente é muito perigoso (nisso Eagleton 1998[1996] tem toda a razão), porque transcende aquilo que poderíamos nos segurar, e a sensação é de que o esforço político, jornalístico, educacional, científico para o desenvolvimento de algo, saiu pela culatra. Uma sensação de desmobilização que só ajudaria estruturas hegemônicas existentes a se manterem como a única verdade.

Acredito que não esteja fazendo uma digressão; é que muitas vezes isso me veio à mente, que não teve tanto tempo para digerir a idéia de se algumas das considerações como o vir-a-ser dos sentidos, a instabilidade das coisas, das palavras, do jornalismo não estariam baseadas num relativismo céptico. Se, ao defender, que não se pode chegar a uma verdade e a uma realidade única pela linguagem, para que o jornalismo faça sua parte no cenário da comunicação, pelo meio hegemônico entre os signos para que isso seja feito, isso não estaria inviabilizando qualquer tipo de jornalismo, comprometido com a relação linguagem e mundo, porque sempre estaria criando os pressupostos para afirmar a conclusão de que é impossível agir de um modo diferente, mais democrático e menos injusto com os que estão submetidos ao relato dos fatos.

Não acredito ainda que a minha tese foi contra o jornalismo ou a possibilidade dele de melhorar. Também não sou céptica de achar que porque o trabalho faz críticas aos valores que são construídos no jornalismo, não seja permitido imaginar que possa haver uma mudança deste para melhor. Esse tipo de raciocínio me parece estar atrelado a uma expectativa da essência das coisas,

das ações, como se, ao colocar o reivindicar no cenário da constituição das identidades de língua, do jornalista e do jornalismo, este trabalho, ou mesmo a imprensa, não pudesse mais também reivindicar uma posição. Isso, a meu ver, corromperia aquilo que está claro para mim: a crítica que deve ser feita à estética da imparcialidade.

Isso, sim, seria um relativismo céptico que parece muito próprio de pragmaticistas, como Rorty (1995), com o seu modo de “estetizar” a política. Acreditar nisso seria desacreditar nas construções de prioridades para ações sobre os estudos da linguagem, sobre a educação, enfim, sobre o jornalismo. Seria desacreditar na inserção do homem na semântica da comunicação, seria desacreditar em formas de intervencionismos. O que, por outro lado, não se nega nesse trabalho é a corda bamba em que nos metemos, quando, pelo menos, tentamos refletir à luz dessas discussões, porque nos sentimos a toda hora mais vacilantes. E, se isso tem um saldo positivo porque criamos um estímulo maior para a honestidade da pesquisa, tem também vários perigos, para os que se arriscarem a seguir esse caminho.

É interessante observar com o que refletimos sobre o jornalismo, que esta investigação não propôs especificamente o caminho da mudança, mesmo acreditando que é possível melhorar tanto a imprensa quanto a forma em que a linguagem é posta por ela, na indústria da comunicação, com a qual termino me tornando céptica. Apesar disso, não teria certeza de que fosse o caso de se promoverem condições de felicidade às avessas, para a produção da informação e da opinião nos veículos de comunicação. É mais viável não imaginar a possibilidade de uma revolução nas macro- estruturas, nas regras superiores de funcionamento dos sistemas, mas um trabalho miúdo nas suas convicções e formas de objetificação dos sujeitos envolvidos no processo de produção de informação.

Deixar de promover um caminho para a mudança, em especial, não quer dizer aceitar qualquer caminho ou base que venha a ser colocada no lugar da linguagem informativa e do jornalismo. Não poderia apenas como pesquisadora da linguagem e do jornalismo dizer o que deve e o que não deve ser substituído, nem sei se é possível colocar algo no lugar quando se fala de uma linguagem performativa (acho que não), no envolvimento da linguagem com a promessa, com o homem. A promessa, o ato de fala por excelência, é, afinal, o que constitui o homem, nos termos de Nietzsche, exatamente porque a promessa carrega toda a falha e ambigüidade do agir humano.

Não é possível, contudo, deixar de dizer que colocar uma teoria da linguagem como performativa e do jornalismo e jornalista, que se assumem como não estando a serviço da

imparcialidade, é também uma decisão perigosa, porque aumenta as chances de manipulações que poderiam ser realizadas da relação criada entre os representantes do jornalismo, e/ou as pessoas que estão por trás dele, e dessa “linguagem poderosa”. Mas onde fica a promessa da linguagem que envolve, inclusive, a pesquisadora com a pesquisa no seu ato de fala, quando vinculou a fala à responsabilidade que assume com esse gesto?

E é aí que mora a sutileza do trabalho (ou que, pelo menos, com as falhas que lhe é de direito, e a limitação da pesquisadora sobre alguns percursos técnicos, teóricos e filosóficos, que terminou se aventurando em percorrer na pesquisa): na advertência feita do grande perigo que é achar que a linguagem e a ética precisam estar asseguradas numa realidade única, numa linguagem unívoca e informativa que apenas ainda não foram conquistadas, seja pela falta de condições humanas de conhecer como isso pode ser feito, seja pela falha técnica ou falha da linguagem utilizada para corresponder ao real no jornalismo.

O desafio de tomar a palavra e usá-la nas teias complexas da cadeia textual sem fim não é o de repetir ou unicamente garantir o que afirma, ou ficar afastado do que não pode prometer, é estar incessantemente problematizando o modo, por exemplo, de assumir o jornalismo, de assumir a lingüística, de assumir o seu conhecimento sobre a linguagem e sobre o mundo, e mais ainda assumir as responsabilidades com as decisões que toma no ato da linguagem. Realmente isso não é uma suspensão da ética, ou um atentado à possibilidade da moral. É o esforço e a necessidade de serem retiradas da categoria estética as palavras que fazemos uso, para usá-las numa categoria ética, que nos faria, sempre antes de prometer, pensar no que produziremos com a linguagem, para evitarmos, o que, nesse trabalho, se considerou “crimes verbais”.