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2. A “Carta da Jamaica”, de Simón Bolívar: sobre a condição intergenérica

2.1. Sobre as fronteiras do ensaio

Apontada em vários textos críticos, a dificuldade na apreensão das características do ensaio provém menos de sua diversidade temática que de sua flexibilidade formal. A ênfase nessa dimensão proteica transforma a suposição de um modelo canônico e de esquemas abrangentes de funcionamento num dos maiores problemas teóricos enfrentados por quem se ocupa do ensaio. Como expressa Pierre Glaudes,

considerando a história do gênero, somos surpreendidos [...] pela extrema heterogeneidade dos textos reunidos sob essa denominação. [...]

De Montaigne a Addison, de Condillac a Barthes, de Charles Lamb a Valéry, [o ensaio] é um gênero proteiforme que parece não ter fronteiras. [...] Devemos, então, nos contentar com a ideia de que o ensaio, esse “mau gênero”, existe somente em oposição a outras classes textuais mais bem definidas e desafia qualquer tentativa de classificação?72

72 No original em francês: “À considérer l’histoire du genre, on est frappé [...] par l’extrême

hétérogénéité des textes rassemblés sous cette dénomination [...].

[...] De Montaigne à Addison, de Condillac à Barthes, de Charles Lamb à Valéry, c’est un genre protéiforme qui semble n’avoir pas de frontières. [...] Faut-il donc s’en tenir à l’idée que l’essai,

A ausência de traços superficiais estáveis também é identificada por Medardo Vitier como uma das complicações do estudo desse gênero, fazendo inclusive com que, muitas vezes, sejam incluídos em seu âmbito escritos que fogem a seu escopo. Para o crítico cubano, o termo ensayo encontra dois inconvenientes na língua espanhola:

Um consiste em que se emprega também nas acepções de prova e de tarefa de principiante, coisas que nada têm a ver com o conceito literário de ensaio. O outro se deve à amplitude com a qual hoje se denominam ensaio escritos que, em rigor, não o são. [...] De todo modo, nos entendemos e até usamos as palavras ensaísta, ensaísmo e ensaístico.73

Tais dificuldades não surgem apenas da variedade de formas encontradas nas tradições ensaísticas – poderíamos nos perguntar, inclusive, que tradições são essas, quem as cria, quem as legitima, onde elas circulam; elas residem sobretudo no atoleiro da atribuição dos rótulos mencionados por Vitier a determinado autor e a determinada obra ou, então, ao identificarmos um trecho “ensaístico” no meio de uma narrativa. Focalizações como essas criam uma dicotomia entre o tipo de atividade intelectual que caracteriza as formas da prosa de ideias e a produção literária poético-ficcional, relegando a escrita ensaística, seu potencial crítico, desestabilizador, polêmico, radical e inventivo a um lugar acessório com relação às formas hegemônicas da prosa narrativa.

A dimensão proteica do ensaio é o mote do estudo introdutório à compilação organizada por John Skirius, que sugere, ali, quatro impulsos básicos característicos da tradição desse gênero na América Hispânica: confessar-se, persuadir, informar e criar arte. Para o crítico norte-americano, a atitude confessional seria a menos frequente e, numa divisão em subcategorias, a confissão pública de relatos marcados pela escrita autobiográfica encontraria ainda menos ocorrências que a privada – que, por sua vez, circularia sob a forma de cartas.

ce ‘mauvais genre’, existe seulement par opposition à d’autres classes textuelles mieux définies, et qu’il défie toute tentative de classification ?” (Glaudes, 2002. p. I-II. Tradução minha).

73 No original em espanhol: “Uno consiste en que se emplea también en las acepciones de prueba y

de tarea de principiante, cosas que nada tienen que ver con el concepto de ensayo en literatura. El otro se debe a la amplitud con que hoy se denomina ensayo a escritos que en rigor no lo son. [...] De todos modos, nos entendemos, y hasta se usan los vocablos ensayista, ensayismo, ensayístico” (Vitier, 1945. p. 45. Tradução minha).

Para elucidar a aproximação entre o ensaio e o gênero epistolar por meio da presença de certo tom conversacional, Skirius recorre a um trecho da correspondência entre José Enrique Rodó e Miguel de Unamuno que reflete traços da expressividade ensaística, como o gosto pelo anedótico e a expressão pessoal:

É uma pena que a forma escrita não se preste à expansão ilimitada da conversa, da confidência tête-à-tête! Quanto e sobre quantas coisas conversaríamos se pudéssemos nos ver, nos falar... Quando alguém começa a escrever, na formosa adolescência, o desejo é o de se fazer escutar por todos e por meio da pena. Mas chega uma época em que se prefere dizer o que se sente e pensa a algum espírito escolhido e amigo numa conversa íntima, livre de vaidades literárias e de “respeitos humanos”.74

Mais do que os vínculos intergenéricos apontados por Skirius, chama a atenção no lamento de Rodó a associação que ele realiza entre a juventude, idade das rupturas radicais, e a vocação pública da escrita, oposta ao relaxamento da conversa íntima. Referindo-se ao âmbito literário, Skirius subscreve a afirmação de Rodó ao opor os ensaístas do século XX, dedicados antes a enunciar que resolver os problemas de seu tempo, aos precursores do século anterior, que, “mais seguros de si mesmos ao propor programas de reforma”75 no seio das recém-nascidas ou nascituras repúblicas americanas, desempenharam o duplo papel de líderes políticos e escritores, o que Hugo Achugar define nos seguintes termos:

Os militares e letrados do século XIX construíram os novos estados- nações. Em alguns casos, esses militares também foram letrados e a fundação que realizaram não se limitou às armas. Esses “próceres escritores” desenvolveram um discurso fundante que, pelo lugar de poder do qual falavam, teve função e efeito decisivos.76

74 No original, em espanhol: “¡Lástima que la forma escrita no se preste a la expansión ilimitada de

la conversación, de la confidencia tête-à-tête! ¡Cuánto y de cuántas cosas conversaríamos si pudiéramos vernos, hablarnos!... Cuando uno empieza a escribir, en la hermosa adolescencia, el deseo es hacerse escuchar de todos y por medio de la pluma. Pero llega época en que se prefiere referir lo que se siente y piensa a algún espíritu escogido y amigo, de la charla íntima, libre de vanidades literarias y de ‘respetos humanos’” (Rodó apud Skirius, 1997. p. 14. Tradução minha).

75 No original em espanhol: “[...] más seguros de sí mismos al proponer programas de reforma”

(Skirius, 1997. p. 13. Tradução minha).

76 No original em espanhol: “Los militares y letrados del siglo XIX construyeron los nuevos

estados-naciones. En algunos casos estos militares fueron también letrados y la fundación que realizaron no se limitó a la de las armas. Estos ‘próceres escritores’ desarrollaron un discurso fundante que por el lugar de poder desde donde hablaban tuvo una función y un efecto decisivos” (Achugar, 1998. p. 27-28. Tradução minha).

As observações de Skirius e Achugar vão ao encontro do que Beatriz Colombi afirmará sobre as representações do ensaísta na tradição hispano-americana. Considerando que “as ficções enunciativas do ensaio têm um correlato nas figurações culturais do letrado e/ou intelectual”77, a crítica argentina identifica três atitudes distintas do ensaísta ao longo do século XIX: durante e depois dos processos de emancipação política, predominaram os tipos polemista, profeta e professor (maestro), que não raro se interpenetravam. Aos dois primeiros couberam, respectivamente, as funções de escrever contra os discursos estabelecidos e de anunciar fórmulas para o porvir da realidade político-cultural recém-instaurada. Ainda nesse panorama, segundo aponta Colombi, a tradição de atribuir ao magistério uma alta estima social fez com que a figuração magisterial tivesse vida longa na ensaística do continente, e seus desdobramentos abriram caminho para três modelos enunciativos característicos de importantes linhagens do ensaio no século XX: o ensaísta que se caracteriza por ser especialista em uma ou mais disciplinas, cujo caso exemplar é o de Fernando Ortiz; o ensaísta neo-humanista, sujeito crítico e universalizante representado por autores como Alfonso Reyes e Pedro Henríquez Ureña; e o ensaísta intérprete da realidade nacional, como foram, por exemplo, Ezequiel Martínez Estrada e Octavio Paz.

Por trás do elucidador panorama tipológico lançado por Colombi, que permite que a ficcionalização inerente ao ensaio seja relacionada a esquemas e conceitos formados histórica e socialmente, reside a consideração de uma especificidade não apenas da tradição ensaística latino-americana mas da própria literatura do continente: como anuncia Ana Pizarro, o discurso literário do período de emancipação “não se distancia do discurso político”78, o que também não deixa de ser verdade para grande parte da literatura de momentos posteriores. A percepção das vinculações entre os esquemas sociais e a forma literária demanda um ponto de vista atento ao espaço articulador constituído pelo texto ensaístico, uma dimensão linguística que permita e observe o movimento multidirecional entre os dois domínios. A reflexão sobre esse

77 No original em espanhol: “[...] las ficciones enunciativas del ensayo tienen su correlato en las

figuraciones del letrado y/o intelectual en esta cultura” (Colombi, 2008. p. 14. Tradução minha).

78 No original em espanhol: “[...] no se distancia del discurso político” (Pizarro, 1995. p. 24.

terceiro espaço não desautoriza, no entanto, as leituras particularizadas do âmbito retórico ou do histórico-social. Com o objetivo de iluminar os elementos que entram em jogo durante o processo de mediação representado no ensaio e pelo ensaio, o aporte de noções advindas de campos como os da História e da Sociologia dinamiza o estudo do gênero e das formas afins, englobadas na categoria dos gêneros ensaísticos.

Pensando nos limites do ensaio, Carlos Altamirano se questiona sobre as vantagens e desvantagens críticas da definição de uma zona genérica povoada de textos fronteiriços. Para o autor,

Ninguém duvidaria, por exemplo, em situar os escritos de Simón Bolívar nessa zona de fronteira. Mas que vantagem crítica obteríamos chamando de ensaios textos que identificamos melhor como proclamações ou manifestos políticos? Seria preferível falar de “literatura das ideias”.79

A noção de “literatura das ideias” desenhada por Altamirano admite a abordagem das condições de funcionamento dos discursos no seio da sociedade. Porém, à diferença do sociólogo argentino, não creio que a recusa de uma nomenclatura em favor de outro rótulo – uma noção quiçá mais abrangente – seja a atitude mais produtiva para a análise das estratégias de representação e interpretação que caracterizam o que entendo pelo nome de ensaio. Para entender de que modo o gênero traduz as articulações entre o exterior e o interior do texto, penso que é necessário colocar no centro da discussão o caráter mediador de uma discursividade que absorve elementos do mundo concreto, os interpreta e os devolve à sociedade numa nova configuração. O ensaio ganha forma nesse espaço intermediário, nesse trânsito que, repito, não impede uma leitura dedicada a um dos diferentes domínios do ato de ensaiar.

O breve estudo de Roberto González Echevarría sobre o Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), de Fernando Ortiz, suscita novos aprofundamentos a essa discussão. O crítico assinala que o ensaio se aproxima de outros tipos de texto para extrair dali uma aparência afiançadora, numa relação que o crítico cubano compara

ao parasitismo sem, no entanto, ecoar a carga depreciativa contra a qual Adorno reagira em “O ensaio como forma”:

O ensaio, como prática literária, não tem engaste genérico próprio, por isso tem que declará-lo, assumi-lo e atuá-lo como parte de seu próprio processo de enunciação. A decisão sobre o tipo de discurso a que o ensaio vai aderir de maneira parasitária é fundamental para sua cabal compreensão. Ariel [...] representa uma aula magna de fim de ano. Essa não é uma escolha inocente.80

Desse modo, Echevarría evoca o emprego de determinados recursos poéticos e retóricos na prosa de Ortiz para situar a inscrição do discurso literário na dinâmica social como elemento de peso na constituição formal do ensaio. Essa também é a atitude de Liliana Weinberg ao lembrar que a adoção de “formas intermédias e intermediárias entre o consignar e o afirmar, entre a oralidade e a escrita”81 não é

exclusividade do ensaio; ao lado dele, outros gêneros, entre os quais a carta, o diário de viagem e a alegação jurídica, compartilham dessa característica. Tanto em Echevarría quanto em Weinberg, encontramos um olhar crítico consciente da relação entre a malha textual e sua contraparte contextual, que interroga antes de determinar a escrita: segundo a crítica argentina, o estudo eficiente do ensaio deve contemplar a possibilidade de sua leitura ser feita

à luz da história e da própria temporalidade que se exibe no texto, a partir de seu constante apontar ao presente da enunciação. [Isso permitiria] levantar a possibilidade de conciliar sem congelar a relação entre texto e prática discursiva [...] a partir da consideração dessa terceira dimensão, a interpretativa, apoiada pela avaliação social subjacente e pela contemplação do caráter processual, do modo significativo do ensaio, ao mesmo tempo que por seu íntimo caráter dialógico.82

80 No original em espanhol: “El ensayo, como práctica literaria, no tiene engaste genérico propio,

por lo tanto tiene que declararlo, asumirlo, y actuarlo como parte de su mismo proceso de enunciación. La decisión de a qué tipo de discurso se va a adherir de manera parasitaria un ensayo es fundamental para su cabal comprensión. Ariel [...] representa una clase magistral de fin de año. No es inocente esa elección” (Echevarría, 2001a. p. 68-69. Tradução minha).

81 No original em espanhol: “formas intermedias e intermediarias entre el consignar y el afirmar,

entre la oralidad y la escritura” (Weinberg, 2006. p. 85. Tradução minha).

82 No original em espanhol: “a la luz de la historia y de la propia temporalidad que se despliega en el

texto, a partir de su constante apuntar al presente de la enunciación. Plantear la posibilidad de conciliar sin congelar la relación entre texto y práctica discursiva [...] a partir de la consideración de esa tercera dimensión, la interpretativa, apoyada por la evaluación social subyacente y por la

Nesse sentido, consinto com a preferência de Echevarría, Weinberg e Altamirano por uma focalização crítica que leva em consideração o lugar do discurso numa rede de construções simbólicas que o conecta a esquemas socialmente formados, mas sem esquecer a análise da armação discursiva que indicia tais relações.83 Não nego que o retorno da atenção crítica para o fazer textual esclareça os mecanismos que permitem que esta ou aquela obra sejam lidas como ensaios, mas creio que uma combinação entre a análise interna do texto e a análise das condições de circulação e funcionamento de seus núcleos de sentido – incluindo aí a atenção aos conteúdos – seja útil para passar da frequentemente monótona questão das fronteiras e dos limites do ensaio para a questão das funções possivelmente assumidas por esse gênero, uma disponibilização que está na base de textos impregnados de ideologia como são diversos exemplares da tradição ensaística latino-americana.

A fim de compreender a via de mão dupla que fundamenta a articulação entre a escrita ensaística e o mundo que ela interpreta, elejo como objeto de estudo deste capítulo um texto que percorre caminho distinto do apontado por Roberto González Echevarría. Datada de 6 de setembro de 1815 e escrita em Kingston, a famosa carta enviada por Simón Bolívar em resposta a um certo cidadão britânico chamado Henry Cullen aparece na história da literatura hispano-americana como exemplar das atitudes reflexiva e persuasiva relacionadas aos gêneros de cariz ensaístico.84 Ao ser indagado por Cullen sobre as atualidades políticas após as primeiras declarações de independência na América Meridional, o Libertador analisa, tanto quanto lhe permite o exílio na Jamaica85, a estruturação dos Estados recém-criados à luz do passado contemplación del carácter procesual, del modo significativo del ensayo, a la vez que por su íntimo carácter dialógico” (Weinberg, 2006. p. 324-325. Tradução minha).

83 Segundo Carlos Altamirano, “para estabelecer o sentido intelectual dos textos (ou os sentidos,

caso se prefira), não basta vinculá-los ao campo da ação ou, como se costuma dizer, a seu contexto. Associá-los a seu ‘exterior’, a suas condições pragmáticas, contribui sem dúvida para sua compreensão, mas não evita o trabalho de leitura interna ou da correspondente interpretação, mesmo se os considerarmos documentos da História política e social” (Altamirano, 2007. p. 14).

84 A “Carta da Jamaica” é mencionada por diversos autores que traçaram panoramas literários e/ou

ensaísticos no âmbito latino e hispano-americano. Ver, a esse respeito: Pizarro, 1985. p. 133; Fernández, 1990. p. 32-33; Gómez-Martínez, 1993. p. 404; Zea, 1995. p. 15; Jaimes, 2000. p. 558; Jozef, 2005. p. 47; Saunero-Ward, 2006. p. 1685-1686.

85 Após a derrota para as forças lideradas pelo espanhol José Tomás Boves na batalha de La Puerta

(junho de 1814), os republicanos venezuelanos se dirigem para o leste do país, onde a autoridade do Libertador não seria reconhecida. Bolívar, então, segue rumo à Nova Granada. Apesar de

vivido sob colonização espanhola. Diferentemente de textos fundados na relação parasitária descrita pelo crítico cubano, no caso da “Carta da Jamaica”, o texto é cooptado para integrar o âmbito da literatura de ideias por razões que escapam às vontades e intenções do autor, o que redesenha a relação entre a escrita ensaística e a categoria da prosa de ideias, além de apontar para uma concepção de escrita ensaística como atividade passível de funcionalização política.